A salvadorenha Evelyn Hernandez Sanchez, de 30 anos, é uma
das raras sobreviventes da violência doméstica na América Latina que não tem
medo de mostrar o rosto. No último dia 25/11, milhares delas foram às ruas para
protestar no 'Dia Internacional para acabar com a violência contra a mulher'
Para romper o ciclo de violência a que são submetidas no
próprio lar, as mulheres precisam ultrapassar diversas barreiras: medo,
vergonha e preconceito. Não raro, perdem a casa e a dignidade. Recomeçar é
difícil, mas não impossível.
O que leva uma mulher que apanha do marido a continuar com
ele? Como é possível para uma mãe assistir a seu filho apanhar até quase perder
a consciência sem fazer nada? O tema violência doméstica é cheio de tabus e
condenações. Inúmeros estudos tentam entender por que vítimas dessa natureza,
por vezes, não conseguem sair da condição de agredidas. Um deles, feito pela
enfermeira Liliana Maria Labronici, fala sobre resiliência. Na física e na
engenharia, o termo refere-se à resistência dos materiais. Seria, grosso modo,
a quantidade de trabalho necessária para deformar um corpo até seu limite
elástico. Há cerca de três décadas, a noção de resiliência passou a ser foco de
estudo de psicólogos, psiquiatras e outros profissionais da saúde. Haverá um
limite da violência para o corpo e para a mente humana?
Quando analisada sob a ótica da violência doméstica,
especificamente contra a mulher, a resiliência passa a ser uma ferramenta
importante para entender como alguém pode se constituir ou reconstituir, de
maneira positiva, diante de uma situação adversa, ainda que o ambiente seja
desfavorável. Desde 2004, Liliana Labronici, ex-professora do Departamento de
Enfermagem da Universidade Federal do Paraná, estuda o impacto da violência na
saúde da mulher. Em sua mais recente pesquisa, apresentada no XXXI Congresso
Brasileiro de Psiquiatria, em outubro, ela chegou à conclusão de que a
capacidade de superação não é inerente ao ser humano. Diante de uma situação de
trauma, o sujeito pode ou não se recuperar com facilidade. A boa notícia é que
a característica pode ser estimulada.
Ela explica que o conceito já é amplamente usado na
oncologia, mas, quando o tema é mulheres que sofrem violência, a literatura
ainda é esparsa. “Não há estudos suficientes, mas já sabemos que a violência é
um trauma que deixa marcas além das físicas.” Transtornos psíquicos, por
exemplo, são comuns entre as vítimas. Contudo, ela enfatiza que ser resiliente
não quer dizer que a pessoa está bem o tempo inteiro. “É um processo dinâmico,
com altos e baixos”, completa.
A tentativa de estimular a resiliência reside, basicamente,
na análise do contexto em que a vítima está inserida, como o familiar, o social
e o cultural. Uma vez identificado o núcleo mais carente, é feito o trabalho
para suprir os elementos ligados às necessidades humanas básicas. Por exemplo:
se a violência está afetando a capacidade de a mulher se alimentar ou dormir,
trabalha-se primeiro esses problemas. “Todos esses elementos vão repercutir na
saúde dela como um todo”, explica Labronici.
Manter contato com entes queridos, segundo a pesquisadora, é
outra estratégia-chave para que um trauma dessa magnitude seja superado. A
aproximação, muitas vezes impedida pelo agressor, precisa ser estimulada. O
processo de mobilização interna, ela explica, precisa começar o quanto antes.
No estudo que fez, Liliana conta que acompanhou cinco mulheres em processo de
superação. Assim como ela, a Revista do CB procurou exemplos de ex-mulheres,
ex-namoradas ou garotas violentadas (às vezes, sexualmente) pelo pai em situação
de risco.
Resiliência
A noção de resiliência emergiu nos países anglo-saxões nos
anos de 1950, nos trabalhos de psicologia clínica e psicopatologia. Nos Estados
Unidos, os estudiosos que verdadeiramente abriram caminho para a sua utilização
foram os psicólogos americanos Emmy Werner e, posteriormente, Norman Garmezy e
Michael Rutter.
