Trabalhadoras sexuais do mundo
todo estão reunidas desde este domingo em Lyon, na França, nos Encontros
Internacionais dos Trabalhadores do Sexo, organizados pelo sindicato francês
Strass. São dois dias de reuniões, debates, palestras e workshops, seguidos de
uma manifestação convocada para terça-feira, dia 2, diante da igreja de Saint
Nizier.
Essa manifestação será muito
importante. Desde 1975, 2 de junho é o Dia Internacional da Prostituta. A data
comemora a ocupação da igreja de St. Nizier, no centro de Lyon, por cerca de
cem trabalhadoras sexuais que protestavam contra a repressão policial. Aquele
protesto histórico foi tema de documentário produzido por Eurydice Aroney e
Julie Beressi.
Como disse neste sábado o jornal
Le Progres: “Passaram-se 40 anos. Em 2 de junho de 1975, as prostitutas
lionesas invadiram a igreja de St. Nizier, situada no coração da Presqu’île,
entre a praça dos Terreaux e a dos Jacobinos, para protestar contra as prisões
de que eram vítimas. Elas eram cerca de cem, e ocuparam a igreja por dez dias.”
Quem conta em detalhes os
acontecimentos que levaram à ocupação da igreja é Maggie McNeill, no blog The
Honest Courtesan:
“Em 1974, as putas francesas
estavam fartas; a polícia, como sempre, não havia feito nada sobre o
assassinato e a mutilação de duas prostitutas em Lyon, de modo que um grupo de
putas e apoiadores (que incluíam advogados e jornalistas) convocaram uma
reunião de protesto para exigir o fim das várias leis antiprostituição e da
repressão policial que colocava suas vidas em perigo por obrigá-las a trabalhar
em áreas escuras e de pouco tráfego. A polícia reagiu assediando os
manifestantes com três ou quatro multas por dia, e as autoridades do fisco
francês fizeram estimativas ridículas do número de clientes que cada
trabahadora manifestante atendia, e lhes apresentou contas de impostos que
excediam toda a renda delas. Quando elas apareceram na TV para dizer ao público
o que estava acontecendo, foram condenadas à prisão à revelia, por causa das
multas e dos impostos não pagos. Reconhecendo que era necessária uma ação
dramática, na segunda-feira, 2 de junho de 1975, um grupo de mais de cem
prostitutas ocupou a igreja de St. Nizier, em Lyon, com a cooperação do padre.
Elas penduraram uma enorme faixa na frente da igreja, declarando “Nossas
crianças não querem suas mães na prisão.”
A solidariedade das mulheres de Lyon
“Quando o governo reagiu com a
ameaça de tomar suas crianças se elas não fossem embora imediatamente, houve
uma indignação púbica; muitas mulheres de Lyon juntaram-se a elas, de modo que
os policiais não tinham como dizer quais delas eram as prostitutas. Além disso,
o ‘submundo’ de Paris enviou uma delegação para ajudá-las, grupos ocuparam
igrejas em outras partes da França e uma ‘greve de prostitutas’ foi organizada
em várias províncias.”
Quem nos fala agora é o NSWP
(Rede Global de Projetos de Trabalho Sexual): “Em muitas outras cidades, as
trabalhadoras sexuais imitaram o movimento e igrejas foram ocupadas em Paris,
Marselha, Grenoble, Saint Etienne e Montpellier. O governo finalmente decidiu
agir e as trabalhadoras sexuais foram brutalmente expulsas das igrejas pela
polícia na manhã de 10 de junho. Ulla, a líder do movimento, teve seu nome
verdadeiro revelado e fotos dela foram publicadas na imprensa. O ministro do
Interior as acusou de serem manipuladas por cafetões, enquanto a ministra dos
Direitos das Mulheres declarou que não tinha competência para tratar do
assunto. O governo recusou qualquer forma de negociação e, em vez disso,
encomendou um relatório que foi ignorado quando publicado, em dezembro de
1975.”
Os detalhes são de Maggie
McNeill: “O protesto continou por uma semana e terminou de modo previsível: às
5h30 da terça-feira, dia 10 de junho, policiais enganaram o padre e o fizeram
destrancar uma porta, que abriram à força, o que permitiu que dezenas de
jagunços com equipamento militar invadissem o prédio. Todas as putas ocupantes
foram espancadas e presas, e ações similares foram executadas naquele dia e nos
dias seguintes em todos os locais de protesto; na sexta-feira 13, tudo estava
terminado.”
