Essa cata de milagres e de prodígios que se espalhou pela
Igreja Católica e entre algumas Igrejas evangélicas vai na contramão do
cristianismo e da prática de Jesus. Fere profundamente a essência do
seguimento. Por isso estou plenamente convencido de que esses santuários e
lugares de curas e de milagres não são nada mais do que espaços de exploração
da situação do povo sofrido e oprimido.
Por José Lisboa Moreira de Oliveira
Tem circulado na mídia informações de que o Vaticano não
reconheceu nada de sobrenatural nas assim chamadas aparições marianas de
Medjugorje.
O próprio papa Francisco parece ter se pronunciado sobre
fatos semelhantes, chamado a atenção para o perigo de uma fé que se reduz a
essa busca de milagres e de prodígios, à busca de fenômenos espetaculares.
A liturgia da Palavra desse período de conclusão e de início
de ano litúrgico nos oferece a possibilidade de refletir sobre o assunto. De
fato as leituras bíblicas desse período costumam enfocar a temática do fim, das
coisas últimas, das etapas finais da vida humana e do cosmo; daquilo que na
teologia chamamos de escatologia. Porém, o que mais se destaca nas leituras é a
alerta para o risco de uma religiosidade que vive à cata de coisas
espetaculares. Os textos bíblicos desse período parecem nos dizer que a fé
cristã se contenta com as realidades mais simples, não sendo necessário nenhum
espetáculo fora do comum para nos convencer do amor e da bondade de Deus. Um
dos textos lidos dias atrás durante a liturgia da missa dizia exatamente o
seguinte: "O Reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer:
‘Está aqui’ ou ‘está ali’, porque o Reino de Deus está no meio de vocês” (Lc
17,20-21).
A humanidade de todos os tempos foi sempre tentada a buscar
fora dela mesma as respostas para os seus problemas. Segundo os antropólogos, a
religião nasce exatamente dessa busca do ser humano. O cristianismo quebra essa
dinâmica quando proclama e crê que não precisamos incomodar os deuses para
resolvermos os nossos problemas. Jesus vem para nos dizer que o Reino de Deus
está no meio de nós. Em outras palavras: a partir da vinda do Filho do Homem
não precisamos mais correr atrás do espetacular e do maravilhoso, pois a
solução de nossos problemas está aqui mesmo. Não há necessidade de correr atrás
de curas e de milagres.
No cristianismo Deus inverte as coisas. Ele se faz humano,
arma uma tenda no meio de nós e passa a caminhar conosco. Com isso rejeita a
falaciosa tática de determinadas religiões e religiosidades que obrigavam os
humanos a se curvarem diante dos deuses e a implorarem manifestações
espetaculares. Aliás, em Cristo, Deus se torna muito mais radical. Assume a
fragilidade humana. Ao invés de se mostrar grandioso, potente, glorioso, ele
prefere a via da fraqueza e da impotência. O evangelista João expressa isso
muito bem quando afirma que "o verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo
1,14). Fazer-se "carne” (em grego: sárx) significa tornar-se fraco,
insignificante, pequeno, frágil.
No cristianismo o caminho de libertação, de cura e de
salvação não está mais nas teofanias, ou seja, nas manifestações grandiosas das
divindades, mas na vivência diária do seguimento de um pobre carpinteiro. Por
isso todas as vezes que o povo correu atrás de Jesus, querendo prodígios e
milagres, ele se recusou a fazê-los e tomou distância da multidão (Jo 6,15). O
Mestre se recusava terminantemente a ser um profissional do sagrado e a exercer
o papel de curandeiro e fazedor de milagres. Quando o povo começa a correr
atrás dele, imaginando que fosse mais um daqueles embusteiros curadores e
fabricantes de milagres, ele despacha a multidão e provoca desilusão, afirmando
claramente que não veio a esta terra para realizar prodígios. Deixa bem claro
que a multidão deve mudar de perspectiva (Jo 6,26-27). Por esse motivo muitos
dos que antes se proclamavam discípulos deixaram de andar com ele (Jo 6,66).
Quando, na cruz, foi provocado a provar que era Filho de
Deus e lhe pediram para realizar um prodígio, Jesus não cedeu à tentação.
