sexta-feira, 30 de maio de 2014

Violações graves contra os direitos humanos de prostitutas durante ação policial


Durante a tarde do dia 23 de Maio, sexta-feira, uma operação policial invadiu no centro de Niterói o prédio em cima da Caixa Econômica, arrombando portas e adentrando violentamente e interditando apartamentos de 4 andares onde funcionavam salas de prostituição auto-organizadas e residências de diversas mulheres trabalhadoras. Várias violações foram relatadas: mulheres agredidas, violentadas, abusadas, estupradas, seus pertences roubados, torturadas dentro do ônibus que as conduziu amontoadas, em 5 ou 6 viagens, até a delegacia, elas foram obrigadas a se deixarem fotografar pela imprensa e algumas acabaram detidas por terem tentado impedir essa exposição. Detidas como evidente tática de intimidação delas e das demais presentes.

  

“Roubaram 500 reais meu, dela, 900, fora as meninas que eles obrigaram a fazer oral neles lá. Tudo isso. Doze malas de cerveja que estava na minha geladeira sumiu, e ainda ficaram esculhambando falando que iam fazer churrasquinho. Fizeram programa, não pagaram, e depois falaram que a casa caiu. Safados…A gente não está roubando, só estamos dando o que é nosso. Prostituição até onde eu sei não é crime. Crime é o que eles fazem com a gente.”

Os fatos que relatamos a seguir dizem respeito a violações de direitos humanos e arbitrariedades cometidas contra mulheres e cidadãs, muitas das quais presenciadas por esta signatária e todas denunciadas pelas próprias vítimas a esta e a outros acompanhantes, in situ, do caso.

Na última sexta-feira, dia 23 de maio do corrente, em torno das 14h, policiais da 76 DP e da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – DEAM de Niterói, com apoio de agentes de outras 13 delegacias do Estado do Rio de Janeiro, invadiram o prédio de número 327 da Avenida Amaral Peixoto, em Niterói, arrombando portas e interditando apartamentos onde profissionais do sexo prestam serviços de forma autônoma, algumas também residindo nos locais.

Na operação, foram colocadas armas na cabeça de várias das vítimas, houve agressões e até estupros, roubo de pertences pessoais, incluindo dinheiro, intimidações, além da condução violenta de cerca de 100 mulheres e três homens para ônibus que os levaram para a 76 DP. Lá, as mulheres ficaram por horas a fio, testemunhando a chegada ininterrupta de várias outras – que entravam na DP em fila indiana, enroladas em cobertores – , até começarem a ser liberadas a partir de 17h. Duas delas, Bruna e Preta, foram trancafiadas em celas, enquanto as outras gritavam “racista, racista” para os policiais.


A operação foi conduzida pelo delegado Glaucio Paz, da 76 DP, por ordem da juíza Rose Marie, da 1ª Vara Criminal. No entanto não há nenhuma informação sobre quais seriam os crimes investigados.

Seja como for, parece possível ser de rufianismo, no entanto, contra mulheres auto-organizadas que, ou alugam salas para trabalhar individualmente ou quotizam a despesa de aluguel das salas com até duas ou três outras colegas. Uma das prostitutas disse que foi levada a um banheiro e intensamente pressionada a dizer que era “cafetina”.

A alegação de que a interdição do prédio ocorreu por “ter sido constatado péssimo estado de conservação das instalações” choca-se com o documento afixado em portas arrombadas, “Edital de Interdição Parcial”, (anexo) em que consta a informação de que ainda será feita perícia e vistoria.

Ao mesmo tempo, a ação policial teve como alvo apenas os quatro andares do prédio onde trabalham cerca de 400 prostitutas, sem que nenhum outro apartamento, nos seis andares restantes, tenha sido interditado.
Eles começaram a bater na porta, querendo arrombar porta, a gente abriu, eles saíram entrando, meterem a mão em tudo, não se identificaram, meterem mão no dinheiro…não tinham mandado não se apresentaram como policias, nem falaram o que estavam fazendo lá, a gente questionou, questionei e ele puxou meu cabelo e mandou ficar calada…pegou tudo que estava lá e saiu…Depois mandou ficar no corredor…as outras meninas ficaram lá e levaram as meninas para o banheiro para fazer sexo oral…Trataram a gente igual a bandido, baterem em muita gente, muita gente apanhou na operação.
(depoimento completo online: https://www.youtube.com/watch?v=sTzHr_A6-H8)

