segunda-feira, 17 de março de 2014

Histórias de prostituição na Angola: Cacuaco

Têm idades diferentes mas histórias comuns. Todas entraram na prostituição como último recurso. Sustentam famílias e põem os filhos a estudar. Sair é o desejo de quase todas. Mantêm a capacidade de sonhar, só que os sonhos vão sendo adiados. Se parece fácil entrar, complicado é deixar a vida.


Muitas mulheres encontram na prostituição uma forma de sustento. Poucas vêem o trabalho como carreira e encaram as ruas com orgulho. A maioria diz que entrou na vida, porque não tinha como ganhar dinheiro de outra forma. O Novo Jornal acompanhou a rotina de três mulheres que vendem o corpo. Nenhuma quis ser identificada para que os que lhes são próximos não descubram o que fazem. A história de cada uma delas é desfiada sob uma identidade falsa.

O ponto de encontro foi a feira de Cacuaco (mais conhecida por mercado do divórcio). Pouco passava das 17h00, quando a equipa de reportagem chegou. Sandra, Marisa e Dina já estavam à espera junto às bombas da Sonangol, um dos principais pontos de prostituição de Cacuaco.

As três mulheres vivem naquele município, uma no bairro do Paraíso e duas no bairro da Pedreira.

Sandra é uma mulher de estatura média, magra e de cabelos longos. Tem 43 anos, é casada e mãe de cinco filhos. Prostituta há 13 anos, entrou neste mundo por falta de oportunidades de emprego.

"Entrei na prostituição como se fosse uma brincadeira, quando engravidei do terceiro filho, aos 30 anos. Tinha uma amiga que, na altura, era prostituta. Depois de ver as necessidades que enfrentava, convidou-me a fazer parte do grupo dela, composto por sete jovens. Desde aquela altura nunca mais parei", lembra.

A mulher, que vive no bairro da Pedreira com o marido e os cinco filhos, confessa que conseguiu adquirir a residência onde a família vive com o dinheiro da prostituição. O que recebe dá ainda para pôr os filhos a estudar. "Formei os dois filhos mais velhos com o dinheiro da prostituição e estou orgulhosa disso. Sei que o que faço ao meu marido não é certo, mas ele não tinha como me sustentar, nem aos filhos. Foi a única saída que encontrei", justifica-se Sandra.

Desde que estão juntos, o marido nunca trabalhou e ela também não tem profissão. "Sei que vender o corpo não é correcto, mas nunca trabalhei, não sei fazer nada", admite esta avó de três netos.

O MARIDO NÃO SABE

Ao início, Sandra fazia programas à noite, vivia no distrito do Rangel e movimentava-se melhor. Agora é difícil, porque a distância não ajuda.

"No princípio, fazia programa à noite, ficava junto ao Banco Nacional, no Eixo Viário, ao Hotel Trópico. Eram os sítios onde mais ficava. Hoje tem sido muito difícil por causa da distância. Sair de Cacuaco para lá não é fácil", explica. Apesar de vender o corpo há quase década e meia, Sandra garante que o marido não sabe que é prostituta. "Nos anos anteriores, quando saía de noite, inventava qualquer história para poder sair. Muitas vezes, quando via que ele estava desconfiado, procurava briga para ficar algumas semanas na casa da minha mãe, porque lá tinha liberdade para sair quando quisesse".

Actualmente, a tarefa está mais dificultada por causa da longa distância que tem de percorrer até aos pontos de prostituição, o que obriga esta trabalhadora do sexo a limitar-se ao período diurno. "Hoje faço em pleno dia e, por outro lado, também já tenho clientes fixos. Nas semanas em que os clientes fixos não aparecem, venho para aqui onde nos encontrámos", relata, acrescentando que, nos 13 anos que leva de prostituição, o marido nunca a apanhou.

Sandra garante que tem respeito pelo esposo e que todos os filhos são dele. Quando começou a prostituir-se, mentiu ao marido, dizendo-lhe que trabalhava como empregada doméstica no bairro de S. Paulo, num restaurante. Para credibilizar a sua história, apresentou algumas senhoras como sendo colegas de serviço.

"Hoje eu encaro a prostituição como uma profissão, porque foi com este trabalho que eu consegui formar os meus filhos e estou a criar os outros filhos e netos. O importante é que respeito o meu marido. As pessoas não me julgam porque só eu é que sei o que já passei para entrar nessa vida. É duro em quatro horas deitar-me com homens diferentes, mas a vida obrigou-me a isso".

