Desde o fim de semana roda a internet o texto: Viagem levando babás. Se não conseguir lê-lo no link original, há uma cópia aqui. É o
relato de uma visão casa grande/senzala que a sociedade brasileira carrega
desde os tempos da escravidão.
A babá não é uma trabalhadora com todos os
direitos respeitados, é, antes de tudo, uma serviçal, que numa viagem familiar
deve estar inteiramente disponível e ainda agradecer por ter tido a
oportunidade de viajar. Alguns trechos são bem ilustrativos:
"Na minha
opinião, em algumas ocasiões as babás são extremamente úteis, em outras são
dispensáveis
e em outras ainda são item de "terceira" necessidade. Enfim, acho que
se bem ensinadas, elas podem quebrar um galho danado e nem sempre vão
representar um novo integrante à família..."
"...na ida no avião
perguntou se podia aceitar o lanche, se tinha banheiro, se ela podia escolher
aonde sentar, enfim, prefiro assim do que as folgadas que vão logo pedindo
refrigerante ou sei lá o que e ainda adoram falar suas experiências pessoais de
viagens ao exterior."
"...Em outras oportunidades
em que vc quer que ela coma antes porque o restaurante é caro ou porque vão
outros casais vc pode dizer problemas, tipo assim, "hj vamos a um
restaurante com a comidas muito diferentes que vai demorar ou muito caro e etc,
então vamos passar pra vc comer em algum lugar, vc prefere pizza ou Mc
Donals", porque, lembre-se ela está trabalhando."
"...Nesta segunda viagem ela
ficou encantada, me mandou mensagem quando chegamos agradecendo e eu acho
bonitinho a pessoa dar valor pq barato não sai uma viagem dessas pra gente.
Então , mais uma vez fica a dica: deixe tudo claro, pra não se arrepender
depois..."
A mulher que escreveu esse post não é a única que pensa
dessa maneira, portanto, não adianta culpar e crucificar apenas essa pessoa. As
relações com trabalhadores domésticos no Brasil têm estreita relação com nosso
passado escravocrata. Assim como ela, há muitos homens e mulheres brasileiros
que encaram os trabalhadores domésticos como pessoas que devem ter gratidão por
estarem empregadas e por terem a chance de conviver com uma família de classe
social alta. Isso, quando não os tratam como bens da família, sem permitir
qualquer tipo de vida particular.
Trabalho doméstico e
as mulheres negras
Segundo dados de 2005 da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio (Pnad/IBGE), existem no Brasil cerca de 6,6 milhões de pessoas no
trabalho doméstico, das quais 93,4% são mulheres. Destas, 55% são negras. De
todas as mulheres que trabalham no País, 17% são domésticas. O trabalho
doméstico como atividade remunerada é muito desvalorizado socialmente,
concentrando uma série de aspectos excludentes, como baixa remuneração, jornada
de trabalho longa e ilegalidade na contratação. Influencia diretamente nas
discriminações de gênero e raça, especialmente ao eleger um papel para a mulher
negra na sociedade.
"Infelizmente, o 13 de maio não foi capaz de sepultar o
passado escravista do nosso país. As reminiscências desse período estão
presentes por todos os lados. Na violência policial contra a população negra,
na morosidade em relação a implementação do sistema de cotas no ensino
superior, na precariedade do acesso aos serviços básicos garantidos pelo
Governo. O trabalho doméstico também é parte desse processo histórico de
invisibilidade e desrespeito às afro-brasileiras." Referência: Carta
aberta ao Grupo Antiterrorismo de babás, por Luana Tolentino.
A desigualdade social brasileira tem bases nessas relações.
E, principalmente, na ideia de que é um absurdo que empregadas domésticas,
babás, porteiros, jardineiros ou serventes queiram salários mais altos e os
mesmos direitos trabalhistas que advogados, engenheiros ou servidores públicos.
Porque é um absurdo que as pessoas que tenham uma babá nesse país tenham que
cortar gastos, como uma viagem ao exterior, para pagar hora-extra, férias e
outros direitos.
Procuram-se
domésticas ou serviçais?
Essa semana também saiu no Estadão uma matéria que mostra o
quanto é catastrófico que o salário de uma doméstica esteja na faixa de mil
reais: Procuram-se domésticas. Paga-se bem.
"Casada e mãe de duas crianças pequenas, uma de oito e
outra de seis anos, a advogada tem uma jornada de trabalho longa: fica cerca de
12 horas fora de casa diariamente e precisa de duas empregadas domésticas, uma
que dorme no emprego e outra que vai e volta, para administrar o lar. O
problema é que Andrea ficou sem a empregada que vai e volta. Daí começou a
peregrinação da advogada pelas agências de empregos domésticos em busca de uma
nova profissional."
O problema nesse caso é apenas a falta de empregada? Por que
essa mulher casada não tem ninguém para dividir tarefas? Por que mulheres e homens
trabalham 12 horas por dia e achamos normal? Por que é preciso que uma das
empregadas durma no emprego? Ela não tem casa? Não tem sua própria família?
Você, que está lendo esse texto, dorme no emprego? Como fazem as pessoas que
trabalham 12 horas por dia, como muitas trabalhadoras domésticas, mas não têm
dinheiro para contratar uma empregada doméstica?
