A maternidade não é simplesmente
uma escolha pessoal. Quantas mães se sentem apoiadas em sua maternidade? E
quantas se sentem isoladas e desamparadas?
Por Letícia Penteado, do Revista
Fórum
Nós, mulheres, somos
constantemente empurradas no sentido dela. É uma pressão exercida tanto de
forma direta e descarada, pela cobrança por parte das pessoas (conhecidas ou
desconhecidas, já que, aparentemente, ostatus reprodutivo de uma mulher é
assunto aberto ao comentário do grande público), quanto de forma indireta, toda
vez que é repetida a mensagem de que o amor só é completo, e a mulher,
realizada, depois des filhos. Que a existência de crianças de alguma forma
impedirá o homem de abandonar o relacionamento – e que a pior coisa que pode
acontecer no mundo a uma mulher é ela “perder seu homem”.
Não raro, com o intuito de
convencer mulheres a procriarem, ouve-se, inclusive, a “ameaça” da solidão na
velhice (“quem vai cuidar de você quando você estiver velhinha?”), como se esse
fosse um mal que acometesse apenas as pessoas sem filhos. Aliás, preciso dizer
que o mesmo adultismo que transforma crianças em ferramentas para punir a
mulher que ousa fazer sexo (“abriu as pernas? Agora cria”) é o que fundamenta o
egoísmo que coloca pessoas no mundo para que, no futuro, elas retribuam esse
“favor” prestando sua companhia, não por vontade, mas por sentirem-se obrigadas
a isso.
Além disso, o aborto continua
sendo crime, a educação sexual segue, em geral, precária, tanto dentro quanto
fora de casa, a maior parte das medidas contraceptivas e anticoncepcionais
realmente seguras e sem o risco de efeitos colaterais graves (a pílula, por
exemplo, hoje se sabe que causa diversos problemas de saúde) são inacessíveis
para a maior parte da população, e a laqueadura ainda é tabu, sendo inúmeros os
casos em que se busca a cirurgia e nenhume profissional se dispõe a fazê-la,
por uma questão de paternalismo, puro e simples (a suposição de que a mulher
que está ali, pedindo para ser esterilizada, na verdade não sabe bem o que quer
da vida e tem que ser protegida de sua falta de noção por essa pessoa
maravilhosa que é formada em medicina).
Enfim, por tudo isso, tratar a
maternidade como se fosse um capricho da mulher, uma escolha pessoal dela e só,
é de um simplismo muito conveniente para uma sociedade que adora cobrar, mas
detesta pagar.
Mas, ainda que o único fator que
levasse hoje uma mulher a ter filhos fosse a vontade dela própria de fazê-lo
(e, sim, há casos em que isso é verdade e tenho o privilégio de me incluir
entre eles), isso não apagaria o fato de que é de interesse da sociedade que
ela o faça. Sim, pois, sem crianças hoje, não haverá pessoas adultas amanhã.
Trata-se da continuidade da espécie humana.
Você pode não sentir a menor
necessidade de que as crianças ao seu redor existam agora, mas, no futuro, elas
serão as pessoas de cuja existência e trabalho o seu bem-estar, talvez até
mesmo a sua sobrevivência, dependerão. A menos, é claro, que você pretenda se
mudar para uma ilha deserta e lá viver até o fim dos seus dias.
Não à toa, em países em que a
pirâmide social se inverteu (ou seja, em que há menos pessoas jovens que
pessoas de mais idade) há hoje políticas de incentivo à maternidade, incluindo
a busca por imigrantes que tenham crianças na família, tamanho o desespero.
Ou seja, ao invés de torcer o
nariz para a mulher que está com um bebê no colo, lembre-se que ela está
prestando o serviço de aumentar o contingente populacional humano ao seu redor.
Especialmente se você próprie não tem ou não pretende ter filhos, agradeça pelo
fato de outras pessoas estarem dispostas a fazê-lo e procure entender as necessidades
específicas delas, ao invés de tratá-las como se não devessem existir.
E não é apenas de interesse da
sociedade que bebês continuem nascendo; é de interesse da sociedade que esses
bebês sejam bem nutridos, bem amados e bem educados. Mesmo que sejamos
absolutamente egoístas e não sintamos qualquer empatia por crianças, ainda será
melhor para todes que elas recebam sempre os melhores cuidados possíveis.
Porque, quanto melhor nutridas, mais saudáveis e menor o custo para o nosso
sistema de saúde, por exemplo. Maior a sua força e disposição para o trabalho.
Quanto melhor educadas e amadas, maior a probabilidade de que se tornem pessoas
empáticas, cooperativas, conscientes da coletividade ao seu redor, perceptivas
de suas individualidades como partes do todo em que estão inseridas. E por aí
vai.
Por isso, a presença de crianças
na nossa sociedade e a forma como elas aí são tratadas é relevante para todo
mundo, e não só para quem fez a escolha de tê-las e cuidar delas dentro de suas
casas. É de interesse de toda a coletividade que elas continuem nascendo e que
encontrem ambientes propícios para se desenvolver.
Daí, a questão é: como podem as
crianças ser bem nutridas, bem amadas e bem educadas num contexto em que suas
mães estão sempre sobrecarregadas e estressadas, forçadas a escolher entre ses filhos
e si mesmas, seu trabalho ou seus estudos?
Quantas mães se sentem apoiadas
em sua maternidade? E quantas se sentem isoladas e desamparadas?
