O que Jesus queria era ensinar a viver e não criar uma nova
religião com frequeses piedosos. A Tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho espiritual que pode
ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial
ou religioso. .. Em que reside o fascínio da figura e dos discursos do Papa Francisco? Reside no fato de se ligar mais à Tradição de Jesus do que à religião cristã. Afirma que “o amor vem antes do dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas”.
Para se entender corretamente o Cristianismo se fazem
necessárias algumas distinções, aceitas pela grande maioria dos estudiosos.
Assim importa distinguir entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Sob o Jesus
histórico se entende o pregador e profeta de Nazaré como realmente existiu sob César Augusto e Pôncio Pilatos. O Cristo
da fé é o conteúdo da pregação dos discípulos que veem nele o Filho de Deus e o
Salvador.
Outra
distinção importante é entre Reino de Deus e Igreja. Reino de Deus é a mensagem
originária de Jesus. Significa uma revolução absoluta redefinindo as relações
do ser humano com Deus (filhos e filhas), com os outros (todos irmãos e irmãs)
com a sociedade (centralidade dos pobres) e com o universo (a gestação de um
novo céu e uma nova terra). A Igreja não é o Reino de Deus mas uma construção
história para levar avante a causa do Reino. Encarnou-se na cultura ocidental
mas também em outras como na oriental e na copta.
Outra distinção importante é entre a
Tradição de Jesus e a religião cristã. A Tradição de Jesus se situa
anteriormente à escritura dos evangelhos, embora esteja contida neles. Os
evangelhos foram escritos depois de 30 até 60 anos depois da execução de Jesus.
Nesse entretempo já se haviam organizado comunidades e igrejas, com suas
tensões internas naturais às instituições. Os evangelhos refletem esta
realidade. Não pretendem ser livros históricos, mas de edificação e de difusão
da vida e da mensagem de Jesus como Salvador do mundo.
Dentro deste emaranhado que signfica a
Tradição de Jesus? É aquele núcleo duro, aquele conteúdo que cabe numa casca de
noz e que representa a intenção originária e a prática de Jesus (ipsissima
intentio et acta Jesu) antes das interpretações que posteriormente se fizeram
dele. Esta pode ser resumida nos seguintes pontos entre outros:
Em primeiro
lugar vem o sonho de Jesus: o Reino de Deus como uma revolução absoluta da
história e do universo, proposta conflitiva pois se opunha ao Reino de César.
Depois sua experiência pessoal de Deus que a transmitiu ao seguidores: Deus é
Paizinho (Abba), cheio de amor e de ternura. Sua característica especial é a
misericórdia, pois ama até os ingratos e
maus (Lc 6, 35). Em seguida prega e vive o amor incondicional ao outro que é
posto na mesma altura que o amor a Deus. A centralidade reside aos pobres e
invisíveis. Eles são os primeiros destinatários e beneficiários do Reino, não
por sua condição moral, mas porque são privados de vida, o que leva o Deus vivo
a optar por eles. Neles se esconde o próprio Cristo (Mt 25, 40). Outro ponto
importante é a comunidade. Ele escolheu doze para viverem com ele; o número
doze é simbólico: representa a comunidade das 12 tribos de Israel e a
comunidade de todos os povos, feitos Povo de Deus. Por fim é o uso do poder. Só se legitima aquele uso que é
serviço e seu portador deve buscar o
último lugar.
Este conjunto
de valores e visões constitui a Tradição de Jesus. Como se depreende, não se
trata de uma instituição, doutrina ou disciplina. O que Jesus queria era
ensinar a viver e não criar uma nova religião com frequeses piedosos. A
Tradição de Jesus é um sonho bom, um
caminho espiritual que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores
também fora do quadro eclesial ou religioso.
Ocorre que
essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, a
religião cristã: uma organização religiosa, sob a forma de diversas Igrejas
especialmente a Igreja romano-católica. Elas se caracterizam por serem
instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, ritos e cânones
jurídicos. A Igreja católico-romana concretamente se organizou ao redor da
categoria poder sagrado (sacra potestas) todo concentrado nas mãos de uma
pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na cabeça, com exclusão dos leigos
e das mulheres. Ela detém as decisões e o monópolio da palavra. É hirárquica e
criadora de grandes desigualdades. Ela caiu na tentação de se identificar com a
Tradição de Jesus que é maior que a Igreja.
Esse tipo de
tradução histórica encobriu de cinzas grande parte da originalidade e do
fascínio da Tradição de Jesus. Por isso as Igrejas todas estão em crise, pois a
maioria se colocou como fim em si mesmo e não como caminho para Jesus.
O próprio Jesus entrevendo este
desenvolvimento, advertiu que pouco adianta observar as leis e “não se
preocupar com o mais importante que é a justiça, a misericórdia e a fé; é isso
que importa, sem omitir o outro”(Mt 23, 23).
Atualizemos: em que reside o fascínio da
figura e dos discursos do Papa Francisco? Reside no fato de se ligar mais à
Tradição de Jesus do que à religião cristã. Afirma que “o amor vem antes do
dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas” (Civiltà Cattolica). Sem essa
inversão o Cristianismo perde “o frescor e a fragância do evangelho” e se
transforma numa ideologia e numa obsessão
doutrinária.
Não há outro
caminho para a recuperação da credibilidade perdida da Igreja senão voltar à
Tradição de Jesus como o faz sabiamente o Papa Francisco.
Fonte: Jornal do Brasil
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