Abusada pelo padrasto, viciada em drogas e explorada
sexualmente para se manter, jovem contou que após mãe dizer que a aceitava
decidiu mudar de vida. Ela pediu ajuda e hoje faz parte do projeto Vira Vida:
"sou MC e quero ser advogada"
Abandonada pela mãe, ela foi abusada sexualmente pelo
padrasto, o denunciou e ficou sozinha no mundo. Foi para as ruas, começou a
usar drogas e para se sustentar - tanto as necessidades básicas como o vício -
passou a fazer sexo por trocados, com apenas 14 anos.
Ele, cearense, na época
com 12 anos, descobriu no interesse dos caminhoneiros por adolescentes uma
fonte de renda para ajudar a avó junto com sete amigas: "a gente bebia,
ficava na beira dos açudes e ficava com os caras lá. Os homens tinham 40, 50 e
até 60 anos".
As duas histórias são de vítimas da exploração sexual da
criança e do adolescente. Apesar de campanhas para denúncias do crime, a
maioria dos casos ainda fica impune. Recuperada da violação de direitos, a
jovem de 18 anos entrevistada pelo Terra ainda encontra "meninas que estão
lá" - no abrigo em que ela era obrigada a ter relações sexuais com um
adulto em troca de moradia.
O Senado aprovou no último mês o projeto que torna crime
hediondo a exploração sexual de crianças e adolescentes, e torna obrigatório o
cumprimento de dois quintos da pena em regime fechado. Instituições de proteção
às crianças e adolescentes e garantia dos direitos humanos intensificam as
campanhas e vigilância durante acontecimentos como a Copa do Mundo. O evento
internacional já foi discutido como agravante do crime até pela presidente
Dilma Rousseff, que, em pronunciamento, alertou os brasileiros sobre como
denunciar casos de exploração sexual, pelo disque 100. A preocupação é com o
número de estrangeiros e turistas que passam por regiões vulneráveis.
Em 2001, um relatório sobre exploração infantil produzido
pela Organização das Nações Unidas (ONU) colocou o Brasil em primeiro lugar da
América Latina e em segundo do mundo. No primeiro quadrimestre de 2012, 809
municípios registraram denúncias através do Disque Direitos Humanos, sendo os
com maior incidência: Salvador (81), Manaus (67), Rio de Janeiro (66) e São
Paulo (61).
No período de 12 meses, foram registrados 18,3 mil casos de
exploração sexual infantil e do adolescente, dos quais 76% envolviam menores de
10 anos. Em 2013, São Paulo teve 17.990 denúncias, o Rio de Janeiro, 15.635 e a
Bahia, 10.957 – os três Estados sediarão jogos.
Apesar dos números, a Organização Internacional do Trabalho
estima que 80% dos casos não sejam notificados. “A exploração sexual ainda é
muito tolerada, observamos comentários de pessoas do tipo ‘aquela menina de 12
anos já estava na prostituição’”, afirmou a presidente da Associação Brasileira
de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (Asbrad) Dalila Figueiredo.
Até mesmo para conseguir a adesão do adolescente e fazê-lo
compreender que está tendo os direitos violados é difícil, de acordo com a
ativista. “A criança e o adolescente não se prostituem, são explorados
sexualmente”, reforçou. Nos arredores de grandes obras como da usina
hidrelétrica Jirau, Belo Monte e estádios para a Copa “existem pessoas em
situação vulnerável que podem ser vítimas, as redes de proteção precisam estar
preparadas”, disse.
Abusada pelo padrasto, viciada em drogas e explorada
sexualmente para se manter, jovem contou que após mãe dizer que a aceitava
decidiu mudar de vida. Ela pediu ajuda e hoje faz parte do projeto Vira Vida:
"sou MC e quero ser advogada" Foto: Alan Morici / Terra
Alda Menine, advogada e coordenadora de projetos do Programa
de Apoio a Meninos e Meninas – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
(PROAME-CEDECA), reforçou a relação entre grandes obras e o crime. “Em São
Leopoldo (RS) foi construída uma extensão do trem metropolitano e identificamos
casos de exploração sexual na área. Existe grande concentração de homens que
vêm para trabalhar e ficam em containers longe das mulheres até a obra acabar,
as comunidades locais ficam sujeitas à violência”, explicou. Alda contou ainda
que houve número alto de adolescentes grávidas dos “visitantes” na época.