Preferiu relevar a sua divindade na fraqueza, não descendo espetacularmente da
cruz, como queriam aqueles que o insultavam (Mc 15,29-32). Foi isso que levou o
apóstolo Paulo a afirmar que a grande teofania ou manifestação do Deus dos
cristãos se deu num caminho descendente, mas de rebaixamento. O Filho abre mão
da condição divina, assume a natureza humana, torna-se servidor da humanidade,
aceita morrer como todo ser vivo e, pior ainda, aceita morrer da maneira mais
terrível e ignominiosa para a sua época: a morte de cruz (Fl 2,6-8).
As considerações feitas mostram que essa cata de milagres e
de prodígios que se espalhou pela Igreja Católica e entre algumas Igrejas
evangélicas vai na contramão do cristianismo e da prática de Jesus. Fere
profundamente a essência do seguimento. Por isso estou plenamente convencido de
que esses santuários e lugares de curas e de milagres não são nada mais do que
espaços de exploração da situação do povo sofrido e oprimido. Servem apenas
para trazer muito dinheiro, status e poder para determinadas pessoas. Conheço
muitos desses santuários e lugares de milagres, tanto aqui no Brasil como na
Europa. E a prova de que são espaços de exploração da fragilidade do povo é o
comércio e o dinheiro que rola nesses lugares. Lembro-me de ter ficado
profundamente chocado quando estive em Lurdes, na França. A exploração (venda
de produtos) começava dentro da própria gruta de Massabielle e se espalhava por
toda a cidade. A única coisa que me consolou naquele lugar foi a fé das
pessoas, especialmente dos doentes.
Geralmente a desculpa usada para justificar a existência
desses lugares é de que ali o povo simples manifesta a sua crença e de que é
necessário acolher tal manifestação de fé. Mas isso é "conversa para boi
dormir”, pois o comércio, a exploração e a manipulação da fé negam tudo isso.
Nos santuários os milagres só existem para os que dispõem de dinheiro para
viajar até lá em romaria e para comprar pelo menos uma vela a ser acesa ali.
Vela essa que depois de derretida volta para a fábrica onde é refeita e
revendida infinitamente. Jesus não construiu nenhum santuário, embora no seu
tempo existissem muitos com a mesma finalidade dos que existem hoje. O livro do
Apocalipse afirma que na nova Jerusalém não havia santuário (Ap 21,22).
Cabe aos profetas de hoje, como aqueles de ontem, educar o
povo e preveni-lo contra esse tipo de religiosidade exploradora. Diante do
desejo de sucesso e de fama de alguns padres e pastores curandeiros, que lucram
fortunas com isso, é preciso, como fez Jesus, enxotá-los dos templos (Jo
2,13-22) e mostrar que a proclamação do Evangelho passa bem longe dessas coisas
(Mc 1,36-39).
É verdade que o povo, vivendo na precariedade, esquecido
pelas autoridades políticas e religiosas, vítima da ausência de políticas
públicas sérias, estará sempre à cata de milagres e prodígios. Isso já
acontecia no tempo de Jesus. Mas isso não justifica o multiplicar-se de visões,
aparições, santuários, basílicas etc. etc. Infelizmente, quando o povo pobre
vai atrás dessas coisas, os ricos, inclusive os eclesiásticos, logo se
aproveitam para explorar a fé simples das pessoas e ganhar muito dinheiro com isso.
Não é por acaso que os maiores divulgadores dos santuários milagreiros e das
supostas aparições são os donos das agências de viagens, especialmente daquelas
dirigidas pelos "pios devotos” patrocinadores das televisões católicas.
Deveríamos aproveitar deste período litúrgico de conclusão e
de início de ano litúrgico para reafirmar que o Reino de Deus não está ali ou
acolá (em Aparecida, Trindade, Bom Jesus da Lapa, Juazeiro do Norte,
Caravaggio, Fátima, Canção Nova, Lurdes etc.etc.), mas está dentro de cada um
de nós. Deveríamos dizer que não precisamos correr atrás de milagres e de
prodígios, não precisamos visitar nenhum santuário ou lugar de milagres, pois
Deus habita em nós e nos atende sempre que pedirmos com fé (Jo 15,16). E aos
que insistem em continuar catando milagres, a resposta pedagógica deveria ser a
mesma de Jesus: "Não busquem o alimento perecível, mas o alimento que
permanece para a vida eterna” (Jo 6,27).
Fonte: Adital
José Lisboa Moreira
de Oliveira é filósofo, teólogo, escritor, conferencista, gestor do Centro de
Reflexão e Estudos sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da
Universidade Católica de Brasília, onde também é professor
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