PRESERVATIVO: SIM OU NÃO?

Apesar de vender o corpo, Sandra não bebe bebidas alcoólicas, nem fuma. Quando trabalha, faz o serviço e segue caminho. Não tem emoção, nem procura estimulantes. É um trabalho como outro qualquer. Tenta fazer sexo seguro, mas nem sempre isso é possível. Muitos clientes não aceitam o preservativo e ela tem de subjugar-se à vontade dos que lhe pagam.

"Fico muitas vezes preocupada com as doenças sexualmente transmissíveis, porque tenho relações sexuais com outros homens e com o meu marido, que é inocente porque não sabe da vida que levo. Mas tenho feito sempre testes, de dois em dois meses. Graças a Deus, não tenho nada", declara.

A conversa com as três mulheres decorreu na residência de Sandra, uma casa com cinco quartos, duas salas, quatro casas de banho e um anexo.

Marisa é amiga de Sandra. Tem 40 anos e três filhos. Conta que entrou no mundo da prostituição há mais de dez anos, por convite de uma prima, hoje com 47 anos, que também é prostituta.

"Vim parar à prostituição porque fui abandonada pelos meus pais, quando engravidei da minha primeira filha. Desde aquela altura, a minha vida é esta. Já sofri muito. A primeira vez que fui para a rua estava grávida de quatro meses, foi difícil. A culpa pela vida que levo é dos meus pais", sentencia sem pejo, responsabilizando os progenitores pelo seu infortúnio.

Questionada se com o dinheiro que ganha consegue sustentar a família, Marisa revela que alguns homens pagam pouco, mas não nega nenhum cliente, porque precisa manter a casa. O que a preocupa na realidade são os perigos que espreitam nesta profissão. "Entramos em carros sem medo e com destino incerto e, às vezes, somos espancadas e não nos pagam, mas é a vida!", exclama a mulher, que não se contém e começa a chorar.

Marisa é defensora da legalização da prostituição para evitar que menores se prostituam. Há muitas crianças na rua de 13, 14, 15 e 16 anos. "Se a prostituição fosse legalizada, essas meninas não estariam na rua. É necessário que o Estado veja essa situação. Se isso continuar, vamos perder muitas vidas, porque muitas dessas meninas não usam preservativo. Muitas delas já fazem uso do álcool e de drogas e a pessoa nesse estado não consegue controlar se o parceiro usa ou não o preservativo", alerta.

ACUSADA DE ROUBO

Esta mãe solteira que deu à luz três filhos já esteve presa porque um dos clientes a acusou de roubo. Este e outros episódios deixaram marcas, difíceis de esquecer. Marisa não gosta do que faz e confessa que quer arranjar um emprego "normal". Contudo, do desejo à realidade vai uma grande distância e está consciência que não tem "outro modo de vida". Alguns membros da família sabem o que faz e, apesar de terem sofrido muito no início, "todos acabaram por se conformar".

Marisa fala abertamente sobre os perigos da prostituição e espera que o seu exemplo sirva para abrir os olhos a outras mulheres. "Uma vez, um cliente, que é quadro da polícia da divisão do Sambizanga, apontou-me a pistola à cabeça dentro do quarto porque queria fazer sexo sem camisinha e eu não deixei. Aquele foi o pior dia da minha vida. Ele bateu-me tanto que fiquei três semanas em casa e ainda por cima acusou-me de roubo", relata.

Avó de quatro netos, o seu maior desejo é sair da rua para que os netos um dia possam conhecer uma avó diferente. Após uma década de prostituição, Marisa não tem ninguém com quem partilhar a cama, arriscando-se a envelhecer sozinha. Não tem marido, os dois filhos mais velhos estão desempregados e a nora também.

Ao contrário de outras profissionais do sexo com quem o Novo Jornal falou, diz que só no princípio da actividade fez sexo sem usar o preservativo. Hoje não condescende. "Não faço relações sexuais sem a utilização de preservativo".

Questionada se engravidou dos três filhos na prostituição, Marisa responde que sim. "Só conheço o pai da primeira filha, os outros foi mesmo na prostituição. O difícil para mim foi quando os meus filhos eram pequenos e perguntavam: "Mamã, onde é que está o papá?" Eu apenas chorava, porque não sabia o que responder. A mulher sabe sempre quem é o pai, mas não sei como é que vou chegar ao pé de um homem que sabe que sou prostituta e dizer-lhe que estou grávida. É ridículo. Então, eles são só meus filhos".

