De pequena em pequena liberdade,
as mulheres perdem muito por medo de assédio.
Por LARA VASCOUTO, do Obvious
Em março de 2014 uma mulher
sofreu uma tentativa de estupro dentro de um metrô lotado na cidade de São
Paulo. Com a barbaridade da notícia, veio à tona finalmente todo o assédio
(velado ou não) que as mulheres enfrentam diariamente no transporte público por
parte de homens imundos que tiram fotos de decotes, bundas e calcinhas,
encoxam, apalpam e roçam suas partes íntimas em mulheres desavisadas. Além do
ato abusivo em si, os assediadores ainda criam sites e páginas em redes sociais
para postar as fotos e contar os “feitos do dia”. Algumas dessas páginas contam
com milhares de seguidores.
Revoltada, me peguei refletindo
sobre essa situação absurda e sobre todas as pequenas coisas de que nós,
mulheres, somos privadas de fazer no nosso cotidiano por medo de sofrer algum
tipo de abuso – como ficar tranquila dentro de uma droga de trem, por exemplo.
O problema é que todas as mulheres já ouviram histórias o suficiente para saber
que qualquer assédio, por menor que seja, além de ofender e agredir, pode
acabar se tornando um estupro. Por isso nós tentamos evitar ao máximo qualquer
comportamento que possa dar margem à liberdades por parte de homens na rua.
Isso acaba, por sua vez, nos privando de algumas liberdades pequenas e simples.
Entenda, não é que nós não possamos fazer essas coisas. O grande problema é o
medo do que pode acontecer. E é por isso que, na maioria dos casos, uma mulher
pensa duas, três, quatro vezes antes fazer coisas simples como…
Ser simpática com homens desconhecidos na rua
Na maioria das vezes, nada de
mais vai acontecer se você cumprimentar aquele homem que sempre encontra
durante sua caminhada diária com o cachorro, ou o gari que está sempre varrendo
a avenida perto da sua casa. Na maioria das vezes, eles vão só responder bom
dia de volta e voltar às suas atividades. No entanto, vez ou outra, em resposta
à sua boa educação, você vai receber um olhar lascivo de volta, ou um
sorrisinho safado, ou um bom dia cheio de energia sexual contida. E por mais
inofensivas e abstratas que sejam essas reações, elas sempre assustam e fazem
com que a gente acelere o passo.
Quando isso passa a acontecer
muitas vezes, você começa a se perguntar se vale mesmo a pena ser simpática. Eu
não consegui deixar de tentar ser simpática com estranhos que sempre encontro
na rua, mas sempre rola uma certa apreensão e, muitas vezes, após uma breve
avaliação do indivíduo, eu simplesmente o ignoro. Eu já cheguei a passar quatro
anos morando em um lugar sem nunca ter cumprimentado um grupinho de taxistas
por que passava todos os dias, porque um dia vi um deles dando um olhar lascivo
para uma mulher que passava de minissaia e comentando grosseiramente com o
colega do lado. Meu namorado da época sempre os cumprimentava com
familiaridade. Mas eu perdi a prática e as vantagens da boa vizinhança por medo
(e nojo). Parece pouco, mas é uma pequena liberdade que se vai e a gente nem
percebe.
Sair de casa vestindo o que quiser, independente do destino e do meio
de transporte escolhido
Nós lutamos pelo direito de
vestir o que quisermos há tanto tempo, mas parece que sempre perdemos a
batalha. É sempre o velho discurso: oras, claro que o cara passou a mão em
você! Vestida desse jeito! O discurso dói e constrange, mas dói mais ainda ter de
aceitar que aparentemente homens são animais descontrolados – e o são com aval
da sociedade. Claro que nós temos que lutar pelos nossos direitos e claro que
uma saia curta nunca poderia justificar um estupro. Mas estupros acontecem
mesmo assim.
Quando eu estava na faculdade, eu
usava as roupas que queria para ir ao lugar que bem entendesse. Um dia, no
entanto, enquanto esperava o ônibus em um ponto super movimentado da avenida
Paulista usando uma minissaia em pleno sábado no auge do verão, eis que sinto que
tem alguém me observando. Quando procuro instintivamente o dono do olhar, qual
não é o meu choque ao constatar um homem sentado em uma muretinha atrás do
ponto, olhando fixamente para mim e batendo uma punheta em minha homenagem.
Aquilo me deixou tão ofendida e tão enojada que nunca mais voltei a usar saia
ou short no ônibus ou no metrô. Era mais um pedacinho da minha liberdade que eu
estava perdendo sem mesmo perceber. Não é que eu ache que eu provoquei aquilo
com a minha minissaia. É só que eu não quero passar por isso de novo.
Mandar algum mala grosseiro na balada ir pastar
…por mais grosseira que a cantada
dele tenha sido. É muito comum em baladas uma mulher ser encurralada por algum
cara mala, ou ter que lidar com algum nojento que decide que você deveria
agradecer o fato de ele ter escolhido a sua bunda para passar a mão. É mais
comum ainda ver o indíviduo ficar repentinamente surpreso, ofendido e agressivo
quando você não fica agradecida pela atenção que ele está lhe dando.
Basicamente, o cara se transforma de safado-rei-do-xaveco a machão-injustiçado.
Quando adolescente, tive a
infelicidade de ser perseguida a noite inteira na balada por um mala peguento
que não aceitava minhas negativas educadas. Quando me irritei de verdade e
mandei o cara me deixar em paz, fui brindada com uma série de xingamentos
agressivos e obscenos, tanto por parte dele como de seus amigos, que se
juntaram em defesa do “injustiçado”. Vai então, sua vaca, frígida!, entre
outras frases ofensivas e um empurrão. Em outras ocasiões, observei o mesmo
tipo de palhaçada acontecendo com as minhas amigas. E conforme fui crescendo,
percebi que esse era o tipo de coisa que invariavelmente acontecia com todas as
mulheres e até tomava tons realmente violentos em alguns casos – como no caso
da garota que teve o braço quebrado por um cara que não aceitou bem a rejeição.
