quinta-feira, 4 de junho de 2015

Enquanto ainda é tempo... De Joana D’ Arc a Helder Câmara -por Ivone Gebara-

Fiquei me perguntando por que em vez de beatificação o Vaticano não incentivasse o estudo de sua vida e seus textos? E os seminários e institutos de teologia, sobretudo do nordeste do Brasil, não fariam de suas obras textos teológicos obrigatórios? Por que os Institutos de Pastoral não o tomariam como referência capital para a compreensão dos rumos da Igreja Católica no Brasil e na América latina no século XX? Por que os historiadores não tomariam sua vida e ação como marcantes na história recente do Brasil?


A imprensa nacional e internacional tem divulgado nesse ano o início do processo de beatificação de D. Helder Câmara como uma boa notícia para muitos. Do Recife para o mundo as notícias são divulgadas quase em tempo real. Missa solene marca o início do processo de beatificação, processo esse aprovado rapidamente pelo Vaticano até para espanto de muitos.

Embora saibamos da existência de um bom grupo que condenava as ações de Dom Helder como bispo e continua ainda a condená-lo como candidato a beato e talvez santo, creio que a maioria das opiniões vai na linha de uma entusiasta aprovação de seu nome. Estão convencidos que a Igreja Católica liderada pelo Papa Francisco está num extraordinário momento de reconhecimento de profetas contemporâneos e marca essa atitude elevando-os aos altares. Faz assim justiça ao símbolo que representam na luta pelos direitos humanos e o cuidado evangélico dos pobres. Tenho muitos amigos e amigas que são parte desse grupo de entusiastas e isso me coloca até numa posição delicada diante deles pelo fato de abrir brechas ao entusiasmo pensando de outra maneira. Mas assim mesmo creio que é importante refletir um pouco mais sobre as conseqüências da beatificação. Proponho este breve texto para abrir um diálogo com os leitores e leitoras como quem conheceu D. Helder e trabalhou por muitos anos na Arquidiocese de Olinda e Recife. Pensar faz bem mesmo quando abala algumas certezas que imaginávamos tranquilas.

Um dia desses, de repente caiu-me sob os olhos um texto do escritor português Eça de Queiroz[1]sobre Joana D’Arc que viveu no século XV. O texto provocou espanto por sua atualidade visto que tinha sido escrito há mais de um século. Reproduzo apenas algumas frases.

"Meus amigos aconteceu uma desgraça a Joana D’Arc. A donzela de Orleães, a boa e forte Lorena, salvadora do Reino de França, foi beatificada pela Igreja de Roma. (...) "Com sua entrada no céu ela está perdendo o prestígio que tinha na terra, e sua santidade irremediavelmente estragou sua popularidade”. (...) "sua ação no mundo era de guerreira que assalta as muralhas, ergue um pendão, desbarata hostes...”

(...) "o clero, esse não tinha senão interesses em que se estabelecesse um pesado silêncio sobre aquela santa que ele queimara, por um desses enganos tão freqüentes nos cleros constituídos, desde o pavoroso engano do Gólgota”.

(...) "A Igreja apagou juridicamente a fogueira que trinta anos antes acendera”.

Depois de ler o espirituoso texto de Eça de Queiroz narrando aspectos da vida de Joana D’Arc e de sua recuperação pela Igreja Católica não pude deixar de aproximá-la em imaginação de Dom Helder. Um temor se apoderou de mim e uma imensa pena de constatar o quanto nossa memória é curta e limitada em relação à história recente vivida. Não aprendemos com a vida e nem da História. Seguimos repetindo os mesmos comportamentos quase sem crítica, como se fossem acontecimentos desligados de nosso passado. Joana D’Arc de ontem me aproximou do hoje que estamos vivendo em relação à beatificação de Dom Helder Câmara. Helder Câmara arcebispo de Olinda e Recife silenciado pela ditadura, perseguido e acusado de cúmplice do comunismo, cujo nome era proibido nos jornais será beatificado! Lembrei-me que o chamavam ainda em vida de ‘rebelde’, de ‘bispo vermelho’, de ‘radical e revolucionário’. Lembrei-me de seus discursos sobre a justiça como novo nome da paz, de sua indicação para Prêmio Nobel da Paz por duas vezes.

