Maria começou a prostituir-se no dia em que se divorciou.
Cláudia não esconde do marido o que faz da vida. Sandra foi stripper e acabou
nas ruas. Laura veio de Espanha para fugir dos vícios e acabou na prostituição.
Maria esconde a cara atrás de um pequeno estojo dourado.
Olha-se ao espelho e retoca a maquilhagem, indiferente aos clientes que
abrandam a marcha à sua frente. Há mais de vinte anos que passa as noites nesta
esquina e conhece praticamente de cor as matrículas dos carros. São dez da
noite, e enquanto o ritmo da cidade vai acalmando aqui começa o frenesim do
sobe e desce a rua em busca de sexo. “Não falho, sete dias por semana. É duro, mas
temos as nossas despesas para pagar, não é?”
Numa noite como esta, um domingo, o trabalho pode
prolongar-se até às seis da manhã. Maria talvez fique até às quatro, mas nunca
se sabe. Não vale a pena fazer grandes planos, tudo vai depender da vontade e de
como correr o negócio. “Ao fim de semana fico até mais tarde, às vezes são seis
e ainda aqui ando”, conta, sentada no parapeito de uma janela. Tem cabelo
curto, um decote que deixa escapar uma rosa tatuada no peito e veste calças de
ganga. Na bolsa pousada no colo guarda um maço de tabaco para queimar o tempo.
E dois iogurtes para matar a fome.
Nesta zona da cidade, há muito que a prostituição tomou
conta das ruas. É uma espécie de vida dupla que se ocupou deste bairro
insuspeito no coração de Lisboa, ao lado do Parque Eduardo XVII: durante o dia,
advogados e empresários que trabalham na Rua Castilho almoçam nos restaurantes
e cafés, à noite a zona transfigura-se, com dezenas de mulheres, portuguesas e
estrangeiras, a exibirem-se nas esquinas e a investirem o olhar nos carros que
passam.
Não há um tipo de cliente: chegam homens novos, velhos, em carros
de luxo ou simples utilitários. Quase sempre sozinhos. “Normalmente, os que me
procuram são rapazes novos”, assegura Maria, 50 anos, na rua há 26. “Preferem
as mais experientes, enquanto os mais velhos procuram raparigas de 20 ou 22
anos.”
A conversa é interrompida pela passagem de um vizinho que
passeia o cão. Maria troca meia dúzia de palavras, uma conversa de
circunstância igual a todas as noites, sem nunca deixar fugir o sorriso.
“Conheço as pessoas que vivem aqui”, diz, enquanto faz festas ao cão. “Gosto
dos vizinhos, todos me cumprimentam, já lhes conheço as rotinas, as horas a que
vêm passear o cão ou despejar o lixo. Eu dou-me ao respeito, não me meto em
confusões.”
Há qualquer coisa tragicamente irónica no destino de Maria,
que decidiu prostituir-se no dia em que se divorciou do marido. Recorda as
contas que chegavam e ela sem dinheiro para pagar, as crianças a gritar com
fome, até suspirar um irremediável “não tinha para onde me virar”. “No dia em
que vim ao tribunal por causa do divórcio, passei no Parque Eduardo XVII e vi
imensas mulheres. Fiquei tentada, precisava de resolver a minha vida. Isto foi
numa sexta-feira, na segunda estava lá sentada com as outras mulheres.”
O preço a pagar
É dia de jogo grande de futebol e isso nota-se no movimento:
terminada a partida, multiplicam-se os carros que chegam a esta zona da cidade.
As esquinas estão quase todas ocupadas, algumas com pequenos grupos, outras
apenas com uma ou duas mulheres. Numa delas, sentada sobre uma caixa de cartão
espalmado, está a mulher que muitas conhecem por “tia”. Não desvia o olhar dos
automóveis que atravessam lentamente o cruzamento. Alguns invertem a marcha ao
fundo da rua, voltando a passar à sua frente, uma e outra vez. Sandra abre
ligeiramente o casaco de cabedal sobre um top preto decotado, calças justas e
botas de salto vertiginoso.
“Sempre tive este estilo meio hard-rock. Aos 15 anos, usava
o cabelo pintado de várias cores, rapado de um lado, piercing na língua. Já
nessa altura era muito à frente.” Filha de um holandês e de uma portuguesa, diz
que os pais sempre foram pessoas de mente aberta. E ela uma “irreverente”: tem
43 anos, 26 dos quais vividos na noite. Começou a trabalhar como stripper,
passou por bares de alterne e acabou nas ruas. “Na vida tudo passa, hoje já não
posso ser stripper. Tenho 43 anos, 85 quilos, e isto é como em tudo na vida.
Mas ainda me pedem para voltar.”
Para muitas mulheres, a rua é o fim da linha: destino de
quem viveu tempos dourados nas boîtes, mas dos quais sobram apenas as marcas difíceis
de disfarçar com camadas de base e rímel. “As primeiras noites na rua não são
fáceis. Fazer sexo por amor é uma coisa, por dinheiro é outra bem diferente.
