Durante a tarde do dia 23 de Maio, sexta-feira, uma operação
policial invadiu no centro de Niterói o prédio em cima da Caixa Econômica,
arrombando portas e adentrando violentamente e interditando apartamentos de 4
andares onde funcionavam salas de prostituição auto-organizadas e residências
de diversas mulheres trabalhadoras. Várias violações foram relatadas: mulheres
agredidas, violentadas, abusadas, estupradas, seus pertences roubados,
torturadas dentro do ônibus que as conduziu amontoadas, em 5 ou 6 viagens, até
a delegacia, elas foram obrigadas a se deixarem fotografar pela imprensa e
algumas acabaram detidas por terem tentado impedir essa exposição. Detidas como
evidente tática de intimidação delas e das demais presentes.
“Roubaram 500 reais meu, dela, 900, fora as meninas que eles
obrigaram a fazer oral neles lá. Tudo isso. Doze malas de cerveja que estava na
minha geladeira sumiu, e ainda ficaram esculhambando falando que iam fazer
churrasquinho. Fizeram programa, não pagaram, e depois falaram que a casa caiu.
Safados…A gente não está roubando, só estamos dando o que é nosso. Prostituição
até onde eu sei não é crime. Crime é o que eles fazem com a gente.”
Os fatos que relatamos a seguir dizem respeito a violações
de direitos humanos e arbitrariedades cometidas contra mulheres e cidadãs,
muitas das quais presenciadas por esta signatária e todas denunciadas pelas
próprias vítimas a esta e a outros acompanhantes, in situ, do caso.
Na última sexta-feira, dia 23 de maio do corrente, em torno
das 14h, policiais da 76 DP e da Delegacia Especializada de Atendimento à
Mulher – DEAM de Niterói, com apoio de agentes de outras 13 delegacias do
Estado do Rio de Janeiro, invadiram o prédio de número 327 da Avenida Amaral
Peixoto, em Niterói, arrombando portas e interditando apartamentos onde
profissionais do sexo prestam serviços de forma autônoma, algumas também
residindo nos locais.
Na operação, foram colocadas armas na cabeça de várias das
vítimas, houve agressões e até estupros, roubo de pertences pessoais, incluindo
dinheiro, intimidações, além da condução violenta de cerca de 100 mulheres e
três homens para ônibus que os levaram para a 76 DP. Lá, as mulheres ficaram
por horas a fio, testemunhando a chegada ininterrupta de várias outras – que
entravam na DP em fila indiana, enroladas em cobertores – , até começarem a ser
liberadas a partir de 17h. Duas delas, Bruna e Preta, foram trancafiadas em
celas, enquanto as outras gritavam “racista, racista” para os policiais.
A operação foi conduzida pelo delegado Glaucio Paz, da 76
DP, por ordem da juíza Rose Marie, da 1ª Vara Criminal. No entanto não há
nenhuma informação sobre quais seriam os crimes investigados.
Seja como for, parece possível ser de rufianismo, no
entanto, contra mulheres auto-organizadas que, ou alugam salas para trabalhar
individualmente ou quotizam a despesa de aluguel das salas com até duas ou três
outras colegas. Uma das prostitutas disse que foi levada a um banheiro e
intensamente pressionada a dizer que era “cafetina”.
A alegação de que a interdição do prédio ocorreu por “ter
sido constatado péssimo estado de conservação das instalações” choca-se com o
documento afixado em portas arrombadas, “Edital de Interdição Parcial”, (anexo)
em que consta a informação de que ainda será feita perícia e vistoria.
Ao mesmo tempo, a ação policial teve como alvo apenas os
quatro andares do prédio onde trabalham cerca de 400 prostitutas, sem que
nenhum outro apartamento, nos seis andares restantes, tenha sido interditado.
Eles começaram a bater na porta, querendo arrombar porta, a
gente abriu, eles saíram entrando, meterem a mão em tudo, não se identificaram,
meterem mão no dinheiro…não tinham mandado não se apresentaram como policias,
nem falaram o que estavam fazendo lá, a gente questionou, questionei e ele
puxou meu cabelo e mandou ficar calada…pegou tudo que estava lá e saiu…Depois
mandou ficar no corredor…as outras meninas ficaram lá e levaram as meninas para
o banheiro para fazer sexo oral…Trataram a gente igual a bandido, baterem em
muita gente, muita gente apanhou na operação.