Na psicologia, a resiliência tem sido foco de interesse na
pesquisa há mais de 20 anos, e as publicações que surgiram no fim da década de
1990, relacionavam-se com populações em situações de risco como vítimas de
violência, crianças e adolescentes em situação de rua, entre outras
adversidades. Atualmente, essa tendência continua, porém, com menor
intensidade.
Fonte: Processo de resiliência nas mulheres vítimas de
violência doméstica: um olhar fenomenológico, de Liliana Maria Labronici
Rede de apoio
Buscar ajuda é fundamental para escapar da violência. Há
opções de redes de amparo que vão além da denúncia pura e simples. No âmbito
governamental, há a Casa Abrigo, espaço de acolhimento criado em 1993 para
mulheres vítimas de violência e seus dependentes (meninos de até 12 anos e
meninas sem limite de idade). O endereço é sigiloso e o local é vigiado por
policiais 24 horas por dia. Karla Valente, coordenadora do programa de abrigamento
da Secretaria de Estado da Mulher, explica que o encaminhamento acontece depois
da denúncia. A mulher segue para a casa e os agentes buscam seus pertences,
caso ela não possa ir sozinha.
Na maioria das vezes, as mulheres são encaminhadas à noite,
período em que as ocorrências são mais comuns. Normalmente, elas ficam com os
filhos em um quarto separado. Há oito quartos na casa. Há o acolhimento de
assistentes sociais e psicólogos, que realizam uma espécie de diagnóstico, para
identificar o nível de risco que ela está sofrendo. Atendimento médico,
transferência da escola dos filhos para uma mais próxima da Casa e novos
documentos, caso os antigos tenham sido destruídos pelo ex-companheiros, são as
primeiras providências. “Lá, atualmente, há trabalhos como aulas de canto,
música, artesanais e arte terapia”, detalha Valente.
As abrigadas ainda recebem informações sobre a dinâmica da
casa. “Há uma escala de serviços dentro da casa”, explica. “Isso também é
terapêutico. É importante que a casa seja como outra qualquer.” Logo, cada uma
é responsável por lavar as próprias roupas e manter o quarto limpo, como fariam
em suas próprias casas. As mulheres e seus filhos recebem seis refeições por
dia. Depois, há a limpeza da cozinha, decidida por escala, toda segunda-feira.
Voltado especificamente para vítimas de abuso sexual, o
projeto ViraVida também é uma opção para vítimas de violência. Jair Meneguelli,
presidente do Conselho Nacional do Sesi e idealizador, diz que a ideia é dar
mais que atendimentos superficiais, como apenas cama, comida e chuveiro.
“Queremos dar oportunidade para quem quer mudar de vida”, resume. As atividades
começaram em 2008 e têm como principal mote dar cursos de formação profissional
às jovens.
Por ano, a carga horária de aulas chega a 900, contando com
atendimento psicossocial, da família, médico e odontológico, e uma ajuda de
custo de R$ 500 por mês. “Depois que os jovens se formam, nos encarregamos de
correr atrás de empresas públicas e privadas para garantir que tenham emprego.”
Meneguelli diz ainda que os jovens são acompanhados por mais um ano. Caso
precisem de cursos extras, ganham bolsa novamente. Contando o auxílio, o
transporte, a alimentação, gastos com professores, psicólogos e com a equipe do
conselho nacional, ele estima gastar cerca de R$ 1.500 por jovem. Gastar, não:
investir. “Na Fundação Casa, a antiga Febem, se gasta R$ 7mil por menor
infrator. E nem adianta. Nós resgatamos dignidade.”
O projeto acontece em todo o Brasil. Além do sistema “S” —
formado por Senai, Sesc, Sesi e Sebrae —, Meneguelli convida toda uma rede de
enfrentamento, formada por conselhos tutelares, igrejas, Ministério Público,
Centro de Referência e quem mais puder ajudar. A partir dessa rede, entra em
contato com crianças exploradas sexualmente e os cursos são oferecidos. “Eles
chegam muito machucados, são anos de rua”, comenta. “Mas é perceptível que a
cara fechada e a desconfiança desaparecem assim que passam a receber instrução,
informação.” Os que aceitam participar não desistem. Segundo Meneguelli, a taxa
de evasão é em torno de 11% — contra 20% das pessoas que fazem os cursos pagos
do Senai, por exemplo.
Fonte:www.sites.uai.com.br
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