“Mas se as ‘autoridades’
imaginavam que a repressão brutal a um protesto pacífico ensinaria a lição que
elas pretendiam, estavam tristemente enganadas; as putas começaram a manter
reuniões regulares e logo formaram o Coletivo Francês de Prostitutas, no qual o
Coletivo Inglês de Prostitutas se baseou mais tarde. Mulheres em vários países
também se inspiraram e formaram grupos, e algumas delas se juntaram ao grupo
Coyote, de Margo St. James, para formar o Comitê Internacional Pelos Direitos
das Prostitutas (ICPR), a organização cujo trabalho e exemplo ajudaram a obter
reformas das leis de prostituição em vários países europeus e deu um exemplo
que inspirou campanhas semelhantes em muitos outros países.”
Gênese da mobilização
A socióloga Lilian Mathieu, da
Sorbonne (Universidade de Paris-1), examinou em detalhes os acontecimentos que
levaram ao movimento de 1975. Como tudo mais nesta história, há lições aí que
podem ser aproveitadas:
“Embora tenha sido de longe a
mais espetacular e famosa, a ocupação de St.Nizier pelas prostitutas de Lyon
não foi a primeira ação coletiva delas. Três anos antes, elas haviam estado
envolvidas em uma manifestação abortada, cuja memória desagradável pesaria
bastante em suas opções táticas quando elas decidiram agir novamente, em junho
de 1975. Essa primeira tentativa de mobilização merece menção, primeiro porque
representa uma fase significativa no desenvolvimento da dinâmica de protestos
que acabaria resultando na ocupação da igreja; segundo, porque dá o tipo de
demonstração ativa da dominação política à qual as prostitutas são submetidas e
ao julgamento comum de que elas são politicamente ilegítimas.”
“Em agosto de 1972, o mercado de
prostituição de Lyon foi abalado por um escândalo envolvendo vários políticos e
policiais locais. Depois de uma série de denúncias anônimas, as atividades
ilícitas de vários policiais da ‘brigada do vício’ foram publicamente reveladas
e os acusados, rapidamente acusados e presos. Os oficiais – membros do serviço
público francês, devemos lembrar – foram acusados de receber ‘envelopes’ dos
gerentes dos hotéis usados por prostitutas em troca de ‘proteção’ policial, e
até mesmo, em alguns casos, de comprar tais estabelecimentos com a ajuda de
corretores de imóveis cúmplices; revelou-se que outros policiais eram cafetões,
que coletavam o faturamento de prostitutas que trabalhavam diretamente para
eles. O caso também tocou vários políticos locais ligados ao partido UDR que
eram suspeitos de ligações com o crime organizado local (o ‘milieu’) e de dar
proteção aos operadores das ‘maisons closes’ (bordéis) de Lyon. O representante
parlamentar do quarto distrito da cidade foi colocado em uma situação
particularmente delicada, com a descoberta de suas conexões especiais com o
mantenedor de uma casa para encontros clandestinos conhecida por ter uma
clientela de elite.”
“Para as cerca de 400 prostitutas que atuavam
na cidade naquela época, a limpeza das relações entre polícia e o ‘milieu’
significava o fechamento dos hotéis em que elas trabalhavam. Embora esses
estabelecimentos fossem proibidos por lei, havia um bom número deles na ‘área
da luz vermelha’ do centro de Lyon no começo dos anos 1970, e eles eram
relativamente prósperos. Frequentemente eles eram administrados por
ex-prostitutas que recebiam uma parte da renda das mulheres que usavam o hotel.
Para as últimas, o arranjo dos hotéis havia funcionado bem: elas tinham uma
autonomia relativa dentro do estabelecimento usado; eram livres para escolher
suas horas e ritmo de trabalho; o pagamento pelo quarto era claramente separado
do pagamento pelo trabalho (ao contrário da situação nas ‘maisons closes’, onde
o cliente pagava ao operador uma taxa geral, do qual a prostituta recebia
apenas uma porcentagem); e o mais importante, as condições de higiene e
segurança eram consideradas satisfatórias.”
