sábado, 8 de fevereiro de 2014

Um lírio que floriu no arame farpado: Etty Hillesum


          

Etty Hillesum compreendeu que Deus não é responsável diante de nós pelos eventos históricos.  Nós somos responsáveis diante de Deus pelas maneiras pelas quais traímos o dom divino e sua presença.

Por Mª Clara Bingemer

O mundo celebrou discretamente uma data importante em termos de reafirmação da fé na espécie humana.  Há ocasiões em que é possível constatar a identidade deste ser que tem tantas coisas semelhantes a qualquer dos mamíferos, mas a quem foi dado um dom único por parte do Criador: a alma, o espírito.  Por isso, mesmo em meio ao mais absurdo horror, o ser humano – embora seja capaz das mais atrozes crueldades – pode fazer gestos e ter atitudes de uma nobreza que cala as palavras e nos leva a curvar a cabeça em reverente silêncio.

            É este o caso de Etty (Esther Hillesum), cujo centenário ocorreu em 15 de janeiro último.  Nascida em 15 de janeiro de 1914 em Deventer, Holanda, filha de um professor de línguas clássicas e de uma judia russa que quando terminou a escola instalou-se em Amsterdam, na casa de um viúvo aposentado, seu patrão e que se tornou também amante.  Mulher extremamente atraente por sua inteligência, personalidade e profundidade de espírito, Etty exercia grande fascínio sobre os homens e, além do velho Hans, teve muitos outros namorados.


            Foi em Amsterdam que conheceu o amor de sua vida, o psicólogo discípulo de Jung, Julius Zíper, que sendo judeu como ela e homem de fé, abriu-lhe as portas dos caminhos da oração.  Etty Hillesum começou a rezar, a falar com Deus, e em pouco tempo havia mergulhado tão fundo na experiência espiritual que começou a receber graças místicas das quais se tem notícia na história das religiões apenas com relação a pessoas muito especiais.

            A bela experiência de amor por Spier e por Deus começou a desenvolver-se em meio às restrições crescentes impostas aos judeus pelos nazistas na Holanda. Após um tempo relativamente breve, Etty decidiu apresentar-se voluntariamente no campo de Westerbork como assistente social. Seus diários indicam que estava convencida de só poder ser fiel a si mesma se não abandonasse os que se encontravam em perigo e se usasse sua energia para trazer vida às vidas dos outros; ser um bálsamo para as feridas deles.  O futuro bem próximo mostraria que ela não seria eximida da sorte de seu povo.         

            Chegou a Westerbork justamente no momento em que  as deportações para Auschwitz estavam começando.  Para mais de cem mil judeus, Westerbork era a última parada antes de Auschwitz.  Entre agosto de 1942 e setembro de 1943, Etty Hillesum empregou seu tempo mantendo seu diário, escrevendo cartas e cuidando dos doentes no hospital do campo. Sendo, enfim, “o coração pensante das barracas do campo”.

            Na medida em que a vida de Etty Hillesum se revela e manifesta, pode-se testemunhar o processo de gradual superação da inclinação de encontrar consolo e alívio em ilusões, fantasias, na direção de ideais ou verdades eternas através da mediação da mais dura realidade.  Ela se dá uma e outra vez ao real, ao fato, àquilo que é concreto e particular: pessoas individuais, encontros, eventos.  Ela gradualmente aceita sua situação extremamente limitada na vida e assim fazendo a transforma.  Esta progressiva auto aceitação ocorre a um grau tal que ela realiza e aceita a habitação da divindade em seu interior.  Ela olha a vida de frente e reconhece que se deve aceitar as coisas como elas são.


            Mas ao mesmo tempo recusa-se a deter-se na tristeza e desânimo consigo própria e os outros. Seus olhos pousaram naqueles que personificariam a destruição de si mesma e de seu povo, e com aguda inteligência descreve sua covardia e temeridade mascaradas de bravura e poder.  Com o olhar iluminado pela Verdade contemplada, vê diretamente através do autoengano pelo qual foram cegados os carrascos do povo de Israel. São os próprios nazistas que estão presos pelas cercas de arame farpado.  Não seus prisioneiros.

                 No dia 30 de novembro de 1943, o bálsamo que era a vida de Etty Hillesum foi derramado nas câmaras de gás e fornos crematórios de Auschwitz em solidariedade com seu próprio povo, e com milhões de outros seres humanos. Ela compreende que Deus não é responsável diante de nós pelos eventos históricos.  Nós somos responsáveis diante de Deus pelas maneiras pelas quais traímos o dom divino e sua presença.  Seu “insight” mais significativo pertence à vulnerabilidade da vida divina e é o pino da dobradiça que mantém juntas as várias ambiguidades e paradoxos de sua vida interrompida.

      Esta mulher judia jovem, inteligente, bonita e brilhante é capaz de fazer a passagem dos prazeres imediatos da vida aos maiores sacrifícios por causa do amor e da solidariedade que sentia para com seu povo.  E fazer isto com alegria, gratidão e uma profunda e espiritual consciência, sem o menor laivo de amargura, capaz de ver beleza na desolação mortal do campo, indo para Auschwitz cantando com sua família e apreciando em meio ao horror do campo os elementos da natureza, a água que corre, o aroma das flores.  E sentir-se rica e agraciada, mesmo sendo obrigada a enfrentar e suportar uma morte certa e injusta.

Já em seus últimos escritos, lemos o que Etty escreve, resumindo seus sentimentos em tão grave e definitivo momento: «Gostaria muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo».



Autor: Mª Clara Bingemer
Fonte: amaivos.uol.com.br

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