O que as pessoas irão fazer quando não houver mais
empregadas domésticas ou babás para contratar? Vão importar babás paraguaias ou
bolivianas? Por que não questionamos os horários de trabalho de todas as
pessoas, para podermos ter tempo para cuidar das crianças? Por que não lutamos
por escolas em período integral e creches públicas? Por que não propor
lavanderias populares? Espaços de lazer? Por que não pensar em elementos que
poderiam nos ajudar na criação das crianças e nas tarefas domésticas, que
demandam sim muito tempo, mas são coisas com as quais temos que lidar?
Em dezembro de 2012, foi aprovada pela Câmara dos Deputados,
a PEC que amplia direitos das empregadas domésticas. Ao invés de comemorarmos
essa decisão como mais um avanço nos direitos trabalhistas, a maioria das
matérias reclama do peso que isso terá nas contas do empregador. Essas pessoas
provavelmente querem voltar ao tempo em que o salário mínimo não aumentava
anualmente. Porém, qual o impacto que a falta de direitos trabalhistas teve na
vida de milhares de pessoas durante anos? Deve haver até mesmo um impacto na
economia dessa parcela da população, mas não interessa pesquisar isso, não é
mesmo?
Como não é possível contar com o bom senso para regular
relações de trabalho, principalmente dos trabalhadores domésticos, que não raro
são submetidos a todo tipo de opressão travestida de "afeto" e de que
eles "são da família", as leis devem ser cumpridas. Trabalhadores que
viajam a serviço recebem hora extra, diária para alimentação, transporte e não
estão a serviço 24 horas por dia. Por que um trabalhador doméstico não estaria
submetido às mesmas regras?
Maternidade e Gênero
Outra questão que chama a atenção é a agressividade mal
dirigida para a autora do post citado no início desse texto. Sim, o relato dela
é um retrato didático da desigualdade e do sistema de castas e privilégios que
assola o Brasil e as relações de trabalho, mas muitos comentários foram a
respeito das escolhas pessoais dela a respeito da maternidade. Criticam o fato
dela "ler uma revista" enquanto a babá faz castelinhos de areia. Ser
mãe não te obriga compulsoriamente a gostar de determinadas atividades. Alguém questionou
por que o marido não faz castelinhos ou senta a bunda na areia para brincar com
a criança? Ou o quanto ele se dedica a dar atenção aos filhos? Não
questionamos, porque está subentendido que isso é papel apenas da mãe.
"A questão básica é que quando falamos do trabalho
doméstico é como se não falássemos de trabalho ou de pessoas, falamos de
objetos. Eu não questiono o fato de não dar para ser super-mãe, ora, as babás
de nossos filhos sabem disso na carne, pois muitas vezes deixam os filhos delas
com a vizinha, mãe, avó para poderem cuidar dos nossos e alguém parou pra
pensar nisso ao fazer propostas que no final das contas reverberam o racismo
incrustrado no Brasil?" Referência: Quando foi que as babás viraram
coisas? Durante a escravidão, por Luka Franca.
No fundo, a polêmica mostra como ainda estamos presos a uma
visão de que o trabalho doméstico é um trabalho "menor", seja ele
exercido pela mãe ou por uma empregada contratada. Questiona-se não só o valor
pago para babás e diaristas, um trabalho menosprezado, não intelectual e
majoritariamente feminino, como também questiona-se a maneira que cada mulher
exerce a sua maternidade. Como se "cuidar das crianças" fosse apenas
sua responsabilidade e o companheiro não tivesse nenhuma participação nessa relação.
Perdem patroas e empregadas. Perdem as mulheres como um todo quando não
entendemos que o exercício das funções internas e domésticas são
responsabilidade de todos os membros da família, independente do gênero.
Desigualdade
perpetuada
Para que a desigualdade social seja constantemente
perpetuada é preciso que ricos e pobres saibam quais são seus lugares e seus
espaços de poder. Da mesma maneira, mulheres e homens têm papéis sociais
pré-estabelecidos. Qualquer pessoa que fuja ou não se encaixe nesse jogo pré-estabelecido
é rejeitada socialmente. Quando não questionamos esse sistema perverso que
traça linhas invisíveis em nossas relações sociais, perpetuamos o machismo e o
racismo na sociedade, dentre outros preconceitos.
Dessa maneira, arquitetos e engenheiros continuam projetando
apartamentos com dependência de empregada, já estamos exportando essa ideia
para Miami. O cabelo afro não é visto como sinônimo de elegância e beleza. As
mulheres são as únicas responsáveis pelos cuidados com as crianças e pelas tarefas
domésticas. Mulheres negras são preteridas em cargos que exigem boa aparência.
O período escravocrata foi há muito tempo e nossa realidade não tem nenhuma
ligação com nossa história? Afinal, a carne mais barata do mercado sempre foi a
carne negra.
O fato de o mercado estar hoje mais favorável ao trabalhador
fomenta comportamento inusitado. Andrea conta que, no primeiro mês de trabalho,
a nova empregada já pleiteou o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS). A contribuição ao FGTS para empregado doméstico ainda não é
obrigatória, mas em breve deve virar lei. "Isso é reflexo de uma economia
aquecida. Hoje as empregadas domésticas estão por cima da carne seca", diz
Andrea. Referência: Procuram-se domésticas. Paga-se bem.
Fonte: blogueiras feministas
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