Torcedores referendam as ofensas
racistas ao vaiar a luta não do atleta, mas do homem. Um homem que se nega a
fazer do episódio uma atração de circo.
por Matheus Pichonelli
Mário Lúcio Duarte Costa. Guardem
este nome. Já vou chegar a ele. Antes, quero dizer que acompanhei, pela tevê, o
fim da partida entre Grêmio e Santos, em Porto Alegre, pelo Campeonato
Brasileiro. O empate sem gols revela o que foi o duelo, insosso, de resultado
nem bom nem mau para nenhuma das equipes. Pelos relatos, descubro que o goleiro
Aranha foi o melhor em campo, com ao menos duas boas defesas que garantiram o
ponto fora de casa. A crônica esportiva termina aqui. A História, com H
maiúsculo, não.
Aranha acabava de voltar ao palco
onde, semanas atrás, fora hostilizado por ofensas racistas vindas de parte da
arquibancada gremista. De lá saíram gritos e imitações de macaco. Eram uma
referência à sua cor de pele, negra. O goleiro pediu a interrupção da partida,
vencida pelo Santos por 2 a 0. Deixou o campo atordoado. "Dói", dizia
ele à beira do campo.
Por não aceitar a ofensa,
relatada aos árbitros da partida, Aranha criou constrangimento às autoridades
esportivas. Elas se viram obrigadas a eliminar o Grêmio da Copa do Brasil
devido ao comportamento de sua torcida.
Antes do reencontro de
quinta-feira 18, no mesmo palco, um país inteiro passou a debater um tema ainda
entranhado nas relações sociais. Tão entranhado que se naturalizou, a ponto de,
muitas vezes, nem sequer incomodar.
Aranha se incomodou. E não fez
questão de esconder.
Como preço, é provável que tenha
passado alguns dos piores dias de sua vida. Depois daquele jogo, uma das
torcedoras, flagrada aos gritos de "macaco" na arquibancada, passou a
sofrer ameaças nas redes sociais. Foi demitida e teve a casa incendiada por um
maluco. Ela não teve tempo de se arrepender ou calcular a dimensão de seu ato:
o justiçamento de sempre, um erro em qualquer lado da história, tirava dela o
direito de ser julgada por uma lei já existente. Cassara, com mandado próprio,
o direito à vida da torcedora.
De repente, Aranha era o pivô de
tanto ódio. Não fosse seu "melindre", a torcedora estaria a salvo, o
Grêmio seguiria na Copa do Brasil e o racismo voltaria ao rol de temas
"menores" de um país que, nas palavras de muita gente autorizada, tem
problemas mais sérios para resolver. Entre os defensores da tese está o técnico
do Grêmio, Luiz Felipe Scolari, que até ontem dirigia a seleção brasileira. Ele
tratou a reação de Aranha como uma "esparrela", um estardalhaço
promovido por quem tentava se vitimar para prejudicar alguém - no caso, os
gremistas. Pelé, maior jogador de todos os tempos, também condenou o goleiro
com argumentos do arco da velha: se ele, o Atleta do Século, tivesse de parar
uma partida toda vez que era chamado de "macaco" não haveria mais
futebol. Segundo ele, quanto mais se fala em racismo, mas ele se aguça.
Pelé, em seu tempo, não parou o
jogo, o racismo voltou para debaixo do tapete, e a fatura segue nas costas de
Aranha e seus contemporâneos, que hoje tentam interromper uma partida que deveria
ter sido parada há muito tempo.
Não bastasse tanta ofensa - à sua
cor, ao seu caráter e à sua inteligência - Aranha voltou a campo ontem como
vilão. Desta vez, não ouviu xingamentos racistas das arquibancadas, mas vaias.
Muitas. Cada uma delas era o triunfo do direito de ofender sobre o direito de
se sentir ofendido. Ou de reagir à ofensa. As vaias eram o referendo aos gritos
de "macaco" do último duelo. Eram o recado de que tanto faz o que
existe debaixo da epiderme: o que vale é ganhar o jogo. É se dar bem. É levar
vantagem. E qualquer reação a isso é apenas “esparrela”.
As vaias foram o trunfo do país
de Pelé e Felipão. Um país que joga às costas da vítima o peso de ser ofendido.