Quantas sentem que a conciliação
da maternidade com suas carreiras profissionais, acadêmicas, etc., foi
facilitada pela sociedade como um todo e pelas pessoas ao seu redor? E quantas
sentem que, tão logo pariram, suas presenças se tornaram indesejadas em
qualquer ambiente que não sejam seus lares?
A criança é muitas vezes tratada
como um castigo (em alguns casos divino, inclusive), e frequentemente é vista
como um estorvo para a mãe, uma coisa cuja existência inevitavelmente a
impedirá de viver uma vida plena. Como se não houvesse nada que qualquer pessoa
pudesse fazer a respeito – “que pena que ela engravidou… vai acabar largando a
faculdade”. Eu acredito que todes deveríamos empreender um esforço maior para a
inclusão real das mães e de suas crianças. Porque, na verdade, o problema não
são as crianças – crianças são pessoas, não problemas. O problema é a atitude
das pessoas adultas que se recusam a fazer a parte que lhes caberia e teimam em
excluir mães e crianças do convívio social.
Até mesmo na militância nós vemos
isso. Pessoas que não compreendem as dificuldades das militantes que são mães,
que não admitem a presença de crianças em reuniões, nem buscam soluções
alternativas, pessoas que cobram tempo e disposição que mães muitas vezes
simplesmente não têm e acabam perdendo a voz no movimento por isso.
E essa marginalização é
especialmente danosa na esfera profissional, porque, apesar de ser também
particularmente sentida na esfera acadêmica, trabalhar não é, para a maior
parte de nós, uma escolha, mas uma necessidade imposta pela sociedade
capitalista em que vivemos. A atitude que dificulta que alguém trabalhe coloca
em risco a sua própria sobrevivência ou, no mínimo, seu bem-estar, na
esmagadora maioria dos casos.
Costumamos dizer que nós,
mulheres, “conquistamos” o mercado de trabalho (me refiro aqui, claro, ao
trabalho antes pensado como “masculino”). Mas será que isso é mesmo verdade
quando quem teve que se adaptar fomos nós?
Penso que, se as mulheres
tivessem entrado no mercado de trabalho com o mesmo status de seus colegas
homens, suas particularidades pessoais e suas necessidades especiais, inclusive
as relativas à maternidade, seriam levadas em consideração e acomodadas, ao
invés de repudiadas e inclusive usadas como desculpa para que não sejamos
contratadas ou o sejamos em piores condições que os homens.
Nós fazemos todas as adaptações
para que eles não tenham que fazer nenhuma. Sequer se espera que pais abram mão
de suas carreiras profissionais e acadêmicas. Da cervejinha e do futebol com os
amigos.
Mesmo quando as mães se mantêm
trabalhando, suas carreiras sofrem interrupções muito maiores e mais frequentes
que as de seus maridos, que costumam ser tratadas como prioritárias mesmo
quando eles ganham menos. Essa tendência, claro, se agrava em caso de
separação.
Sim, a criança precisa da mãe.
Mas será que apenas a mãe pode suprir todas as necessidades da criança,vinte e
quatro horas por dia? E será que, mesmo nos casos das necessidades que só podem
ser supridas pela mãe, não há nada que se possa fazer para facilitar que isso
ocorra sem prejuízo para outros aspectos da vida dela?
As necessidades específicas da
mãe e da criança são tratadas como se fossem algo que a mãe tem que ou se virar
sozinha para satisfazer (o que sobrecarrega a mãe) ou forçar a criança a lidar
com sua não satisfação (o que sobrecarrega a criança). É como se um tratamento
diferenciado para suprir essas demandas fosse um privilégio e não o acolhimento
de particularidades que surgem do atendimento de um interesse que é, como
demonstrado, inegavelmente coletivo.
Mães e crianças oficialmente
fazem parte da sociedade, mas, na prática, apenas usufruem dela na medida em
que conseguem se adaptar a estruturas idealizadas para pessoas adultas e sem filhos
– este é o padrão e tudo o que “se desvie” disso deve ser “corrigido” (anulado,
neutralizado ou silenciado) para que se mereça conviver de fato. Quem não
consegue “se corrigir”, na prática fica de fora, para escanteio: crianças são
discriminadas por serem crianças, ou seja, pessoas que têm necessidade de
correr, pular, verbalizar, de instalações específicas, de espaços minimamente
seguros, etc.; e mães são discriminadas por serem mães, ou seja, pessoas que
precisam de horários flexíveis, de contato com seus filhos, etc.
Viver em sociedade significa
estar junto de outras pessoas, mesmo que diferentes de nós. Significa respeitar
a diversidade e acomodar as necessidades específicas de cada pessoa, de forma a
possibilitar sua efetiva participação na vida em comunidade. Não é o indivíduo
que tem que adaptar suas necessidades ao que a sociedade considera cômodo; é a
sociedade que tem que se adaptar para satisfazer essas necessidades, mesmo que
tenha que sair de sua zona de conforto para tanto.
Não se trata de pessoas sem filhos
trabalharem mais para “as folgadas” com filhos trabalharem menos. Não se trata
de forçar pessoas sem filhos a conviver com crianças mesmo quando elas não
quiseram tê-las. Trata-se de entender que pessoas com filhos já têm uma carga
de trabalho descomunal em comparação a quem não tem filhos, e que essa carga
vem de um serviço que, no fundo, está sendo prestado para toda a coletividade,
inclusive quem não pretende procriar.
Fonte: Geledes
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