Na época de crise
estrutural do capital, a renúncia do sindicalismo à formação da consciência de
classe é deveras muito perversa, pois o que a história está cada vez mais
mostrando é que não existe futuro com o capitalismo. Entretanto, caso não seja
construído o sujeito histórico-político de classe capaz de negar o estado de
coisas existentes, por meio de um processo de democratização radical da
sociedade, a crise capitalista só tenderá a aprofundar mais ainda a barbárie
social como modo de reprodução do capital em sua etapa de crise estrutural.
Entrevista especial
com Giovanni Alves
A década de 2000 foi de reorganização do capitalismo
brasileiro com as grandes empresas aumentando investimentos produtivos,
reordenando suas estratégias de negócios na perspectiva da concorrência
internacional acirrada.
A opinião é de Giovanni Alves, professor da Unesp, em
entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Para ele, hoje temos
“a formação da consciência de classe e, portanto, a formação da classe social
capaz de promover mudanças históricas profundas no Brasil”.
“Na época de crise estrutural do capital, - continua o
sociólogo - a renúncia do sindicalismo à formação da consciência de classe é
deveras muito perversa, pois o que a história está cada vez mais mostrando é
que não existe futuro com o capitalismo”.
Segundo ele, “a ‘captura’ da subjetividade do trabalho vivo
adquiriu dimensões amplas e intensivas. A lógica da gestão toyotizada invadiu
não apenas o chão de fábrica, mas os escritórios e repartições públicas e até a
vida cotidiana (no plano léxico-locucional, por exemplo, trabalhador
assalariado tornou-se mero ‘colaborador’, linguagem apropriada também por
lideranças sindicais). Enfim, a reestruturação produtiva assumiu novas
dimensões no plano do controle laboral”.
Giovanni Alves (foto abaixo) é professor da Faculdade de
Filosofia e Ciências do Departamento de Sociologia e Antropologia da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, no campus de
Marília. Livre-docente em teoria sociológica, é mestre em Sociologia e doutor
em Ciências Sociais pela Unicamp. Atualmente, desenvolve o projeto de pesquisa
"A derrelição de Ícaro – Sonhos, expectativas e aspirações de jovens
empregados do novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil (2003-2013)”. É
autor de, entre outros, Dimensões da precarização do trabalho – Ensaios de
sociologia do trabalho (Bauru: Projeto editorial praxis, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a revolução tecnológica tem afetado o
chão de fábrica, pensando na realidade brasileira dos últimos anos?
Giovanni Alves – As grandes fábricas no Brasil têm passado
por profundas transformações produtivas nos últimos anos. Desde o começo da
década de 2000 alterou-se de forma significativa a morfologia do trabalho
industrial no Brasil por conta das inovações tecnológicas e organizacionais.
Nos polos mais desenvolvidos da indústria – e também do setor de serviços –, as
novas tecnologias informáticas de base microeletrônica e tecnologias
informacionais em rede alteraram o processo de produção de mercadorias e a organização
dos serviços de distribuição e serviços financeiros e telecomunicações.
Se a década de 1990 foi a década da reestruturação produtiva
que atingiu de forma disruptiva o mundo do capital e, por conseguinte, o mundo
do trabalho no Brasil, então a década de 2000 foi a década de reorganização do
capitalismo brasileiro com as grandes empresas aumentando investimentos
produtivos, reordenando suas estratégias de negócios na perspectiva da
concorrência internacional acirrada.
A ofensiva do capital adquiriu uma dimensão progressiva no
sentido do investimento não apenas em capital fixo, mas principalmente
investimentos em novas estratégias organizacionais e de gestão da força de
trabalho. Nesse sentido, disseminou-se o que eu denomino o “espírito” do toyotismo,
que assumiu um caráter sistêmico. A “captura” da subjetividade do trabalho vivo
adquiriu dimensões amplas e intensivas. A lógica da gestão toyotizada invadiu
não apenas o chão de fábrica, mas os escritórios e repartições públicas e até a
vida cotidiana (no plano léxico-locucional, por exemplo, trabalhador
assalariado tornou-se mero “colaborador”, linguagem apropriada também por
lideranças sindicais).
Enfim, a reestruturação produtiva assumiu novas dimensões no
plano do controle laboral. Por ironia da história, o “choque de capitalismo”
prescrito em 1989 pelo candidato a presidente da República pelo PSDB, Mário
Covas, foi aplicado pelo presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, do
PT – é claro, não o choque do capitalismo neoliberal, mas sim o choque do
capitalismo neodesenvolvimentista.
IHU On-Line – Quais as transformações que a luta operária
sofreu no Brasil nos últimos anos? Quais as mudanças de valores pelas quais
passaram trabalhadores, empresas e sindicatos?
Giovanni Alves – No contexto do choque de capitalismo
neodesenvolvimentista com dominância financeira, a luta operária assumiu um
novo perfil político-ideológico. Por um lado, o sindicalismo reavivou-se nos
anos do lulismo e as centrais sindicais consolidaram-se institucionalmente. Não
podemos deixar de reconhecer a positividade do renascimento sindical no país
depois dos anos de chumbo da “década neoliberal”. Foram fechados bons acordos
coletivos com reajuste salarial acima da inflação.
