'Olympia', pintado por Manet em
1865, causou escândalo mas abriu caminho para a arte abstrata
Na semana que vem, o Museu d’Orsay, em Paris, inaugura a exposição Esplendor e Miséria: Imagens da Prostituição, a primeira a examinar de perto um tema tão comum na pintura moderna francesa a que nós normalmente nem damos a devida atenção.
Quando pensamos na pintura
francesa anterior a 1900, é fácil nos perdermos nos estereótipos do
Impressionismo, com suas paisagens naturais e imagens de doces personagens.
Mas no fim do século 19, Paris
era uma cidade em plena transição social, e a arte da época retratava muito
mais do que isso. O novo mundo urbano entrou com força na cultura, com toda as
suas sutilezas. E nada ficou escondido – nem mesmo os bordéis de Pigalle.
Na semana que vem, o Museu
d’Orsay, em Paris, inaugura a exposição Esplendor e Miséria: Imagens da
Prostituição, a primeira a examinar de perto um tema tão comum na pintura
moderna francesa a que nós normalmente nem damos a devida atenção.
As prostitutas eram comuns na
vida e na obra de artistas parisienses, e estão presentes em dois quadros que
provavelmente estão entre os mais revolucionários daquela época: Olympia, de
Manet, e Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso.
Realidade humilhante
Obcecado pelo tema,
Toulouse-Lautrec retratou o lado degradante da prostituição
Hoje pensamos em prostitutas como
uma das categorias mais desfavorecidas e estigmatizadas da sociedade. Mas na
Paris do século 19, a prostituição era algo central na rotina da cidade, um
negócio privado com ramificações públicas.
A atividade era rigidamente
regulamentada durante o governo de Napoleão 3º e até o século 20.
Fazer ponto era ilegal. Em vez
disso, as mulheres tinham que se registrar com a polícia, empregar-se em um
único bordel e pagar impostos. (Em 1946, os bordéis se tornaram ilegais na
França; receber dinheiro em troca de sexo continua sendo uma atividade legal,
mas hoje o país vive um debate ferrenho sobre criminalizar ou não o ato de
pagar por sexo, como na Suécia).
As prostitutas do século 19
também tinham que fazer exames médicos todos os meses, algo que podia ser mais
humilhante do que o próprio ato de vender o corpo – e que o pintor Henri de
Toulouse-Lautrec, um obcecado pelo tema, captou em seu quadro Rue des Moulins.
Na obra, as embrutecidas e nada
sensuais mulheres aparecem com blusas e meias, mas não vestem calcinha nem
saias. Elas parecem exaustas e desonradas, vítimas da burocracia mais do que
dos clientes.
O glamour das cortesãs
A cortesã La Païva se tornou
celebridade e vivia em uma mansão onde saía champanhe pela torneira
Alguns patamares acima na escala
social estavam as cortesãs, que vendiam sexo mas também companhia, um certo
glamour e até prestígio público. Muitas delas se tornaram celebridades e seus
movimentos – e clientes – apareciam nas populares colunas sociais da época.
La Païva, a maior cortesã do
Segundo Império (1852-1870), nasceu no gueto de Moscou e conseguiu chegar até a
Champs-Elysées, onde recebia seus convidados em uma suntuosa mansão que tinha
uma banheira de ônix cuja torneira vertia champanhe.
Pintores e principalmente
escritores eram absorvidos por prostitutas e cortesãs de todas as classes.
Apollonie Sabatier – conhecida como “La Présidente” – transformou sua casa em
uma espécie de salão de festas da burguesia, frequentado por Eugène Delacroix,
Gustave Flaubert e, especialmente Charles Baudelaire, para quem ela servia como
uma musa de aluguel.
Na exposição do Museu d’Orsay,
Sabatier aparece na escultura Mulher Picada por uma Serpente, do escultor
Auguste Clésinger, uma obra de arte profundamente polêmica para a época porque
o artista trabalhou sobre um molde feito sobre o corpo nu da cortesã.
