De um lado, os defensores do PL Gabriela Leite querem tirar
as prostitutas da ilegalidade, do outro, feministas que não concordam com o
sexo como mercadoria. O debate sobre a prostituição no Brasil está longe de
acabar.
Por Bruno Pavan
Reza o dito popular que a prostituição é a profissão mais
antiga do mundo. Apesar de não haver nenhuma confirmação sobre tal afirmação, o
fato é que a ocupação sempre levantou inúmeras polêmicas ao longo dos séculos.
Em tempos de megaeventos como Copa do Mundo e Olimpíadas no
Brasil, a discussão da regulamentação ou não da profissão ganhou corpo. O
Projeto de Lei nº 4.211 de 2012, também conhecido como Projeto de Lei Gabriela
Leite, foi apresentado pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL RJ) na Câmara
dos Deputados e divide opiniões.
O projeto foi batizado em homenagem a ativista e criadora da
ONG Davida, que luta pelos direitos das prostitutas. Gabriela, falecida no
final de 2013 por conta de um câncer, cursava filosofia na USP quando, aos 22
anos, resolveu virar prostituta.
Pensado para ser votado antes da Copa do Mundo, por conta do
alto fluxo de turistas no país, o projeto ainda está aguardando a indicação dos
nomes dos parlamentares que farão parte de uma comissão especial, depois irá a plenário
da Câmara e se aprovado, para o Senado.
Jean afirma que a importância do projeto é que ele muda a
vida das profissionais pois as colocam no mercado de trabalho formal com todos
os direitos e deveres de um trabalhador qualquer.
“Muda o vácuo legal a que as profissionais (e os
profissionais também) estão submetidos. Muda a insegurança jurídica em não ter
sua atividade proibida, mas ter os locais de desempenho desta função
criminalizados, mesmo que seja uma simples partilha de aluguel de um pequeno apartamento.
Muda uma infinidade de questões que tiram um grupo difamado há milênios da
sujeição à violência do próprio Estado, cuja banda corrupta lucra se fazendo de
cego ao crime organizado e lhe provendo a segurança de sua operação. Muda a
realidade de pessoas que, por conta da operação dessas quadrilhas, são
exploradas e escravizadas”, explicou.
A diferenciação entre prostituição e exploração sexual é o
ponto central do projeto. No artigo 1º é decretado que “considera-se
profissional do sexo toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz
que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração”, e no artigo
2º criminaliza-se a exploração sexual, que se dá quando há apropriação de mais
de 50% do pagamento por serviços sexuais a terceiros; quando há a obrigação de
alguém a praticar a prostituição mediante grave ameaça ou violência; e o quando
não há pagamento pelo serviço contratado.
“Visão liberal” da prostituição
Contrária ao projeto, Maria Fernanda Marcelina, membro da
Sempreviva Organização Feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres,
questiona a tentativa de separar o que é exploração sexual de prostituição.
“Para nós não existe isso. Prostituição é exploração sexual
porque as mulheres são a parte mais empobrecida de uma sociedade patriarcal e a
sexualidade feminina vira mercadoria e está quase sempre ligada ao prazer
masculino”, criticou.
No final de 2013, as mulheres da Central Única dos
Trabalhadores (CUT) marcaram posição no debate e se mobilizaram contra o
projeto defendendo que ele só favoreceria “aqueles que lucram com a exploração
do corpo das mulheres”.
A Marcha Mundial das Mulheres – que considera o projeto
liberal e em uma cartilha intitulada “Prostituição: uma abordagem feminista” –
declarou que “fazer o que quiser do corpo sem uma crítica e rompimento com as
práticas patriarcais não é liberdade. Por isso, reforçamos a vinculação entre
liberdade e autonomia, buscando realmente decidir sobre nossa vida e
sexualidade, sem a indução pela vontade dos outros”.
O artigo que legaliza o funcionamento das casas de
prostituição e o que permite que se aproprie 50% ou menos do rendimento da
prostituta sem que isso seja considerado exploração sexual, é outra crítica das
feministas, que consideram se tratar de liberação da prática da cafetinagem.
“É hipocrisia dividir uma porcentagem e dizer que abaixo
disso pode, acima não pode mais, não quebra a relação de exploração entre o
cafetão e a prostituta, muito pelo contrário, se baseia em uma relação entre
patrão e empregada que todos nós sabemos quem leva a pior”, disse Maria
Fernanda.
Já o deputado vê a linha que separa a prostituição e a
exploração como muito clara e defende que os agenciadores não podem ser
confundidos com a figura de um explorador e, sim, como alguém que auxilia as
prostitutas.