Mas depois de entrar, o difícil é sair.”
Tal como aconteceu com Maria, Sandra também começou a
trabalhar na noite depois de um divórcio complexo que a deixou à beira da
falência. “Tinha uma dívida de 36 mil euros para pagar, era isto ou cumprir
pena de prisão. Um familiar emprestou-me 40 mil euros.” A solução encontrou-a
nas ruas e “ao fim de dois anos a dívida estava paga”.
Ganhar dinheiro pode tornar-se um vício como outro qualquer,
semelhante às drogas ou ao álcool. “Se for trabalhar noutra profissão qualquer,
vou ganhar quanto?”, interrompe Laura, uma mulher brasileira que ouve a
conversa a escassos metros. Está em Portugal há três anos, para onde veio para
fugir ao vício da cocaína. Para Sandra, no entanto, a questão não se resume a
números: “Habituámo-nos a ter dinheiro, é certo, mas também cá venho pelas
histórias, pelo que se vive no dia a dia. Basta estar uma semana sem vir cá
para começar a pensar ‘tenho de ir’. Há qualquer coisa que me puxa.”
Para quem procura sexo na rua, o destino é quase sempre uma
pensão alugada à hora ou meia-dúzia de minutos de prazer dentro de um carro.
Quando os clientes preferem assim, as mulheres encaminham-nos para parques de
estacionamento vazios, onde podem ter alguma privacidade. Os preços não variam
muito: uma relação normal na pensão custa 50 euros – mais o valor do quarto,
pago pelo cliente –, no carro, 30 euros, sexo oral, 20 euros.
“Por mês, sem me chatear muito, tiro 2500 euros. Uma miúda
que queira trabalhar faz à vontade quatro mil”, assegura Sandra. “Claro que
tenho os meus clientes fixos, sem esses não vamos a lado nenhum.”
Talvez estes números expliquem o recente estudo do Programa
PREVIH, cuja conclusão principal aponta para um aumento da prostituição de rua
devido à crise. “Um dado importante é que, de 2010 para 2012, nota-se os
primeiros indícios da crise: muitas mulheres que voltaram a fazer trabalho
sexual por necessidade de sobrevivência”, afirmou um responsável, alertando
para “uma maior permeabilidade para baixar a guarda na exigência com clientes,
diminuição dos preços dos serviços” e aumento das “situações de risco”.
A relação com o marido
Maria também se vale dos seus clientes fixos. Além de lhe
assegurarem as contas da casa, são dos poucos homens por quem ainda guarda
algum tipo de admiração. E é também por eles – e por si, claro – que faz
questão de se arranjar, porque gosta dos elogios que lhe fazem: “Os meus
clientes dão-me 35 ou 39, ninguém acredita que tenho 50 anos. Arranjo as unhas
todas as semanas, compro bons cremes e vou ao cabeleireiro. Não é só ganhar
para casa e filhos, também tenho de me cuidar.”
Divorciada, diz que nunca se deixou levar por nenhum homem
após a separação do marido. Mas reconhece que “há clientes com quem uma pessoa
se pode perder”. “Procuro não misturar as coisas, mas há quem queira dar-me a
volta. Tento não os habituar mal, se não eles abusam, mas a verdade é que todos
precisamos de algum carinho, não é?”
Aos 50 anos, encara a prostituição como um trabalho, mas
recusa fazer planos. Principalmente se envolverem o sexo masculino. “Meter um
homem debaixo do mesmo teto é impensável. Nunca mais tive nenhum companheiro,
nem quero. Umas curtes tudo bem, agora viver em minha casa não. Já estou
habituada assim: a minha filha, uma irmã, duas cadelinhas, uma gatinha. É
quanto basta.
Duas esquinas acima, Cláudia, 31 anos, conta que vive o
problema oposto: tem um companheiro que sabe da sua profissão. Por isso, sempre
que cruza a Rua da Artilharia 1 a caminho de casa, a vida de prostituta fica
para trás. “Não penso nisso e evito falar do assunto com o meu marido. Nunca
passo aqui durante o dia, não é caminho para mim.” Quando chega a casa, marido
e filho já dormem. “Tomo um banho e deito-me porque no dia seguinte tenho de
levar o miúdo ao infantário.”
Quando chegou a Portugal, jamais havia pensado em vender o
corpo nas ruas. Veio atrás do marido, brasileiro, pai dos seus três filhos, que
deixou a cargo da mãe no país de origem. Depois de um curto período de tempo a
cuidar de idosos, chegou o desemprego e os sonhos esfumaram-se. “Tive de optar
por isto, é doloroso, sou casada. Mas tenho as meninas no Brasil, que estudam,
fazem curso...” Cláudia manda dinheiro todos os meses para o Brasil. As
quantidades variam: “Umas vezes mil, outras 900, nos meses melhores 1200
euros.”