Aos pouco, eu e minhas amigas
fomos entendendo a dinâmica das interações na balada e aprendendo a não acabar
a noite se sentindo como um monte de merda. Aprendemos a nunca andar sozinhas.
Inventamos gestos que deveriam servir como sinais para pedir reforços umas às
outras, caso a importunação de algum cara não fosse bem-vinda. Inventamos nomes
e números de telefone falsos para dar aos malas, para que eles fossem embora
sentindo que ganharam alguma coisa. Basicamente, para que não nos agredissem,
física ou verbalmente. Hoje em dia, faço tudo isso sem nem pensar. Ao invés de
mandar o cara que me encurralou na saída do banheiro e pegou na minha bunda
tomar bem no meio do cu dele, que é o que eu realmente tenho vontade de fazer…
…eu sorrio gentilmente me
desvencilhando e anuncio que estão me esperando para logo em seguida ser resgatada
por umas duas amigas fiéis que já estavam por perto de plantão. Talvez ele
baixasse a bola se eu fosse mais incisiva. Talvez. Mas eu não quero correr o
risco de ser xingada ou agredida ou forçada a fazer alguma coisa. Eu não quero
passar por isso de novo. Por isso eu uso estratégias e sou obrigada a sorrir
lisonjeada e me esquivar quando na verdade estou irritada e amedrontada. Eu e
mais um batalhão de outras mulheres. E é mais uma pequena liberdade que se vai.
Olhar quando alguém chama na rua
Parece realmente idiota, mas
recentemente meu marido comentou comigo que eu devo andar realmente distraída
pela rua, porque a tia dele já tinha passado por mim duas vezes naquela semana
e buzinado e eu não tinha nem olhado. No começo eu fiquei pensando que eu devia
estar realmente distraída e me senti meio mal por ter sido tão antipática. Mas
aí comecei a pensar sobre isso e cheguei à conclusão que nunca olho quando
alguém assovia para mim, chama sem ser pelo meu nome ou buzina. E vasculhando
minha memória desde os meus 12 anos até agora consegui entender porque isso
acontecia. Simplesmente porque, quando alguém chama na rua, as chances de ser
alguém realmente conhecido são ínfimas comparadas às chances de ser um
pervertido qualquer com alguma cantada obscena na ponta da língua.
Então eu nunca olho, correndo o
risco de parecer extremamente antipática para algum conhecido. Eu e mais um
batalhão de mulheres. E é mais uma pequena liberdade que se vai e a gente nem
percebe.
Conversar com trabalhadores de construção civil na rua
Ok, esse item é bizarro, mas vou
explicar. Sempre me intrigou muito o fato de o meu marido saber tanta coisa em
relação a ferramentas, construção, encanamentos, fiação elétrica, mecânica –
enfim, tudo que é tipicamente considerado como “coisas de homens”. Ele tem mais
ou menos a mesma idade que eu, formação e interesses muito parecidos, mas por
algum motivo sabe muito mais do que eu como todas essas coisas funcionam. Um
dia desses, depois de ele demonstrar algum conhecimento particularmente absurdo
sobre o conserto de alguns canos aqui de casa eu explodi: mas como é possível
que você saiba uma coisa dessas? onde raios você aprendeu isso?! Ele parou para
pensar um pouco e disse: ah…eu sempre perguntei muito. Sabe, para caras trabalhando
em obras na rua. Para o faz-tudo do prédio…Tinha uma obra do lado do escritório
durante muito tempo e eu ia lá fuçar de vez em quando…
Claro, eu sei que esse não é o
caso de todos os homens, e eu sei muito bem que eu não sei quase nada dessas coisas
por falta de interesse mesmo ou até porque essas coisas sempre foram
consideradas de interesse masculino e eu sou menina (da mesma forma que eu sei
muitas coisas sobre como tratar as unhas, enquanto meu marido não sabe nada –
mas essa é outra discussão). Mas a resposta dele me intrigou. Porque se eu
tivesse interesse em como se faz a fundação de um prédio eu procuraria saber
mais através da internet ou de livros. Nunca que eu iria futricar na obra que
está rolando do lado da minha casa. Isso porque nós, mulheres, temos um medo
patológico de operários de obras. E isso se explica por anos de assédio verbais
dessa classe de trabalhadores que todas nós tivemos que ouvir desde o momento
que nossos seios começaram a aparecer por baixo do uniforme da escola (é fato
que homens em grupo se sentem mais corajosos para falar merda para mulheres na
rua – sejam eles operários de obras, sejam executivos de escritório). Mulheres
não decidem simplesmente parar na rua para trocar uma idéia com um mestre de
obras sobre o melhor tipo de telha para aquela construção. Não que eu ache que
uma conversa assim seria impossível. Mas eu não consigo deixar de pensar: E se
ele achar que você tem outras intenções? E se os colegas dele fizerem algum
comentário desagradável? E se depois a desculpa dele for “mas ela estava dando
bola, poxa!”. Melhor não arriscar. E mais uma pequena liberdade, a de falar com
quem quiser sem medo, de buscar informação, de fazer amizades com pessoas
diferentes – tudo isso se perde, entre tantas outras pequenas liberdade que se
vão todos os dias sem que a gente se dê conta.
LARA VASCOUTO
Internacionalista, ex-Googler e
fanática por ler e escrever textos bem-humorados. Optou por ser pobre e feliz
na praia ao invés de rica e triste em São Paulo. Mais textos da Lara em
www.nodeoito.com.br.
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/
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