“Há uma linha clara entre o que é um acordo justo entre
partes e o que é apropriação indevida. O projeto define um teto ao agenciador e
um piso às profissionais. O que ocorre dali em diante é uma negociação
trabalhista que ocorre nas mais diversas áreas profissionais. Esta é a imagem (agente como explorador) que
o nosso Código Penal cria erroneamente. O agenciador provê um imóvel em boas
condições de uso, provê a limpeza, mobiliário, manutenção do espaço, cuida da
agenda e da segurança. E por isto, cobra uma porcentagem em cima desse
trabalho. A distorção é tão grande, que a pessoa que é contratada para fazer a
limpeza daquela casa de prostituição pode ser presa por lenocínio, já que seu
rendimento é proveniente da prostituição de outrem”, observa.
Políticas públicas e a saída da prostituição
Considerando a complexidade do assunto, outros dois pontos
são levantados pelos que defendem e criticam o projeto: quais os deveres que o
Estado terá com essas profissionais? Cabe a ele garantir que essas
trabalhadoras deixem esse ramo de atividade se assim desejarem?
Maria Fernanda Marcelina diz que o projeto não garante de
fato nenhum direito as profissionais e que o caminho ideal seria o reforço das
políticas públicas específicas para prevenir, informar e tirar as mulheres da
prostituição.
“De fato são necessárias políticas específicas para melhorar
a condição delas, que são as principais vítimas dessa situação de exploração.
Algumas coisas poderiam ser feitas já de imediato como prioridade no acesso a
compra de casas populares, uma linha específica do SUS e programas de geração
de renda e capacitação profissional pra que deixem de ser exploradas”, afirmou.
Wyllys, por sua vez, defende que com a regulamentação, as
prostitutas passarão a ser ouvidas pela sociedade e, principalmente, por
governos que poderão traçar as políticas públicas que julgarem necessárias.
“Com a regulamentação, as prostitutas deixam de ser
invisíveis. Aquelas campanhas destinadas a elas, canceladas pelas lideranças
fundamentalistas, passam a ser uma responsabilidade real do Executivo, assim
como são para todas as outras profissões regulamentadas. Se vão existir
políticas habitacionais a partir disto não nos cabe discutir agora. A discussão
no momento, e que é realmente importante, é que as prostitutas saiam da
invisibilidade legal e tenham acesso, como qualquer outro profissional, à
cidadania plena. Isto não é um favor a se prestar, uma concessão, é uma
obrigação”, defende.
Sobre a saída da prostituição para aquelas que desejarem,
Jean critica quem deseja manter as pessoas distantes da prostituição por meio
da proibição e afirma que as profissionais poderão participar de programas do
governo assim como qualquer outro trabalhador registrado.
“Para muitas, (o projeto) traz a oportunidade de deixar a
profissão quando quiserem, por livre vontade. Para outras, é a oportunidade de
participar de programas de aperfeiçoamento profissional do próprio governo,
oferecido a todos os outros trabalhadores registrados. E, a partir dele, podem
ser criados novos projetos”, afirma o deputado.
Segundo ele, em milênios de cegueira seletiva do Estado,
nenhuma iniciativa séria foi adiante, exatamente pela cultura de que proibir é
a melhor forma de manter tais pessoas distantes da prostituição, o que é de uma
ignorância sem tamanho, na qual, infelizmente, caem algumas feministas que tem
atacado o projeto.
“Proibir não tira ninguém da prostituição, apenas leva tais
pessoas a uma condição marginalizada de sujeição a todo tipo de violência
física e simbólica. É algo elementar demais para ser ignorado”, declarou.
“Calar as prostitutas não é o caminho”, diz Jean
O deputado, que está alinhado com as feministas em pontos
sensíveis como a legalização do aborto, critica a posição delas contra o
projeto e ressalta a importância das prostitutas assumirem o posto de protagonistas
na luta.
“Curiosamente, as prostitutas encontraram apenas em homens o
espaço para sua luta. Antes de mim, Gabeira foi o porta-voz da luta da Rede
Brasileira de Prostitutas, onde Gabriela Leite, ainda na década de 1980, já
organizara o primeiro encontro nacional das prostitutas. Uma luta antiga e
sólida, que não pode ser simplesmente ignorada por um feminismo abolicionista
que não leva em conta a voz dessas prostitutas”, informa Jean.
“As mulheres da CUT, por exemplo, nunca me procuraram para
conversar sobre o Gabriela Leite — como, em outras ocasiões, já me procuraram
para apoiá-las em outras lutas das quais também faço parte, como a luta pela
legalização do aborto e contra o assédio moral no mercado de trabalho —, como
também não procuraram o movimento das prostitutas. Que se dê voz à Rede
Brasileira de Prostitutas. Calá-las não é o caminho para a construção de uma
democracia afinada com a defesa dos direitos humanos”, critica.
Fonte: Brasil de Fato
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