Irromperam igualmente em minha memória cenas de aclamação popular nas periferias do Recife... Ele caminhando nos becos e na lama até descalço, e as crianças gritando Don Edis, Don Edis, pois não sabiam dizer Helder. Lembrei-me também de Padre Henrique seu íntimo colaborador, responsável pela Pastoral da Juventude, arrastado pelas ruas do Recife e covardemente assassinado... Pensei em tantos outros conhecidos e conhecidas presos e perseguidos por sua postura política e sua ligação com Dom Helder.

Fiquei me perguntando por que em vez de beatificação o Vaticano não incentivasse o estudo de sua vida e seus textos? E os seminários e institutos de teologia, sobretudo do nordeste do Brasil, não fariam de suas obras textos teológicos obrigatórios? Por que os Institutos de Pastoral não o tomariam como referência capital para a compreensão dos rumos da Igreja Católica no Brasil e na América latina no século XX? Por que os historiadores não tomariam sua vida e ação como marcantes na história recente do Brasil?

Mas, isso não interessa assim como não interessava ao clero do tempo de Joana D’Arc que ela fosse reconhecida como aquela que expulsou o "inimigo da França”, a poderosa Inglaterra. Apropriaram-se de sua história e fizeram-na uma milagreira enviada de Deus e venerada pela Igreja. Santa nos altares, os fiéis não mais saberiam de sua história real, mas apenas acenderiam velas e fariam oferendas para obter favores. Não mais seria representada como camponesa ou como guerreira, não alertaria mais o povo contra as alienações políticas e a submissão aos poderes desse mundo, não daria mais força às mulheres para que se abrissem a horizontes mais amplos. Subida ou elevada aos altares, vestida de branco e com flores na cabeça teria a marca da submissão aos poderes dominantes da religião. Evitaria conflitos e, sobretudo permaneceria sob controle eclesiástico. Ela santa, renderia dinheiro aos cofres das igrejas e a seus aliados. Venderia santinhos, estatuetas, missas, água benta em garrafas com sua imagem estampada. Incentivaria até os albergues que recebem peregrinos vindos de longe. Foi mais ou menos isso que aconteceu.

Temo que aconteça o mesmo ou algo parecido com nosso querido Dom Helder Câmara. Para beatificá-lo os hierarcas exigirão um milagre, provavelmente a cura de alguma doença... Mas, não será a doença social que Dom Helder combateu, não será a vitória sobre a mentira e a corrupção, não será o estancamento da fome no mundo como ele tanto desejou. Não estou criticando as necessidades, queixumes e lamentos de tantos sofredores e sofredoras e nem sou contra as pequenas curas e os milagres dos quais necessitamos, muito embora seja crítica de certos procedimentos institucionais. Estes procedimentos, inclusive certas formas de incentivo e cultivo da religiosidade extirpam a audácia da busca da liberdade, matam a vontade da união em favor de muitos, ‘viciam o cidadão’, como cantava Luis Gonzaga ao lembrar a vida sofrida do cidadão nordestino.



Por tudo isso, não quero que reduzam Dom Helder a uma estátua de gesso ou a um santinho diante do qual os fiéis se ajoelham para pedir coisas ou curas. Isto significaria colocá-lo numa espécie de camisa de força da santidade estabelecida. Parece-me quase aviltante para quem viveu de forma diferente e falou para o povo de forma diferente inspirado pela força de seu espírito criativo e pela capacidade extraordinária de entender os conflitos do mundo. Não mandava acender velas, mas pedir forças e lucidez para a organização popular. Não mandava fazer promessas, mas lutar para que o bem comum seja respeitado. Incentivava a ‘palavra’ livre, a quebra do silencio diante da exploração e da humilhação humana de muitos tipos. Ele que um dia até poetizou sobre um sonho no qual o Papa enlouquecido distribuía todo o dinheiro do Vaticano aos pobres e que jogando sua tiara no rio Tibre despedia embaixadores credenciados de seus postos internacionais para que o Evangelho de Jesus vivesse... Ele que denunciava os calabouços políticos e visitava os prisioneiros e suas famílias... Ele que não hesitava em declarar prostitutas e pobres como os primeiros no Reino de Deus, se vê agora quase aprisionado em ritos e fumaça de odores de incenso. E o pior, aprisionado agora pelos seus pares, por suas leis de santidade ou de beatitude...

