Mulheres estupradas pelo parceiro costumam não denunciar a
violência sofrida e carregam as sequelas psicológicas do sexo forçado. Pesquisa
da ONU com 10 mil asiáticos indica que 24% deles admitem ter praticado o crime.
"Fico retraída e me esquivo, mas, no fim, acabo
cedendo. Boa parte das vezes machuca, e isso acontece com mais frequência
quando ele bebe. Para evitar discussões, fico imóvel. Só tenho vontade de que
acabe logo." Casada há 10 anos e mãe de três filhos, Ana Carla* é
violentada por quem ama. A história de abuso sexual na casa em Valparaíso, em
Goiás, repete-se nos lares do Brasil e do resto do mundo e causa, além de danos
físicos, sequelas emocionais, como pânico, angústia profunda e depressão.
Levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU) com
pouco mais de 10 mil homens de seis países da região Ásia-Pacífico indicou que
24% deles admitem ter estuprado uma mulher, incluindo a parceira, ao menos uma
vez na vida (veja infográfico). No Brasil, de acordo com o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, 41,2 mil casos de abuso sexual foram denunciados em 2010 -
168% a mais do que em 2005. Apesar do crescimento das queixas, especialistas
acreditam que as vítimas do estupro cometido dentro de casa - que representa
boa parte dos casos - continuam caladas.
Entre os resultados do silêncio e da violência, segundo o
psiquiatra forense Talvane de Moraes, está o impacto negativo à saúde mental.
As mulheres violentadas ficam tão fragilizadas que os estragos chegam a
comprometer o recomeço daquelas que optam pela separação. "É o que
chamamos de estresse pós-traumático, quando a mulher não consegue superar o
ocorrido, influenciando de forma negativa a vida sexual futura, já que pensa
não poder encontrar ninguém que a trate com carinho", explica o membro da
Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). "Se a pessoa tiver histórico
de baixa autoestima, pode até atentar contra a própria vida", complementa.
Emma Fulu, especialista em pesquisa de parcerias para a
prevenção da violência em Bangkok, na Tailândia, chama atenção para outra
implicação à saúde da mulher causada pelo parceiro que pratica a violência
sexual fora de casa. "Se pensarmos nas implicações significativas para
infecções causadas por doenças sexualmente transmissíveis em razão da
penetração no estupro, a mulher fica ainda mais vulnerável. E isso incluiu o
HIV", alerta a participante do estudo publicado na Lancet.
Apoio psicológico, incluindo a reeducação do comportamento
sexual, faz parte do apoio necessário à vítima do abuso sexual. Segundo Talvane
de Moraes, a maioria se sente inibida, achando que outros homens repetirão a
violência. "O indicado é a psicoterapia e, nos casos de depressão
profunda, podem ser receitados medicamentos." O psiquiatra também chama a
atenção para o comprometimento psicológico e social do abusador. "São
geralmente pessoas que acham que não têm condições para entrar em um jogo de
sedução. Por isso, recorrem à força física para ter uma relação sexual",
explica.
Ana Carla* diz que fala sobre o assunto com as amigas e que
muitas delas vivem o mesmo problema. "Mas não vou colocar meu casamento a
perder por causa disso. Sei que é considerado crime, mas, assim como tantas
outras, é melhor passar uma borracha até a noite seguinte", confessa. De
acordo com Aparecida Gonçalves, secretária Nacional de Enfrentamento à
Violência contra as mulheres, da Secretaria de Políticas Públicas para as
mulheres (SPM), o silêncio também passa por questões econômicas e culturais.
"A maioria não denuncia porque tem medo. Ainda existe a questão cultural
de servir, de o sexo ser uma obrigação. Mas tem que existir a concepção de que
a relação sem consentimento é crime e deve ser levada às autoridades
competentes."
"Interesse
universal"
A sondagem feita pela ONU durou quatro anos. Agentes
visitaram lares de áreas urbanas e rurais de Bangladesh, Camboja, China,
Indonésia, Papua-Nova Guiné e Sri Lanka. Eles não perguntaram aos 10 mil
participantes se haviam cometido algum estupro, mas, por exemplo, se já haviam
forçado uma mulher que não era a esposa ou namorada a ter relações sexuais.
Onze por cento dos entrevistados relataram ter cometido o
crime ao menos uma vez na vida. A taxa subiu para 24% quando foram consideradas
a esposa, a noiva ou a namorada. Os pesquisadores constaram ainda que homens
com histórico de vitimização, especialmente abuso sexual na infância ou
coagidos sexualmente, tinham mais probabilidade de cometer o crime.
Emma Fulu avalia que os resultados são uma prova robusta da
extensão, da natureza e do efeito da violência praticada contra as mulheres, o
que faz necessário o reforço na prevenção desse tipo de crime. "Essa é uma
pesquisa com resultados notáveis e de interesse universal porque metade da
população do mundo vive nas regiões estudadas, e, embora os países sejam
culturalmente diversos, não teve diferenciações significativas quanto ao abuso
sexual. Seguimos normas éticas e de segurança internacionais rigorosas que
permitiram aos homens responderem às perguntas sobre estupro. Se o crime vem
acontecendo dentro de casa, é preciso repensar a estrutura da família",
avalia.
Fonte: Correio Braziliense
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