SONHOS ADIADOS

Apesar das vidas que levam estas mulheres mantém a capacidade de sonhar. Os sonhos são sempre adiados à espera de dias melhores. Como o de Marisa, que confessa, em tom tímido: "Se pudesse sair da rua, gostaria de cumprir o sonho de ser médica".

Como uma estatura alta e curvilínea, Dina é a mais nova do grupo das três mulheres. Aos 24 anos, a jovem carrega na maquilhagem. Olhos contornados por um lápis preto, nunca perde o sorriso, nem mesmo quando relata o abandono que sofreu por parte dos pais, quando engravidou, aos 15 anos, do primeiro filho.

"Fui para a rua porque não tinha outra saída. A minha mãe é muito rigorosa e, quando se apercebeu que eu estava grávida, mandou-me sair de casa. Já antes havia feito o mesmo à minha irmã mais velha, que também é trabalhadora do sexo. Ela estava grávida de seis meses e eu de dois e não sabíamos o que fazer. A única saída que encontrámos foi a rua, onde estamos até hoje", revelou.

Assim como Dina, inúmeras mulheres vendem o corpo para sustentar filhos e netos, no mercado do divórcio, em Cacuaco. Alguns dos motivos repetem-se: A dificuldade em encontrar emprego, a idade avançada, a origem humilde e traumas provocados pela violência doméstica construíram um muro entre elas e a sociedade. Aprisionadas a uma vida de sofrimento, mesmo que consigam ganhar muito dinheiro, como Dina que, num único dia, consegue reunir entre 20 a 30 mil kwanzas.

CLIENTES DE TODAS AS IDADES

Os clientes não têm idade certa. Há homens de todas as faixas etárias. "Ainda na semana passada, apareceu aqui um jovem, de 17 anos, que disse que queria saber usar as mãos na cama para impressionar a namorada. No local onde ele me levou, tinha um filme pornográfico, assistimos juntos e fiz o que ele queria. Ligou-me ainda hoje a dizer que queria estar mais comigo", conta a jovem.

A maioria dos clientes é jovem. Têm à volta de 18 anos, são atraídos pelo desprendimento e experiência que a idade pode oferecer. "Eles falam que as namoradas e, muitas vezes, as mulheres em casa são cheias de frescura. Cheias de não toca aqui ou não pega ali ou ainda não faz isso. É isso que faz com que muitos homens vão para a rua procurar o que não têm em casa, porque connosco eles podem fazer loucuras", teoriza.

Após duas horas de conversa e um jantar de carne seca com funje, a equipa do Novo Jornal saí da residência de Sandra. Do bairro da Pedreira até à zona do mercado do divórcio são 30 minutos, à chegada o relógio marca 19h30. A esta hora, já há muitas mulheres à beira da estrada e algumas dentro do mercado. Umas entram no carro dos clientes e nos bancos detrás fazem sexo.

As prostitutas pagam aos guardas e aos polícias para as deixarem sossegadas. "São eles quem toma conta da gente. Aqui é só pagar à polícia ou ao guarda e está tudo resolvido", garantem.

O que mais chama a atenção da equipa de reportagem é o facto de as cenas de sexo acontecerem a escassos metros da Administração Municipal de Cacuaco e da divisão de Polícia do município. A actividade dá má fama ao local. As vendedoras não se conformam. Reclamam, mas ninguém as ouve.

Maria Inácia, vendedora do mercado, conta que, a partir das 19h00, toda a mulher que passa junto do mercado é confundida com uma prostituta. "Só passaste e todos os homens chamam-te, pensando que você também é prostituta, é muito chato. A administradora de Cacuaco e o comandante sabem dessa situação e nada fazem. A casa da administradora é aqui perto, não sei porque é que não fazem nada. É necessário que se veja essa situação", clama.

Outra preocupação apresentada pelos vendedores é a quantidade de preservativos usados que todos os dias encontram quando chegam de manhã ao mercado. "Sabemos que esses preservativos espalhados no chão podem trazer muitas doenças. Se a polícia tomar medidas e proibir estas mulheres de se prostituírem aqui, fica claro que as coisas vão melhorar. Estamos cansadas disto. Já se escreveu uma carta à administradora, mas nada foi feito", lamenta uma das mulheres que vende no mercado.


Fonte: Novo Jornal

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