Inspiração para a arte moderna
Outra famosa cortesã, Apollonie
Sabatier serviu de molde para a escultura de Auguste Clésinger
Mas a prostituição é um tema da
arte desde o Renascimento. Na lânguida Vênus de Urbino, de Ticiano, pintada em
1538, a deusa do amor é na realidade Angela del Moro, uma das mais bem pagas
cortesãs de Veneza.
Na década de 1860, Édouard Manet,
cansado dos segredinhos da sociedade parisiense, decidiu pintar uma cena
familiar para todos os que viviam na cidade.
Em uma referência direta a Vênus
de Urbino, Manet nos mostra uma mulher nua na cama, um chinelo pendurado no pé,
um laço no pescoço e uma flor no cabelo. Sua expressão é tão séria que chega a
ser triste. Não estamos mais no mundo das ninfas e deusas, mas sim na Paris da
era dourada dos bordéis.
A modelo de Manet para Olympia
não era uma prostituta, mas sim a pintora Victorine Meurent, que já tinha
aparecido em outros quadros dele. Mesmos assim, o escândalo que a obra provocou
no Salão de Paris de 1865, na época o maior evento de arte do mundo, foi sem
precedentes.
Os jornais falaram de mulheres
que começavam a chorar em frente ao quadro e de outros pintores esbravejando.
Manet desnudou toda a bagagem mitológica que tornou as imagens de prostitutas
aceitáveis no mundo das belas artes. E, pior, ele o fez com um estilo brusco e
imperdoável que aboliu a perspectiva e criou um retrato bidimensional.
O que tornou possível o
“achatamento” da figura – o que depois viria a dar origem à arte abstrata – foi
justamente o colapso dos bons costumes e a inversão das regras sociais naquela
nova Paris: as prostitutas deixando as margens da sociedade para assumirem um
papel mais central. E foi através da imagem da prostituição que nasceria a arte
moderna.
Imagem falsa
Charles Baudelaire, um grande
amigo de Manet, escreveu não apenas que a arte era um tipo de prostituição mas
também que Paris era um enorme bordel. Retratar o assunto era envolver-se em
uma brincadeira de seduzir o espectador ao dissimular a realidade.
As cortesãs podiam até ser
mostradas com suas joias e seus banhos de champanhe, mas a maioria das
prostitutas eram figuras desesperadas que deixaram a zona rural francesa,
tinham pouco dinheiro e nenhuma garantia de vida, e eram frequentemente vítimas
de violência.
Ocasionalmente, os frequentadores
dos círculos artísticos podiam ter um breve retrato dessa realidade – como no
quadro de Toulouse-Lautrec.
Mas o mais comum era que os
artistas modernos mostrassem a imagem da “prostituta feliz”: independente, sem
remorsos e curtindo aquela situação tanto quanto os homens. Era uma fantasia
fundamental para a arte moderna, mas, ao mesmo tempo, uma mentira.
Foi só em meados do século 20 que
artistas – principalmente mulheres – começaram a enxergar a realidade da
prostituição com um olhar nada romantizado.
Uma das mais significativas foi a
obra de Chantal Akerman, cineasta belga, cujo filme Jeanne Dielman, 23 quai du
Commerce, 1080 Bruxelles mostra em sequências glaciais a rotina de uma mãe
viúva cuja única fonte de renda vem dos serviços sexuais que ela presta em
casa. O filme foi um dos marcos do cinema feminista e retrata a prostituição
não como uma escolha pessoal mas sim como uma necessidade financeira, parte de
um sistema maior no qual as mulheres nunca são totalmente independentes.
Foi uma realidade que nem mesmo
os mais radicais pintores do século 19 puderam aceitar – mesmo se, à meia-luz
de seus quartos de bordel, eles podiam enxergá-la no rosto das pobres mulheres.
Fonte: BBC
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