(depoimento completo online:
https://www.youtube.com/watch?v=sTzHr_A6-H8)
A operação inviabilizou, pelo menos temporariamente, o
trabalho das mulheres no local e a moradias das que ali habitavam. O edital de
interdição parcial tenta justificar-se pela “confirmação de utilização do local
de forma reiterada para prática de crime”, embora o número do apartamento tenha
sido registrado na hora – a mesma prática que utilizaram para mandados de
intimação, duas semanas antes. E mais grave, tanto os mandados de intimação
como de interdição são genéricos e não indicam o crime que estaria implicado.
Um policial afirmou que “a juíza do inquérito mandou não
levar ninguém pra DP, mas a gente trouxe” – reconhecendo assim que não tinha
sequer autorização judicial para esse tipo de ação.
Em abril, em outra operação, mais de 20 trabalhadoras do
mesmo prédio foram levadas, pelos policiais da mesma DP, ao presídio de Bangu,
sem que houvesse e haja sequer processo judicial.
Dentro da delegacia, ainda no meio da tarde desse fatídico
dia 23 de maio, outra cena não passaria desapercebida por nós e nem pela
platéia mais ampla que, perplexa, assistia às interações tensas entre policiais
inabaláveis e prostitutas indignadas com o tratamento brutal, humilhante e carente
de qualquer explicação clara, que as levava até ali. A cena em questão envolvia
o inspetor do caso e um dos advogados presentes, que o interpelava, diante de
todos na recepção da delegacia, para que o deixasse entrar e acompanhar os
eventuais depoimentos das mulheres. Diante do seu pedido, fundamentado como
sendo um direito de qualquer cidadão, o inspetor contra-argumentou de modo
surpreendente, dizendo para que o advogado “não procurasse briga que não era
sua”. Ora, tal sentença proferida por um agente policial e precisamente
endereçada a um advogado expressa total ignorância ou um total desrespeito ao
estado democrático de direito, onde um advogado, por definição, assume garantir
os direitos (ou, de acordo com o inspetor de polícia, “brigas”) de todo e
qualquer cidadão.
É intolerável que práticas autoritárias características
daquelas recorrentes durante a ditadura militar permaneçam entre nós e que se
aborde a prostituição com uma visão arcaica e vitimizadora de suposta
exploração de mulheres autônomas e auto-organizadas. A prostituição, vale
lembrar, é inclusive uma ocupação reconhecida pelo Ministério do Trabalho e
Emprego, na Classificação Brasileira de Ocupações, sob o número 5.198, desde
2002.
Além de tudo até aqui relatado, há também denúncias de que
essas ações seriam movidas por interesses econômicos e imobiliários, sobretudo
de “higienização” da região central de Niterói, com o amparo econômico,
político e judicial dos vários atores engajados nesse mais recente projeto de
“requalificação” urbana da região metropolitana.
As profissionais se mantêm mobilizadas, tendo realizado
manifestação nesta segunda-feira, 26 de maio, diante da delegacia e do prédio
com os apartamentos interditados.
A revolta se justifica tanto pela forma como foram
(des)tratadas como pela perda da estrutura que permite o seu ganha-pão. Por
isso, elas vêm carregando faixas com os dizeres: “Desempregaram mais de 500
meninas”, “Tira a mão de mim, deixa eu trabalhar, amanhã é outro dia, tenho
conta pra pagar” e, especialmente, “Prostituição não é crime”.
Conclamamos, por fim, esta Superintendência a dar a devida
atenção a esta situação gravíssima de abusos e violações, que mancha de
vergonha um Estado ciente dos enormes passos que vêm dando para acabar com
impunidades e humilhações que o caracterizam como um “Estado indecente”e que há
décadas insistem em perdurar.
Rio de Janeiro, 26 de maio de 2014.
Nota de repúdio da
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA
Nota em repúdio à ação policial contra prostitutas em Niterói
(RJ)
A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids
(ABIA) repudia veementemente as graves violações de direitos protagonizadas por
policiais civis contra quase 200 prostitutas, frequentadores e moradores de um
prédio em Niterói, no último dia 23 de maio. Durante a invasão, realizada por
policias sem mandado, ocorreram agressões, roubos e estupros relatados pelas
prostitutas que configuram abuso de poder da força policial.