Para muitas mulheres que escolhem esta vida, os filhos e a
casa são as prioridades. Sandra, que tem um rapaz de sete anos, diz-lhe
frequentemente que vai trabalhar para fora, para justificar as ausências de
duas semanas. Não é mentira: nesses dias, viaja até à Holanda ou França para
dias de trabalho intensivo. “Aí, sim, compensa”, garante. “Em fevereiro estive
em Amesterdão durante três semanas. Em pouco mais de 15 dias, consegui juntar
sete mil euros, é dinheiro.” O destino são casas de alterne ou de prostituição,
onde as mulheres cobram saídas a 100 e 150 euros. “Mas estamos limitadas a três
ou quatro clientes por dia.”
Embora seja aparentemente mais seguro e confortável
trabalhar num apartamento, para muitas mulheres a rua acaba por ser sinónimo de
mais lucro e liberdade. Não são obrigadas a cumprir um horário, apenas aceitam
os clientes que querem, e, acima de tudo, não são obrigadas a dar metade do que
ganham. “Em Espanha, o trabalho nos clubes obrigou-me sempre a repartir os
ganhos”, conta Laura, confessando ter atravessado uma fase complicada no país
vizinho. Chegou a Portugal há três anos e optou pela rua para não ter de
partilhar o que ganha.
“Aqui na rua ganho bem melhor”, assegura também Cláudia, que
depois do ficar desempregada do lar de idosos começou a prostituir-se num
apartamento, recorrendo aos anúncios de jornal para angariar clientes. “Trabalhava
muitas mais horas, começava às 10 da manhã, saía pelas sete da tarde. Numa casa
paga-se menos. Ainda hoje vi no jornal um anúncio de relação a 20 euros. Há uns
que cobram mais, mas 20 euros é o cúmulo.”
Sandra ainda se recorda dos dias frenéticos que se viveram
durante o Euro 2004. “Em 22 dias fiz 7800 euros. Muitos holandeses e ingleses.
Não fui a única, todas as miúdas aqui da rua ganharam um bom dinheiro. Os
ingleses pagavam às 100 libras de cada vez.”
Legalizar a mais
velha profissão
Quem olha para Cláudia, vestida com um fato de treino, ténis
e casaco de capuz, dificilmente adivinha o que faz da vida. “Onde eu moro
ninguém sabe do meu trabalho. Sou apenas uma mãe brasileira, dedicada ao filho,
que trata da casa...” Mas, como explica Sandra, “uma prostituta tem sempre a
sua máscara”. “Põe a meia de liga, sapato de tacão alto, blusa decotada e está
feito.”
Mesmo com esse lado clandestino tão enraizado, há mulheres
que preferiam ver legalizado o que consideram ser a sua atividade profissional.
A ideia não é de agora, mas ganhou outros contornos no final do ano passado,
quando várias ONGs se juntaram para lutar pelos direitos dos “trabalhadores do
sexo”. Para as que levam décadas na rua, talvez a legalização venha tarde. A
maioria nunca fez o IRS, nunca descontou para a Segurança Social, não integra a
lista de direitos e deveres garantidos pela cidadania. Aos olhos da máquina
fiscal, não existem.
Sandra queixa-se da falta de apoios do Estado. “Sou mãe
solteira, tenho um filho de oito anos. Se ficar doente não tenho direito a
ficar em casa. Fazíamos os nossos descontos e acabava-se com isto”, reclama,
dando exemplos de outros países onde a prostituição tem enquadramento legal e
as mulheres estão mais protegidas quando escolhem a rua para trabalhar: “Na
Alemanha, as prostitutas pagam parquímetro, seis euros das oito da noite às
seis da manhã.”
Em vez do parquímetro, Sandra compra latas de gás pimenta
para se proteger dos clientes, cujo perfil pode variar muito. “Onde há
prostitutas há máfia. Os clientes tanto podem ser o traficante, como o polícia
ou o varredor de rua.”
Cláudia também já apanhou alguns sustos, mas nada disso a
impede de voltar quase todas as noites à mesma esquina. Só não sai com os mais
novos porque têm fama de serem “complicados”. Diz que deixar a vida das ruas é
uma questão de tempo: “É só arrumar um trabalho. Agora no verão vou fazer um
curso de geriatria, gosto de cuidar dos idosos. Depois disso logo se vê.”
Regressar ao Brasil é um sonho que alimenta todos os dias, falta apenas o
marido decidir voltar com ela.
Maria nunca teve outra profissão e não se imagina a fazer
outra coisa, mesmo já tendo apanhado alguns sustos. É da maneira que ajuda os
filhos, uma desempregada, o outro preso. Ambos sabem da vida da mãe. “O futuro?
Eu vivo o dia a dia, é o deixa andar. Ter a minha casinha arranjadinha, os meus
filhos impecáveis, e seja o que Deus quiser.”
Fonte: (André Rito) www.maxima.xl.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário