Porque este é um país no qual boa parte dos médicos sente
nojo dos pobres, sente medo, sente asco. E por conta disso os deixam morrer nas
ruas, sem ajuda. Ou olham, sem sequer levantar da cadeira, uma pessoa ter um
ataque do coração. Ou são aqueles que sequer levantam os olhos para o doente à
sua frente num posto de saúde. Os que não apertam a mão, os que não tocam, não
examinam, não reconhecem o enfermo como ser humano precisando de consolo.
Eu aprendi com Enrique Dussel que talvez o único imperativo
ético universal seja a vida. Mas, não uma vida qualquer. A vida daquele que é
vítima do sistema que o oprime e o envilece. É esse ser que temos de defender
com unhas e dentes, para o que vier. Todos os dias, nos deparamos com ele, na
televisão, na rua de casa, no mercado, ao virar a esquina. O caído, o
desgraçado, o fugitivo, o assustado. A maioria das pessoas faz como naquela
linda parábola de Jesus: olha, e passa adiante. Poucos são os que se curvam e
acolhem o que está no chão. E é bom que se diga que os empobrecidos da terra
não o são por sua culpa. A maioria está nessa condição porque alguém está lhe
sugando a vida. Alguém está enriquecendo a custa do outro. É a máxima do
capitalismo. Só que é mais fácil permanecer com o véu da alienação. Conhecer
dói.
Noite após noite a televisão –esse olho insone- joga na
nossa cara a dor do mundo. Mas, de maneira espetacular, consegue virar o jogo.
Os meninos negros, que são assassinados como moscas nas periferias das grandes
cidades, não aparecem como vítimas. Eles são os "monstros” que andam por
aí a fazer maldade. Ninguém diz o porquê deles ficaram assim, se é que ficaram
mesmo. E os bons cristãos fazem o "pelo sinal” e agradecem pela polícia
nos livrar dessa "corja”. Também vemos os "terroristas”, que podem
ser os palestinos, os sírios, os iraquianos, os afegãos, sempre serão aqueles
que estarão vinculados a algum plano do império estadunidense para vivenciar a
"plena democracia”. Não importa se para isso for necessário promover
farsas macabras, como a do 11 de setembro ou o assassinato de crianças
inocentes com armas químicas. Tudo vale a pena porque a "democracia” não é
pequena. E a classe média, aquecida em seus cobertores, esfrega as mãos e
agradece pelo império fazer a defesa de seu castelo de sonhos, "o mundo livre”.
Esses mesmos falsos burgueses, que pensam estar seguros com
seus planos de saúde, agora se levantam contra a vinda dos médicos cubanos.
Acreditam na revista Veja. Creem firmemente que essa gente solidária nada mais
é do que um povo escravizado que teme desobedecer a Fidel. Não sabem nada de
Cuba, de sua história, da coragem de seu povo em estar há mais de 60 anos
enfrentando o maior império da terra, e vencendo. Não sabem que na ilha
socialista qualquer pessoa que queira, pode ser médico, engenheiro ou padeiro.
Depende apenas de sua vontade. Não sabem que são esses profissionais que se
formam na solidariedade ao caído, ao oprimido, que se deslocam para os mais
terríveis lugares da terra unicamente para salvar e acolher. São esses jovens
médicos cubanos os que estão no Haiti, curando feridas, enquanto os nossos
jovens vão para lá de arma em punho, servir de cão de guarda ao império.
Agora vem essa polêmica por conta da vinda dos cubanos. De
novo o véu da alienação. Ninguém se pergunta por que um país como o nosso, tão
rico, tão cheio de bênçãos, precisa desses abnegados cidadãos? Se os médicos
cubanos são aqueles que partem para os confins do mundo, onde a dor do outro é
tão intensa que mais ninguém quer ver, por que precisariam vir para o Brasil?
Que porcaria de país é esse que arrota caviar, mas precisa dos médicos cubanos,
esses que vão aonde ninguém quer ir?
Pois esse é um país no qual boa parte dos médicos sente nojo
dos pobres, sente medo, sente asco. E por conta disso os deixam morrer nas
ruas, sem ajuda. Ou olham, sem sequer levantar da cadeira, uma pessoa ter um
ataque do coração. Ou são aqueles que sequer levantam os olhos para o doente à
sua frente num posto de saúde. Os que não apertam a mão, os que não tocam, não
examinam, não reconhecem o enfermo como ser humano precisando de consolo.
Esse é um país aonde os jovens recém-formados se recusam a
ir para o interior, para os lugares longínquos, para as selvas, para as
favelas, os bairros de periferia. Nem mesmo altos salários os comovem. Deve ser,
portanto, um problema de origem. Talvez um problema de classe. Quem é que nesse
país pode se formar em medicina? Como pode um jovem da periferia ser médico se
o curso exige tempo integral e custa os olhos da cara, mesmo numa escola
pública? Pois esse é um país que forma médicos, dentistas, engenheiros, na sua
maioria de classe alta. É, portanto, bem diferente de Cuba, que incentiva e
garante o ensino dessas profissões, e por ter tantos profissionais pode
mandá-los pelo mundo para que ajudem quem nada tem.
Assim, que a vinda dos queridos irmãos cubanos para o
Brasil, em vez de causar tanta indignação, deveria suscitar um alerta. Se temos
tantos médicos como ficou parecendo nas passeatas dos "de branco”, por que
não os encontramos onde eles têm de estar? Por que precisamos da ajuda dos
cubanos, se eles estão acostumados a atuarem em lugares perdidos de toda a
esperança, como os confins do continente africano, ou as aldeias andinas, ou os
empobrecidos países do Caribe, como é o caso do Haiti? Em que medida o país do
pré-sal, a quinta economia do mundo, se compara a esses tristes lugares onde só
a solidariedade cubana é capaz de chegar?
Essas perguntas é que deveriam ser feitas por nós. O que é a
medicina num país capitalista? Ela existe para salvar a vida, para dar conforto
ou apenas para fazer girar a roda do lucro das farmacêuticas e dos mercadores
da saúde? Por que não temos uma medicina preventiva? Por que não há médicos nos
postos de saúde? Por que não estão eles nos hospitais, nas emergências, nas pequenas
cidades do interior, no campo? Onde se esconde toda essa gente que agora anda a
vociferar nas ruas?
Sim, nós não deveríamos precisar dos médicos cubanos. Nossa
juventude deveria ter acesso às escolas de medicina, de odontologia, de
veterinária. Deveríamos formar milhares e milhares de profissionais da saúde,
para que cuidassem das gentes de todo o país. Deveríamos ter universidades de
massa, nas quais os filhos do povo pudessem se formar com qualidade. E qualquer
guri, mesmo aquele que vive lá no interior do Acre, deveria poder fazer
realidade o sonho de ser "doutor”. Mas, não é assim. Os médicos que temos
são esses que vemos na televisão dizendo que se vierem os cubanos eles não vão
ajudar quando eles errarem. Ou seja, que morra o vivente, apenas para provar
que estão certos.
É certo que temos também muitos profissionais médicos que se
assemelham aos cubanos, que dedicam suas vidas ao juramento que fizeram de
cuidar, acolher, curar. Esses, sabemos reconhecer de apenas uma mirada. Mas,
ainda são minoria. Para nossa desgraça, o que aparece são esses que vemos na TV
a bradar contra os cubanos, mas não contra o estado de abandono que está a
população. E é isso que torna tudo ainda mais sórdido. Porque pessoas há que
lhes dão razão, e não são poucas. Essas mesmas pessoas que, portando um plano
privado de saúde, acreditam estar a salvo. Não estão. Mas, ainda assim,
compactuam dos preconceitos, dos absurdos, da alienação e da mentira.
Eu realmente não queria que os médicos cubanos viessem para
cá. Queria ter um país que não precisasse dessa ajuda solidária. Mas, ocorre
que, em alguma medida, e em tantos lugares, somos tão desprotegidos como os
irmãos do Haiti ou de alguma longínqua aldeia africana. É certo que os médicos
cubanos são só pessoas, não fazem milagres. Mas, não há dúvidas de que a
medicina que se ensina e pratica na ilha caribenha se difere em muito da nossa.
Ela pensa o ser como uma vida integral, alguém que tem nome, sobrenome, sonhos,
esperanças. Não é um dado na ficha, um inoportuno, um zé ninguém. E é por conta
disso que quero receber essa gente única com todo o amor que há nessa vida.
Eles saem de suas casas para fazer o que nossos profissionais deveriam fazer.
Rogo a todos os deuses que eles tragam, mais do que essa solidariedade abissal,
também o germe da rebeldia, para que nosso povo possa compreender que já é
chegada a hora de fazermos a transformação. E que a gente avance para um país
que não precise dos cubanos, um país que possa ser ocupado por nós mesmos. Mas,
para isso, haveremos de mudar a universidade, mudar o país, e sair desse
sistema que mercadeja com a saúde e a vida.
Os cubanos podem até não salvar todas as vidas, mas, não
duvido, eles serão capazes de segurar a mão do que padece e dizer: "não
tema, eu estou aqui”. Porque são feitos de outro barro. Socialista.
Fonte: Adital
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