O principal motivo para a rendição a esta violação de
direitos é a desigualdade social, as vítimas costumam ser meninas – 3,5 vezes
mais do que meninos – entre 10 e 18 anos, vindas de regiões economicamente
vulneráveis, determinou a psicóloga do PROAME, Loreto Cecília Riveros Ilanes. A
cada ano, segundo ela, a idade inicial diminui. A fundadora da instituição
Canto Jovem, Ildete Mendes, citou estudo feito pela Universidade Rio Grande do
Norte que tinha como idades iniciais da exploração entre 12 e 14 anos, mas
afirmou que atualmente a faixa etária já caiu para 9.
Loreto apontou duas frentes do crime: o ganho econômico de
pessoas envolvidas com pornografia, tráfico de pessoas e drogas de um lado e,
de outro, crianças e adolescentes em busca de recursos financeiros para
sustento próprio e/ou da família, na qual se enquadra a maioria dos casos,
segundo Ildete.
“Outro dia vieram
duas meninas para cá, uma de 15 anos e outra de 16. A mais velha estava fazendo
sexo com um caminhoneiro, que prometeu pagar R$ 20. Mas depois, só quis dar R$
10 e a mais nova ligou para polícia. Ele foi preso”, relatou o fundador do
CEDECA de Salvador, Valdemar de Oliveira. Ele, que já recebeu caso em que uma
menina teve relações sexuais com um desconhecido por uma lata de doces,
desacredita como tantas pessoas veem as vítimas como “pequenas prostitutas que
querem se dar bem”.
Há casos em que o adolescente é explorado para a compra de
bens de consumo, como roupas de marca e celulares, conforme citou o advogado do
Programa dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Centro Dom Helder Câmara
de Estudos e Ação Social (CENDHEC), Natuch Lira, e também em troca de passeios
e até drogas, disse Gilson Costa, coordenador do Projeto Vira Vida de Natal.
Tenho 18 anos. Meu pai morreu e minha mãe cuidou de mim até
os dois meses de idade, depois ela me entregou para um homem, meu novo pai.
Quando eu tinha seis anos ele começou a abusar sexualmente de mim todas as
noites, eu pedia para ele parar, mas ele não parava. Eu contei para uma
vizinha, ela denunciou e ele foi preso.
Mas depois eu fiquei com remorso, tinha só seis anos, e
falei que era tudo mentira. Eu era revoltada com tudo e aos 14 anos comecei a
usar maconha, não gostei, e parti para o lança-perfume. Mas chegou um tempo que
não estava mais fazendo efeito e comecei a cheirar pó. Nessa época eu me
prostituía para conseguir dinheiro, junto com uma mulher mais velha, quem me
apresentou o crack. Eu falei para ela que precisava de um lugar para brisar e
ela disse que conhecia. Quando cheguei lá, vi um monte de gente usando crack,
mas não sabia o que era. Ela me disse que era a mesma brisa do pó e falou para
eu experimentar. Quando eu provei quis mais e mais, quando fui ver já era outro
dia. Tentei me suicidar várias vezes.
Eu fazia programas, tinha pontos em vários lugares e uma
casa, que a gente chamava de “fumódromo”. Para morar lá, a gente tinha que
fazer sexo com o dono, que tinha aids. Eu não peguei. Ele também ameaçava a
gente de morte e eu não queria ficar na rua. A gente já era chamada de noia, se
ficasse na rua seria pior. Minha mãe nunca me aceitou com filha, mas disse que
se eu parasse de usar drogas ela me aceitaria. Foi por ela que parei. Pedi
ajuda, fiquei nove meses em uma clínica e nunca mais quis saber de drogas.
Ainda encontro meninas que estão lá, elas me pedem dinheiro, mas eu não dou.
Eu tinha muita raiva antes, tudo para mim era motivo para
agredir, depois que eu conheci o projeto Vira Vida eu mudei. Sou uma nova
pessoa. Aquilo foi só um obstáculo, na vida sempre terão obstáculos, mas eu
atravesso um por um, sou guerreira. Se derrubar é fácil, se levantar é difícil
e eu não vou cair de novo. Pretendo ser advogada e sou MC, tenho CD gravado e
faço vários shows contando a minha história para que outras pessoas não passem
por tudo que eu passei.