Após serem humilhadas, essas mulheres foram presas e levadas
à 76ª Delegacia para averiguação. É intolerável que, no ano em que se relembra
os 50 anos da ditadura militar, esta tática da averiguação, comum durante
aquele período obscuro, seja utilizada nos dias atuais.
“Não mostraram papel, não mostraram nada. Mandaram todo mundo tirar roupa para poder examinar,
mandaram ficar baixando três vezes. Reviraram tudo, tiraram tudo... Uma
policial ficou enfiando a mão em todo o mundo com a mesma luva...E detalhe, o
dinheiro que estava lá sumiu. Pediram mil reais para a gente não ser
incomodada, para poder ficar lá embaixo trancada [até o final da batida],
determinou o horário para dar os mil reais, mas a gente não tinha nada porque
tinham tirado tudo...Bateram numa menina dentro do ônibus, acho tudo isso uma
palhaçada...”
“Não mostraram papel, não mostraram nada. Mandaram todo
mundo tirar roupa para poder examinar, mandaram ficar baixando três vezes.
Reviraram tudo, tiraram tudo… Uma policial ficou enfiando a mão em todo o mundo
com a mesma luva…E detalhe, o dinheiro que estava lá sumiu. Pediram mil reais
para a gente não ser incomodada, para poder ficar lá embaixo trancada [até o
final da batida], determinou o horário para dar os mil reais, mas a gente não
tinha nada porque tinham tirado tudo…Bateram numa menina dentro do ônibus, acho
tudo isso uma palhaçada…”
Repudiamos ainda o arrombamento e interdição ilegal dos
apartamentos em Niterói, local de trabalho dessas mulheres. Este ato viola o
direito de trabalhadoras autônomas exercerem a atividade profissional do sexo
livremente. Essas mulheres estão neste momento sem um local para trabalhar e
morar.
A ABIA entende que esta operação ilegal faz parte do
alargamento dos processos de “limpeza urbana” que inicialmente tiveram a Copa
do Mundo como pretexto. O Brasil está entre os países que mais cometeram
violações dos direitos humanos durante os preparativos para o mundial.
Chamamos atenção para que a Copa do Mundo e as Olimpíadas
não sejam argumentos políticos para instalar um pânico moral no país entorno da
prostituição. Executar leis contra a exploração sexual de crianças e
adolescentes e o tráfico de pessoas não pode servir de pretexto para repressão
do trabalho sexual adulto e consensual.
Lembramos que a prostituição é devidamente legalizada e
reconhecida, desde 2002, na Classificação Brasileira de Ocupações, do
Ministério do Trabalho e Emprego. A prostituição não é crime no Brasil.
Qualquer pessoa maior e capaz pode, livremente, se prostituir, assim como toda
pessoa em igual condição pode utilizar esse serviço, pertencente à esfera
íntima dos/as envolvidos/as.
A criminalização dessas profissionais, além de configurar
perseguição e violações de múltiplos direitos, potencializa as condições de
vulnerabilidade dessas mulheres, com destaque para o HIV e a AIDS. Segundo
estudos divulgados pela Organização Mundial de Saúde em parceria com o Banco
Mundial, há relações significativas entre a criminalização da prostituição, as
violações dos direitos, o sexo desprotegido e a infecção pelo HIV.
Onde o trabalho sexual é criminalizado, a resposta ao HIV
tem sido frustrada e limitada por forças estruturais que incluem o estigma, a
discriminação e a violência física. A ABIA, em parceria com a Ong Davida e com
o Observatório da Prostituição da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), realiza um mapeamento das violações dos direitos dessas profissionais
no país com o propósito, entre outros, de fortalecer o enfrentamento da
epidemia do HIV e da AIDS.
No Dia Internacional das Prostitutas, a ser comemorado no
próximo dia 2 de junho, a ABIA se soma às vozes que clamam por justiça para as
profissionais do sexo que sofreram violações de direitos em Niterói e em outras
cidades. Exigimos que o Estado brasileiro implemente políticas públicas que
garantam a promoção de direitos e proteção das prostitutas como trabalhadoras –
e não como vítimas –,bem como o fim do abuso, da repressão, da discriminação e
outras formas de violência contra essas profissionais.
Rio de Janeiro, 29 de maio de 2014
Fonte:www.umbeijoparagabriela.com
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