A avó de Nhá Chica, uma africana trazida de Angola num navio negreiro em 1725, ficou conhecida como Rosa de Benguela. Violentada aos 14 anos pelo seu "amo e senhor", foi vendida e levada do Rio para Minas, onde veio ao morar perto de Mariana. Cativa na Fazenda Cata Preta, viveu 15 anos na prostituição. Aos 30 anos, doente, resolveu mudar de vida. Vendeu os poucos bens que tinha, distribuiu o dinheiro aos pobres e começou a participar de ofícios e liturgias nas igrejas da região.
Por Dom Demétrio Valentini
A Igreja do Brasil vive um momento muito especial neste
final de semana. Na pequena cidade de Baependi, Sul de Minas, se realiza a
beatificação de Francisca de Paula de Jesus, popularmente conhecida como Nhá
Chica, há muito tempo venerada pelo povo como santa.
Passados mais de cem anos de sua morte, em 1895, o povo
nunca esqueceu o exemplo deixado por Nhá Chica. Com sua beatificação, ela pode
agora ser venerada publicamente como exemplo de vida cristã, com a certeza de
que em breve será canonizada, para ser invocada como santa.
Por seu simbolismo, o fato mereceria maior divulgação. Ele
atesta o prodígio da expansão da fé cristã por todo o país, propagada não tanto
por uma evangelização explícita da hierarquia eclesial, mas muito mais pela
vivência e pelo testemunho de pessoas humildes, leigos e leigas, que mesmo em
meio a condições adversas, encontraram na fé e na prática da caridade um
caminho de crescimento pessoal e de sua vocação à santidade.
Entre os diversos dados que compõem sua singular biografia,
é bom ter presente que no tempo em que Nhá Chica viveu, no Brasil só havia onze
dioceses, no enorme mapa, tão rarefeito da presença da hierarquia da Igreja. Se
a fé cristã dependesse naquele tempo do punhado de bispos e dos poucos padres
existentes, ela não teria se arraigado desta maneira, fincando raízes tão
profundas na cultura brasileira.
Neta de escrava, filha de ex-escrava e de pai desconhecido,
Francisca de Paula de Jesusnasceu em 1810 em Santo Antônio do Rio das Mortes
Pequeno, distrito de São João del Rey, vindo o falecer em 1895 em Baependi,
onde viveu por mais de oitenta anos.
De acordo com informações atestadas pelo escritor e
historiador José de Souza Martins, a avó de Nhá Chica, uma africana trazida de
Angola num navio negreiro em 1725, ficou conhecida como Rosa de Benguela.
Violentada aos 14 anos pelo seu "amo e senhor", foi vendida e levada
do Rio para Minas, onde veio ao morar perto de Mariana. Cativa na Fazenda Cata
Preta, viveu 15 anos na prostituição. Aos 30 anos, doente, resolveu mudar de
vida. Vendeu os poucos bens que tinha, distribuiu o dinheiro aos pobres e
começou a participar de ofícios e liturgias nas igrejas da região. Esta a avó.
Sua filha Izabel Maria, a mãe de Nhá Chica, foi alforriada,
deixando então de ser escrava. Mulher piedosa, ela pediu a Francisca que não se
casasse, para assim dedicar sua vida à caridade.
Obediente à recomendação da mãe, viveu celibatária,
cultivando verduras, frutas e flores, e rezando muito. Com esmolas e ajuda do
povo, mandou construir uma capela que ficou conhecida como a igreja de Nhá
Chica.
A menina nunca foi à escola. Viveu e morreu analfabeta.
Lamentava não poder ler a Bíblia, da qual decorava trechos e recitava de cor
algumas orações. Rezava diante de uma pequena imagem da Imaculada Conceição,
retirando-se para junto dela no quarto, enquanto pessoas que recorriam às suas
preces aguardavam na sala.
Segundo relato dos seus coetâneos, Nhá Chica era uma
"moreninha clara, olhos verde-gaios, jovial, dengosa, um encanto de
criança, alegre e comunicativa”.
Ela captou bem a proposta de Cristo, de perder sua vida a
serviço dos pobres. Recusou as persistentes insinuações de gozar da riqueza
familiar do seu irmão mais velho que tinha enriquecido. Ficou firme no seu
propósito até o fim de sua vida.
Na pessoa de Nhá Chica, podemos reconhecer a rica herança da
fé cristã com que Deus abençoou o povo brasileiro. Com ela milhões de pessoas
podem se identificar, percebendo a semelhança de situações nos caminhos de suas
vidas.
Agora a presença da hierarquia da Igreja no Brasil se
multiplicou espetacularmente. No tempo de Nhá Chica eram somente onze dioceses.
Agora são 276. Que este crescimento estrutural consolide os laços da comunhão
eclesial, e dê mais consistência aos conteúdos da fé. Para que o povo
brasileiro, ao mesmo tempo, mantenha a espontaneidade de suas práticas
religiosas, e se torne mais consciente de seus compromissos cristãos e
eclesiais.
Dom Demétrio Valentini é Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira até
novembro de 2011
Fonte: Adital
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