Pais que fazem dos
filhos ‘mercadoria’
De acordo com os entrevistados pelo Terra, é comum a família
desconfiar ou até ter conhecimento da exploração sexual, mas acabam “fechando
os olhos” para a situação, disse Oliveira. “Boa parte dos pais sabe que a
menina sai 16h e volta à noite com dinheiro, mas fazem vista grossa”, explicou.
No entanto, existem casos em que os responsáveis são como “agentes” sexuais.
“Já tivemos casos dos pais oferecem a filha para a exploração”, comentou Costa.
“Atendi uma família em que a mãe oferecia a fulana de tal para um homem e ele
pedia que a irmã estivesse junto por uma quantia maior”, acrescentou Alda.
Por vezes, na realidade em que vivem, os adolescentes não
“entendem” que estão sendo explorados e se submetem à violência para conseguir
comida para a família, roupas e corresponder às necessidades dos pais. “Elas
pensam: ‘minhas amigas fazem, eu também faço’”, comentou Costa. É comum, de
acordo com os casos atendidos por Alda, as vítimas manterem ainda vínculo
afetivo com os pais, mesmo quando eles são os aliciadores e enxerguem a
situação como uma atitude tomada por necessidade.
O explorador:
turistas, caminhoneiros e taxistas estão na lista
“A exploração sexual de crianças e adolescentes se dá
especialmente no Brasil pelo turismo sexual, pelos estrangeiros, por isso a
preocupação com a realização de mega eventos”, disse Loreto. Operários em
permanência temporária em uma localidade para realização de grandes obras,
taxistas e caminhoneiros estão na lista de exploradores em potencial, de acordo
com os entrevistados. Para Oliveira, em Salvador, “os caminhoneiros nos postos
de gasolina são os grandes vilões”, diferente de Natal, onde, segundo Costa, os
turistas são os principais exploradores.
A instituição de proteção à infância Childhood fez uma
pesquisa com caminhoneiros em 2010 e descobriu que o número de homens que nunca
tiveram relações sexuais com adolescentes passou de 63,2% em 2005, para 82,1%
em 2010. Do total, apenas 37% deles julgaram errado fazer sexo com adolescente,
contra 20,8% cinco anos antes. A exploração sexual infantil e do adolescente é
comum nos postos de gasolina na estrada para 98,5% deles, em 2005, 99,2%
tiveram a mesma resposta. Apesar de a maioria declarar nunca ter explorado
sexualmente um menor de 18 anos, 70% deles confessaram que a prática é comum
entre os amigos, contra 85,8% em 2005. A região Nordeste registrou a incidência
mais alarmante.
VÍTIMA DE EXPLORAÇÃO SEXUAL DOS 12 AOS 16 ANOS
Tenho 17 anos, mas a primeira vez que eu fui explorado tinha
12 anos ou menos, eu morava com a minha avó e uma irmã adotiva, no Ceará. Tinha
um grupo de sete amigas, a gente saía, ia para festas e bares, então,
conhecemos uns caras e começamos. A gente bebia, ficava na beira dos açudes e
ficava com os caras lá. Os homens tinham 40, 50 e até 60 anos, estavam de
passagem, eram caminhoneiros. Em troca, eles nos davam um pouco de dinheiro,
comida, bebida e o que conseguíamos roubar deles. Minha vó recebia só
aposentadoria e não dava para pagar as contas, mas ela não sabia o que eu
fazia.
Comecei a dar muito trabalho para ela e minha vó ligou para
minha mãe, então, vim morar em São Paulo com ela e meu irmão. Minha família não
me aceita porque sou homossexual e eles começaram a me espancar. Eu estudava à
noite e trabalhava na 25 de Março, quase todo dinheiro eu dava para minha mãe,
mesmo assim eu apanhava. Ela me colocou no CAPES para fazer tratamento para eu
deixar de ser homossexual e quando recebi alta, disse que me aceitaria. Mas um
mês depois ela e meu irmão me espancaram, eu pedi ajuda e fui para um abrigo.