Suspeito que nessa forma de ‘beatificação’ pouco a pouco o roubarão do povo, de sua história e o entregarão ao rentável culto perfeitamente controlável pelas autoridades financeiras do mundo. Farão dele um distribuidor de graças, uma espécie de representante da ‘empresa divina’ e sua força ainda tão presente parará de incomodar. Misturarão água ao vinho bom que ele nos oferecia e ficará sem seu particular sabor, sem sua personalidade própria, sem seu carisma e força.

Não! Por favor, deixem Dom Helder no meio do povo e para o povo. Lembrem-no nas capelinhas e nos movimentos de evangelização que ainda subsistem. Lembrem-se de sua contribuição na sociologia, na política, na ecologia, na teologia, na poesia. Deixem-no ser leitura de ateus, muçulmanos, judeus, budistas... Deixem-no amigo dos terreiros de candomblé e das velhas mães de santo... Deixem-no ser apenas ‘irmão dos pobres’.

Não permitamos que o povo acredite que o reconhecimento oficial da santidade é sinal de acolhida e de propagação dos reais valores que sustentaram a vida de nosso Dom. Ao contrário é artifício para esquecermos sua memória evangélica, sua profecia, seu atrevimento em denunciar o roubo, a corrupção e a miséria como formas de produção da violência no mundo. Vão fechar os olhos do povo, vão iludi-lo mais uma vez com algo que aparentemente e talvez enganosamente seja bom.

Esse mecanismo canônico de reconhecimento da santidade é obsoleto. Além de arrancar do povo a responsabilidade coletiva por sua história, entrega aos céus e a seus ‘gordos’ representantes o poder de construir santuários e casas de milagres. Despolitizam o povo e o remetem a forças mágicas para além da história como únicas capazes de estancar os muitos males que os assolam. Intuo que os hierarcas gostam muito de ver a multidão de fiéis se aglomerar nas igrejas e nas procissões... De fazer crer que o povo precisa de religiosidade dependente e de ajuda celeste controlada. Têm prazer e emoção de ver muita gente ajoelhar-se diante de uma estátua, atraída talvez pela nova história que será contada, uma história em que a estátua sorridente chamada de beato Helder Câmara é reduzida a um ‘fazedor de milagres’. Tudo isto parece reforçar o enfraquecido poder do clero, lhes dá reconhecimento popular, força social e política. Não seriam eles ‘ídolos de pés de barro’, aqueles que se colocam sobre pedestais com vestes douradas para serem vistos como dirigentes do povo?

Não deixemos o povo acreditar que afinal bispos, cardeais e clero, agora adquirindo enorme lucidez e verdade, de repente reconhecem as posições de Dom Helder como pautadas no Evangelho. As coisas são bem mais misturadas e complexas do que imaginamos. Eles, membros de uma corporação ‘sagrada’, que no passado recente o condenaram e o chamaram de comunista, que nunca quiseram lhe entregar o chapéu cardinalício e nem colaborar para que recebesse o Nobel da paz... Eles que interferiram em sua Arquidiocese, desmantelaram sua pastoral, seu Instituto de Teologia e expulsaram muitos colaboradores/as... Eles que o repreenderam por sua condenação ao capitalismo que arrancava da maioria a dignidade de viver... Eles, agora querem vê-lo nos altares, talvez até mudando a sua história cotidiana. Depois de morto o glorificam, depois de morto contam suas virtudes, pois, depois de morto ele não faz mais medo...

Muitos dirão ‘não são mais os mesmos’. Agora são outros tempos, outras circunstâncias e outras pessoas. Agora é o povo que deseja isso. Agora temos um Papa que ama os pobres, as ruas e a libertação. Agora enfim, o valor de Dom Helder é reconhecido. Embora possa entender a diferença dos tempos e das pessoas creio que isso não anula o direito e a responsabilidade de refletir sobre beatificações, canonizações e suas conseqüências sociais. Não nos esqueçamos, os hábitos e processos devocionais, sua utilização e os artifícios do poder religioso não mudam rapidamente na história humana. Nossas fraquezas usam dos mesmos vícios do passado embora lhe dêem roupagem diferente. Por isso temo pelo povo e pela memória de Dom Helder.

Enquanto ainda é tempo, façamos uma pausa salutar para refletir, pesar nossos atos e interferir nas decisões de uma Igreja que ainda é chamada ‘Povo de Deus’.

Maio 2015.


Fonte: Adital

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