Um país que valida, pela ignorância, o cientificismo torto de séculos passados
que colocavam o negro no meio do caminho entre os símios e o homem branco. Este
cientificismo baseou a ideia de supremacia racial e influenciou algumas das
maiores atrocidades da História. Por isso ela ofende. Por isso chamar um branco
alto de “girafa” não tem o mesmo peso que chamar um negro de “macaco”: apenas
um deles fora escravizado pela História.
A manifestação de ontem da
torcida gremista era a manifestação da derrota: a derrota de Aranha, a derrota
de um país inteiro que apenas finge que deixou de açoitar seus antigos
escravos. Apesar disso, ele jogou. Foi o melhor da partida, segundo a crônica
esportiva. A mesma crônica que, ao fim do duelo, cercou o jogador para
arremessa-lo ao centro do picadeiro com uma única pergunta: “como se sente?”
Acossado, Aranha tentava explicar
que deixava o campo entristecido pela reação da torcida, que referendava a
ofensa do último duelo. Mas vaia era vaia, admitia, e contra ela não tinha o
que fazer.
Um dos repórteres, em tom de
deboche, chegou a questionar: “E qual a diferença?”.
“Você sabe a diferença”,
respondeu Aranha.
“Não sei: me diga”, desafiou o
sujeito do microfone, como se não soubesse.
“Você acha certo o que
aconteceu?”, questionou o goleiro.
O repórter respondeu algo como
“não tenho que achar nada”. E Aranha, mais uma vez, deixou o campo balançando a
cabeça em tom de incredulidade. Tinha toda razão para ver e não crer.
Já nos vestiários, um pouco mais
calmo, ele voltou a ser questionado sobre o assunto. Os repórteres queriam
saber por que ele se negava a se encontrar com a torcedora que o ofendera e que
estava sedenta por um abraço e pelo seu perdão. O circo dava ao goleiro o papel
de Meursault, o personagem de O Estrangeiro, de Albert Camus, condenado não por
um crime, mas por não ter chorado no enterro da mãe. O circo queria ver o
goleiro chorar. De preferência, abraçado com a agressora. Queria ver o circo
pegar fogo. Aranha, de novo, novamente, outra vez, respirou fundo. E respondeu
algo como: “Ir lá, abraçar ela, e toca uma música e tudo mais. Aquela cena toda
e só depois dos comerciais… Isso pra mim não adianta. Eu não quero".
Aranha talvez não soubesse, mas
acabava de desmontar a “esparrela” armada para ele. Percebeu, muito antes dos
homens de seu tempo, o que era um circo. Um circo midiático. E o rejeitou. Como
rejeitou a ofensa que agora tantos querem minimizar como “melindre”.
Aranha parou o jogo, um jogo que
segue perdendo, para mostrar simplesmente que atrás das cortinas de um circo
que não criou existe um homem. Este homem se chama Mário Lúcio Duarte Costa,
seu nome de batismo. Que é maior que a alcunha. Que é maior que o próprio
esporte. Que não merece ouvir o que ouviu. E que parece disposto a interromper
o jogo quantas vezes forem necessárias. Até que o recado seja entendido. Até que
um dia a história mude. De vez. Mário Lúcio Duarte Costa acabava de fazer
História.
Em tempo: Triste o país que
precisa de herois. Mas, se não é um, Aranha é inegavelmente o rosto de uma luta
tão justa quanto necessária. Acho que já gastei minha cota de citações a
Caetano Veloso neste ano, mas é impossível assistir à trajetória do goleiro
santista sem lembrar da música "O Heroi", do álbum Cê:
não quero jogar bola pra esses
ratos
já fui mulato, eu sou uma legião
de ex mulatos
quero ser negro 100%, americano,
sul-africano, tudo menos o santo
que a brisa do brasil briga e
balança
e no entanto, durante a dança
depois do fim do medo e da
esperança
depois de arrebanhar o marginal,
a puta
o evangélico e o policial
vi que o meu desenho de mim
é tal e qual
o personagem pra quem eu cria que
sempre
olharia
com desdém total
mas não é assim comigo.
é como em plena glória espiritual
que digo:
eu sou o homem cordial
que vim para instaurar a
democracia racial
eu sou o homem cordial
que vim para afirmar a democracia
racial
eu sou o herói
só deus e eu sabemos como dói
Fonte: Carta Capital
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