No meu primeiro abrigo, na Freguesia do Ó eu comecei a usar
drogas, eu tinha 15 anos. Eu e as meninas do abrigo saíamos para fazer
programas. Os carros buzinavam e a gente entrava. Depois mudei de abrigo e
comecei a conhecer mais sobre as doenças sexualmente transmissíveis, vi que
essa vida não era para mim. A gente fazia sexo sem camisinha e sexo oral. Foi
lá que conheci o projeto Vira Vida e tudo mudou. Meus planos são ser uma
transexual, cabelereira, adotar dois filhos e construir a minha família. Não
importam as dificuldades a gente sempre é forte para superar.
Crime
De acordo com o advogado Natuch Lira, a exploração sexual
ocorre quando há a utilização de criança ou adolescente para fins sexuais com
lucro, objeto de valor ou outros elementos de troca. O crime pode ocorrer “no
contexto de prostituição”, na pornografia infantil, no tráfico de pessoas com
fins de exploração sexual e turismo também com o fim citado. Atualmente, o
Código Penal estabelece pena de quatro a dez anos de prisão para quem favorecer
ou praticar a exploração de vulnerável, podendo ser maior em circunstâncias
qualificadoras. Uma que vez que se torne crime hediondo, o condenado terá que
cumprir dois quintos da pena em regime fechado.
Além do explorador, os pais ou aliciadores também podem ser
condenados. Até mesmo quando a família não participa do crime, os responsáveis
podem ser acusados de negligência. Em ambos os casos pode acontecer a
destituição de poder sobre a criança ou adolescente, informou Alda. A maioria
dos casos chega à Justiça ou instituições através de denúncias de terceiros. A
Rede de Proteção Social dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes envolve o
Disque 100 para denúncias, abrigos, unidades de saúde, escolas, ONGs, centros
de referência e assistência, conselhos tutelares e delegacias da criança e do
adolescente, enumerou Ildete.
Trauma: é preciso
ressignificar a violência
Os danos psicológicos para um adolescente que sofre
exploração sexual são inúmeros, desde a desvalorização da própria vida, até o
envolvimento com drogas, dificuldades de relacionamento, nojo e vergonha de si
mesmo, e comportamento suicida, afirmou a assistente-social do CEDECA Casa
Renascer Sayonara Dias. Os atendimentos oferecidos pelos Centros de Defesa da
Criança e do Adolescente, espalhados em vários municípios do País, passam pela área
jurídica, psicossocial, psicológica, e de assistência social para questões de
trabalho, moradia e renda. “É preciso ressignificar a violência”, afirmou
Sayonara. As denúncias podem ser feitas de forma anônima às instituições.
De acordo com Loreto, a exploração pode desencadear
transtornos de ansiedade, depressão e tentativas de suicídio, assim como levar
à dependência de drogas. “Não são raros os casos onde há o abandono do
tratamento”, afirmou. Um dos projetos de frente do PROAME é o Comunidade Ativa,
parceria com a Petrobrás, que faz estudos dos impactos sociais para comunidades
onde serão realizadas grandes obras. Além disso, o Programa de Apoio a Meninos
e Meninas realiza palestras e medidas de prevenção. A Asbrad e o Cendhec, assim
como ONGs e outras instituições também recebem denúncias e tratam as vitimas.
O SESI, em parceria com o Sebrae, Senai, SESCs e empresas
desenvolve o projeto Vira Vida, especializado na recuperação de adolescentes
explorados sexualmente. Criado em 2008, o programa já está presente em mais de
20 Estados. O coordenador do grupo de São Paulo, Victor Hugo, contou que a
iniciativa surgiu do presidente do SESI Jair Meneguelli, ao se deparar com o
crime durante uma viagem. “Ele estava em uma praia de Fortaleza, em um
quiosque, viu uma mulher passando e tirando os pedidos de estrangeiros nas mesas
e depois chegar com as mercadorias que eram meninas”, relatou.
O programa recebe crianças de ONGs, Conselhos Tutelares e
outros membros da rede de proteção, faz uma seleção de perfil, oferece
atendimento psicológico e social, formação profissional e inserção no mercado
de trabalho, através das empresas parceiras e do Sebrae. Durante o programa de
estudo, que dura aproximadamente um ano, os adolescentes participantes recebem
bolsa-auxilio de R$ 500 por mês, para as necessidades básicas.
Em caso de conhecimento de exploração sexual de crianças e
adolescentes, denuncie pelo telefone 100, da Secretaria de Direitos Humanos,
que tem atendimento 24 horas por dia.
Fonte: Terra
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