A operação inviabilizou, pelo menos temporariamente, o trabalho das mulheres no local e a moradias das que ali habitavam. O edital de interdição parcial tenta justificar-se pela “confirmação de utilização do local de forma reiterada para prática de crime”, embora o número do apartamento tenha sido registrado na hora – a mesma prática que utilizaram para mandados de intimação, duas semanas antes. E mais grave, tanto os mandados de intimação como de interdição são genéricos e não indicam o crime que estaria implicado.

Um policial afirmou que “a juíza do inquérito mandou não levar ninguém pra DP, mas a gente trouxe” – reconhecendo assim que não tinha sequer autorização judicial para esse tipo de ação.

Em abril, em outra operação, mais de 20 trabalhadoras do mesmo prédio foram levadas, pelos policiais da mesma DP, ao presídio de Bangu, sem que houvesse e haja sequer processo judicial.

Dentro da delegacia, ainda no meio da tarde desse fatídico dia 23 de maio, outra cena não passaria desapercebida por nós e nem pela platéia mais ampla que, perplexa, assistia às interações tensas entre policiais inabaláveis e prostitutas indignadas com o tratamento brutal, humilhante e carente de qualquer explicação clara, que as levava até ali. A cena em questão envolvia o inspetor do caso e um dos advogados presentes, que o interpelava, diante de todos na recepção da delegacia, para que o deixasse entrar e acompanhar os eventuais depoimentos das mulheres. Diante do seu pedido, fundamentado como sendo um direito de qualquer cidadão, o inspetor contra-argumentou de modo surpreendente, dizendo para que o advogado “não procurasse briga que não era sua”. Ora, tal sentença proferida por um agente policial e precisamente endereçada a um advogado expressa total ignorância ou um total desrespeito ao estado democrático de direito, onde um advogado, por definição, assume garantir os direitos (ou, de acordo com o inspetor de polícia, “brigas”) de todo e qualquer cidadão.


É intolerável que práticas autoritárias características daquelas recorrentes durante a ditadura militar permaneçam entre nós e que se aborde a prostituição com uma visão arcaica e vitimizadora de suposta exploração de mulheres autônomas e auto-organizadas. A prostituição, vale lembrar, é inclusive uma ocupação reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, na Classificação Brasileira de Ocupações, sob o número 5.198, desde 2002.

Além de tudo até aqui relatado, há também denúncias de que essas ações seriam movidas por interesses econômicos e imobiliários, sobretudo de “higienização” da região central de Niterói, com o amparo econômico, político e judicial dos vários atores engajados nesse mais recente projeto de “requalificação” urbana da região metropolitana.

As profissionais se mantêm mobilizadas, tendo realizado manifestação nesta segunda-feira, 26 de maio, diante da delegacia e do prédio com os apartamentos interditados.

A revolta se justifica tanto pela forma como foram (des)tratadas como pela perda da estrutura que permite o seu ganha-pão. Por isso, elas vêm carregando faixas com os dizeres: “Desempregaram mais de 500 meninas”, “Tira a mão de mim, deixa eu trabalhar, amanhã é outro dia, tenho conta pra pagar” e, especialmente, “Prostituição não é crime”.

Conclamamos, por fim, esta Superintendência a dar a devida atenção a esta situação gravíssima de abusos e violações, que mancha de vergonha um Estado ciente dos enormes passos que vêm dando para acabar com impunidades e humilhações que o caracterizam como um “Estado indecente”e que há décadas insistem em perdurar.

Rio de Janeiro, 26 de maio de 2014.

Nota de repúdio da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA

Nota em repúdio à ação policial contra prostitutas em Niterói (RJ)

 A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) repudia veementemente as graves violações de direitos protagonizadas por policiais civis contra quase 200 prostitutas, frequentadores e moradores de um prédio em Niterói, no último dia 23 de maio. Durante a invasão, realizada por policias sem mandado, ocorreram agressões, roubos e estupros relatados pelas prostitutas que configuram abuso de poder da força policial.
Após serem humilhadas, essas mulheres foram presas e levadas à 76ª Delegacia para averiguação. É intolerável que, no ano em que se relembra os 50 anos da ditadura militar, esta tática da averiguação, comum durante aquele período obscuro, seja utilizada nos dias atuais.

