Apesar do vocabulário vasto, a administradora Adriana não
consegue pronunciar a palavra certa para descrever o que fez sua vida virar
pelo avesso. A morena de cabelos pela cintura, mãe de duas filhas, só se refere
“ao ocorrido”. Também não fixa os olhos em nenhum ponto enquanto conta sua
história. O que ela não consegue nomear, nem encarar de frente, é um pesadelo
vivido em 2012 por 4.993 mulheres no Estado do Rio: o estupro. Em comparação
com 2011, o número representa um aumento de 23,8%.
A médica Júlia também teve muita dificuldade para enfrentar
a realidade. Preferiu recorrer à fantasia: para esconder as surras que levava
do marido — e até o nariz quebrado por ele —, se matriculou em aulas de luta
numa tentativa de justificar à família as marcas roxas pelo corpo. Ela levou
anos até conseguir superar a vergonha e procurar a polícia. Júlia não é um caso
isolado. No ano passado, a cada dez minutos, pelo menos uma mulher foi vítima
de lesão corporal dolosa no estado.
Ao todo, 58.051 mulheres foram vítimas de agressão.
Significa dizer que o drama enfrentado pela médica se repetiu na vida de outras
159 mulheres em cada dia de 2012, quase sete agressões por hora. Na comparação
com 2011, a lesão corporal dolosa teve crescimento de 6,3% para vítimas do sexo
feminino, segundo o Dossiê Mulher 2013, feito pelo Instituto de Segurança
Pública (ISP). Os números são ainda mais alarmantes se comparados com os de
2008, quando ocorreram 45.773 casos, quase 12.300 a menos que no ano passado.
Conhecidos são os que
mais agridem
O que torna a violência ainda mais estarrecedora é que ela,
na maioria das vezes, é praticada por alguém que partilhou a intimidade e os
sonhos da vítima: em 52,2% dos casos são companheiros ou ex-companheiros que
espancam, cortam, torturam. A médica Júlia, que sempre conviveu com as
facilidades de uma família abastada, frequentou boas escolas e só começou a
trabalhar após se formar em medicina numa universidade federal, nunca imaginou
que faria parte das estatísticas de agredidas. A história começou a mudar
quando ela conheceu, por meio de amigas, um jovem militar. Parecia um bom
partido, e logo os dois subiram ao altar. Só que em vez de cumprir a promessa
de amá-la e respeitá-la, o marido começou a agredi-la durante a gravidez. Além
de bater, conta Júlia, ele fazia acusações de que ela teria um amante. O bebê
nasceu, e a médica começou a ter aulas de luta e esportes radicais para
justificar os hematomas. Viu fracassarem suas tentativas de esconder que seu
papel de esposa se misturava ao de vítima durante uma festa. Foi atacada a
socos pelo marido, em meio aos convidados. Depois disso, ela ainda ficou mais
três anos com ele. No total, foram oito anos de sofrimento:
— Tive o nariz quebrado por um murro, um sem número de
hematomas e até um corte profundo, que ele fez a faca e que deixou sequelas
numa de minhas mãos. A dor física era grande, mas nada tão intenso quanto o
sofrimento da alma. Passei a mentir e a fantasiar versões para tentar esconder
a realidade. Era muito duro encarar o fato de que o homem que escolhi para ter
uma família me tratava como saco de pancadas. Até admitir isso, passei a usar
roupas largas para esconder meu corpo, pois ele era muito ciumento. Criei uma espécie
de código para atender os pacientes que me ligavam à noite sem dar problema —
diz.
Há dez anos atuando com mulheres vítimas de violência em
Caxias e Mesquita, a psicóloga Elizabeth de Oliveira Leandro diz que a surra na
mulher é, geralmente, o desfecho de uma série de violências prévias. Até chegar
a esse ponto, o agressor muitas vezes já colocou em prática a violência moral e
psicológica, que abala a autoestima feminina. Em alguns casos, também cometeu
abusos sexuais.
O enredo descrito pela psicóloga parece até a biografia de
Márcia. Moradora da Baixada, onde os municípios de Nilópolis, Mesquita, Nova
Iguaçu e Duque de Caxias concentram a maior parte de casos de lesão corporal
dolosa do estado, ela conviveu com agressões desde jovem. Aos 15 anos, saiu de
casa para escapar do assédio do padrasto e foi trabalhar como empregada
doméstica na Zona Sul. Logo conheceu um porteiro, que se tornou pai do primeiro
dos seus três filhos. O homem era casado, e Márcia teve que voltar à casa da
mãe. Os relacionamentos se sucederam até que conheceu o pai do caçula.
Violento, ele a surrou e a humilhou constantemente durante três anos. Márcia
aguentou calada. Explodiu depois que, numa madrugada, bêbado, ele a violentou.
Márcia foi socorrida por vizinhos e levada à Delegacia Especial de Atendimento
à Mulher (Deam), em Nova Iguaçu, onde fez questão de registrar o estupro.
Como Márcia, 51,2% das vítimas de estupro conheciam o
agressor, de acordo com o Dossiê Mulher: eram conhecidos (11,5%), tinham algum
grau de parentesco, incluindo padrastos (29,7%), eram companheiros ou
ex-companheiros (10%). A faixa etária das molestadas também impressiona: em
51,4% dos casos, são crianças de até 14 anos.
Aos 40 anos, Adriana se encaixa no grupo de vítimas que
nunca tinham visto seu estuprador (27,3% do total). Moradora de Jacarepaguá,
ela estava indo para o trabalho quando foi abordada por um homem armado, que a
obrigou a subir na garupa da moto e a levou para um local ermo. O que se passou
lá, ela luta para esquecer, mas diz que não vai mudar a própria rotina:
— Durante pouco mais de uma hora, ele mandou na minha vida.
O resto do tempo, sou eu que determino como será — diz Adriana, que, no
entanto, ainda tem muita dificuldade para não lembrar.
— Quando vejo uma moto Honda Bis, como a dele, na rua, eu
chego a gelar. Quando meu marido me abraça, me encolho toda. Ele tem calma,
paciência comigo, mas também está sofrendo. O casal é estuprado junto.
Socióloga, pesquisadora e professora do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), Aparecida Fonseca Moraes ressalta que a
criação de delegacias para mulheres, a aprovação da Lei Maria da Penha e outras
políticas públicas adotadas deram visibilidade à violência praticada contra a
mulher.
— O velho jargão de que em briga de marido e mulher não se
mete a colher caiu por terra. Isso é resultado de uma série de medidas que
retirou essa violência da vida privada, levando a questão para o debate público
— acredita.
A socióloga sustenta que essa visibilidade, associada à
sistemática coleta de dados estatísticos, gera a impressão de que esse tipo de
violência cresce a cada ano. Para ela, contudo, os números refletem uma mudança
de comportamento das vítimas, que passaram a encarar o tabu e a denunciar seus
agressores, como Márcia, Adriana e Júlia (nomes fictícios).
Fonte: O Globo
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