“Portanto, o fechamento dos
hotéis prejudicou seriamente a prática das prostitutas e representou uma ameaça
à sua segurança; foi o descontentamento com essa situação que levou à sua
primeira tentativa de ação coletiva. Na noite de 24 de agosto de 1972,
aproximadamente 40 mulheres fizeram uma reunião informal na Place des Jacobins,
perto da principal ‘área da luz vermelha’ do centro. Apesar de sua dispersão
rápida pela polícia, elas conseguiram convocar um protesto – na forma de uma
manifestação – para o dia seguinte. Foi um fracasso funesto. Ao meio-dia de 25
de agosto, na mesma Place des Jacobins, apenas cerca de 30 prostitutas
apareceram; sem dúvida as outras haviam sido dissuadidas pelo fato de que uma
manifestação como essa exigiria a afirmação pública de seu status fora das ruas
estreitas onde elas geralmente trabalhavam. Mas o que foi mais eficaz para
prejudicar o movimento foi a falta de reconhecimento do direito das prostitutas
de usarem esse método de ação para expressar seu descontentamento. As mulheres
planejavam marchar até a Prefeitura para apresentar suas reivindicações. Sua
passeata, anunciada pela imprensa local em tons jocosos, em sua maioria, atraiu
uma multidão de curiosos, reunidos como que para ver um show. A inexperiência e
a clara falta de habilidade das prostitutas para praticar essa forma de ação
deram à polícia tudo o que ela precisava para torná-las objeto de ridículo: os
oficiais que haviam se apresentado como voluntários para liderar uma delegação
das manifestantes até uma reunião com o prefeito na verdade as levaram para a
delegacia central de polícia, onde elas foram mantidas sob custódia por várias
horas. A cobertura da imprensa local também expressou um senso geral de
ilegitimidade das prostitutas, estigmatizando as manifestantes pelo fato de
elas terem sido politicamente ingênuas e ironizando sobre a pretensão vã e
ridícula de quererem ser ouvidas ‘como todo mundo’. O artigo publicado no dia
seguinte pelo principal jornal local destacava a ‘novidade total’ do
‘espetáculo’ que a multidão de moradores de Lyon havia testemunhado e ‘não
queria perder’. Ele também falou na futilidade da tentativa das prostitutas de
comunicar-se com a população em geral: é claro que foi ‘audacioso’ da parte
‘dessas senhoras’ tentar explicar ‘suas pequenas misérias’. Enquanto isso, a
caricatura do cafetão também foi mobilizada, como se para fazer a imagem se
adequar melhor aos estereótipos, e ao mesmo tempo permitir que a imprensa
introduzisse a suspeita de que as reivindicações das prostitutas não fossem bem
fundadas, já que as mulheres estavam, provavelmente, sendo ‘manipuladas’.”
Cenas familiares para as
trabalhadoras sexuais de todo o mundo, envolvendo policiais corruptos,
políticos, jornalistas e uma comunidade “educada” durante séculos para perpetuar
o preconceito e o estigma contra trabalhadores sexuais. O belo estudo de Lilian
Mathieu está publicado na Revista Francesa de Sociologia, tanto em francês como
em inglês.
Em 2015, pouca coisa mudou
Neste sábado, o jornal Lyon
Capitale publicou reportagem sobre os eventos e o protesto organizados pelo
Strass: “Quarenta anos mais tarde, as prostitutas Lyon exigem um fim à
repressão do trabalho sexual. ‘Revogação do delito de solicitação e retirada do
projeto de lei de penalização clientes.’ ‘Criminalizar os clientes penaliza as
trabalhadoras diretamente, porque menos clientes significa menos receita.’ De
acordo com o Strass, essa lei incentiva as prostitutas a trabalharem em locais
menos iluminados, menos visíveis e, portanto, torna-as mais vulneráveis. Elas
também pedem ‘a regularização de prostitutas em situação irregular e melhoria
da ajuda social’ e ‘a revogação das leis sobre contratos’, que podem
criminalizar as prostitutas: ‘Se duas trabalhadores sexuais alugam um quarto
para compartilhar seu trabalho, elas são consideradas cafetinas uma da outra.'”
Em separado, vamos publicar em
português o manifesto do sindicato Strass (“Saint Nizier 1975-2015: 40 Anos de
Lutas”) e o programa do encontro. Para dar mais água na boca: a entidade de
saúde comunitária Cabiria, de Lyon, organizou uma exposição sobre os
acontecimentos de 1975. As fotos em preto-e-branco, feitas durante a ocupação
de St. Nizier, são da cineasta feminista Carole Roussopoulos (1945-2009),
fundadora do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir.
Mundo Invisível pretendia enviar
representantes ao encontro de Lyon, para que pudéssemos aprender alguma coisa
com as companheiras do movimento internacional, mas não deu. Ainda estamos
engatinhando… Mas chegaremos lá.
Fonte: http://www.mundoinvisivel.org/
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