“Não mostraram papel, não mostraram nada. Mandaram todo  mundo tirar roupa para poder examinar, mandaram ficar baixando três vezes. Reviraram tudo, tiraram tudo... Uma policial ficou enfiando a mão em todo o mundo com a mesma luva...E detalhe, o dinheiro que estava lá sumiu. Pediram mil reais para a gente não ser incomodada, para poder ficar lá embaixo trancada [até o final da batida], determinou o horário para dar os mil reais, mas a gente não tinha nada porque tinham tirado tudo...Bateram numa menina dentro do ônibus, acho tudo isso uma palhaçada...”
“Não mostraram papel, não mostraram nada. Mandaram todo mundo tirar roupa para poder examinar, mandaram ficar baixando três vezes. Reviraram tudo, tiraram tudo… Uma policial ficou enfiando a mão em todo o mundo com a mesma luva…E detalhe, o dinheiro que estava lá sumiu. Pediram mil reais para a gente não ser incomodada, para poder ficar lá embaixo trancada [até o final da batida], determinou o horário para dar os mil reais, mas a gente não tinha nada porque tinham tirado tudo…Bateram numa menina dentro do ônibus, acho tudo isso uma palhaçada…”
Repudiamos ainda o arrombamento e interdição ilegal dos apartamentos em Niterói, local de trabalho dessas mulheres. Este ato viola o direito de trabalhadoras autônomas exercerem a atividade profissional do sexo livremente. Essas mulheres estão neste momento sem um local para trabalhar e morar.
A ABIA entende que esta operação ilegal faz parte do alargamento dos processos de “limpeza urbana” que inicialmente tiveram a Copa do Mundo como pretexto. O Brasil está entre os países que mais cometeram violações dos direitos humanos durante os preparativos para o mundial.
Chamamos atenção para que a Copa do Mundo e as Olimpíadas não sejam argumentos políticos para instalar um pânico moral no país entorno da prostituição. Executar leis contra a exploração sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de pessoas não pode servir de pretexto para repressão do trabalho sexual adulto e consensual.
Lembramos que a prostituição é devidamente legalizada e reconhecida, desde 2002, na Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério do Trabalho e Emprego. A prostituição não é crime no Brasil. Qualquer pessoa maior e capaz pode, livremente, se prostituir, assim como toda pessoa em igual condição pode utilizar esse serviço, pertencente à esfera íntima dos/as envolvidos/as.
A criminalização dessas profissionais, além de configurar perseguição e violações de múltiplos direitos, potencializa as condições de vulnerabilidade dessas mulheres, com destaque para o HIV e a AIDS. Segundo estudos divulgados pela Organização Mundial de Saúde em parceria com o Banco Mundial, há relações significativas entre a criminalização da prostituição, as violações dos direitos, o sexo desprotegido e a infecção pelo HIV.
Onde o trabalho sexual é criminalizado, a resposta ao HIV tem sido frustrada e limitada por forças estruturais que incluem o estigma, a discriminação e a violência física. A ABIA, em parceria com a Ong Davida e com o Observatório da Prostituição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realiza um mapeamento das violações dos direitos dessas profissionais no país com o propósito, entre outros, de fortalecer o enfrentamento da epidemia do HIV e da AIDS.
No Dia Internacional das Prostitutas, a ser comemorado no próximo dia 2 de junho, a ABIA se soma às vozes que clamam por justiça para as profissionais do sexo que sofreram violações de direitos em Niterói e em outras cidades. Exigimos que o Estado brasileiro implemente políticas públicas que garantam a promoção de direitos e proteção das prostitutas como trabalhadoras – e não como vítimas –,bem como o fim do abuso, da repressão, da discriminação e outras formas de violência contra essas profissionais.

Rio de Janeiro, 29 de maio de 2014


Fonte:www.umbeijoparagabriela.com

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