Mas, por outro lado, o renascimento sindical possui um
caráter perverso no plano da consciência de classe. Primeiro, porque o
sindicalismo em geral, com destaque para a CUT, maior central sindical do país,
tornou-se um sindicalismo “oficialista”, integrado financeiramente às
disposições político-estatais, perdendo não apenas o caráter contestatório da
ordem burguesa (o que já ocorrera desde a década de 1990), mas o caráter de
crítica da ordem política, na medida em que se identificou com os projetos dos
governos Lula e Dilma. Tornou-se um sindicalismo “chapa branca”.
Aprofundou-se no polo de esquerda social-democrata, o viés
concertativo-propositivo e neocorporativo do sindicalismo hegemônico no Brasil.
Diante da ofensiva ideológica do capital nos locais de trabalho, os sindicatos
ficaram passivos, incapazes de enfrentar o capital no campo da luta ideológica.
Pelo contrário, incorporaram o discurso da ordem produtivista, rendendo-se aos
valores empresariais. Aliás, na década de 2000, com o choque de capitalismo
neodesenvolvimentista, a hegemonia empresarial aumentou no Brasil.
A subordinação do PT
Para não perder espaço político, o PT, partido da ordem e
com força protagônica no governo federal, subordinou-se ao discurso vigente.
Enfim, a crise ideológica do sindicalismo rendido às idiossincrasias empresariais
decorre da crise ideológica do partido hegemônico no movimento sindical: o
Partido dos Trabalhadores, subsumido, mais do que nunca, à ordem burguesa
hipertardia. A lição da falência da social-democracia na Europa não foi
aprendida no Brasil. Aqui, a sucata ideológica da concertação social está a
pleno vapor rumo ao abismo (como diria Robert Kurz).
A burocracia sindical não se atentou que a crise profunda do
capitalismo no centro desenvolvido do sistema, impulsiona com mais intensidade,
a perversão do sindicalismo concertativo de cariz social-democrata, incapaz de
conduzir a luta ideológica não apenas entre suas bases de trabalhadores
assalariados, mas principalmente na sociedade em geral. O viés neocorporativo
isolou, por exemplo, a CUT e os grandes sindicatos das lutas sociais em geral.
O choque de capitalismo neodesenvolvimentista colocou no
centro da disputa social e política, a luta ideológica que é essencialmente uma
disputa por valores. Com a crise europeia assiste-se à falência irremediável dos
valores social-democratas. A perspectiva de um capitalismo humanizado é não
apenas uma impossibilidade histórica, hoje, mais do que nunca, mas uma
ideologia farsesca que persegue o discurso social-democrata. Enfim, o que se
coloca hoje é a formação da consciência de classe e, portanto, a formação da
classe social capaz de promover mudanças históricas profundas no Brasil.
IHU On-Line – Com a crise financeira internacional, o Estado
de bem-estar social está se esfacelando na Europa. E no Brasil? Que impactos
aparecem nesse sentido? Podemos dizer que os direitos sociais e trabalhistas
não estão sendo postos em risco em nosso país, diante da crise? E como será
dentro de 20 anos, por exemplo?
Giovanni Alves – A crise europeia como crise do Estado de
bem-estar social é, depois da queda do muro de Berlim, uma crise histórica
ruptural da civilização do capital constituída no pós-guerra. Possui impactos
radicais no plano político-ideológico. Com um intervalo de pouco mais de vinte
anos, cai por terra mais uma ilusão histórica do século XX: a ilusão
social-democrata. Depois da falência da ilusão do socialismo estatal, cai por
terra o projeto social da concertação entre capital e trabalho na União
Europeia.
É claro que há tempos, pelo menos desde a implantação da
União Europeia em seu formato neoliberal, o modelo de Estado social europeu,
construído no pós-guerra, dava sinais de falência social, com o crescimento do
desemprego de longa duração, principalmente entre jovens trabalhadores, e a
ampliação da mancha de precariedade laboral.
O que presenciamos hoje com a crise da zona do Euro é apenas
o tiro de misericórdia no projeto socialdemocrata europeu. Todo
social-democrata é hoje um neoliberal envergonhado; ou então, um Dom Quixote de
La Mancha pós-moderno incapaz de perceber a falência irremediável do modelo
civilizatório do capitalismo concertativo. Na verdade, a crise europeia exige
de nós hoje, intelectuais críticos, a crítica radical do modo de produção capitalista
e modo de civilização burguesa.
Cenário brasileiro
No caso do Brasil, país capitalista hipertardio e sociedade
burguesa dependente e carente de modernização, o tsunami da crise europeia
ainda não chegou às nossas praias tropicais. Parte significativa da
intelectualidade política e social da esquerda reformista no país ainda está
fascinada pelo modelo social europeu ou Estado de bem-estar, o qual hoje nem os
próprios europeus acreditam que possa se sustentar nas próximas décadas de
desenvolvimento de capitalismo financeirizado.
A mediocridade das nossas lideranças de esquerda reformista
é indiscutível. O reformismo social e político no Brasil não se deu conta de
que vive uma profunda crise ideológica. Muitos intelectuais neokeynesianos de
esquerda acreditam que o modelo neodesenvolvimentista com dominância financeira
possa se sustentar por muito tempo, sem expor seus limites irremediáveis como
projeto civilizatório.
Os limites do projeto lulista no Brasil, com o
aprofundamento da crise europeia e os impasses do capitalismo central sob a
hegemonia financeira, tornam-se, com o avançar da conjuntura da década de 2010,
cada vez mais explícitos, exigindo medidas mais ousadas de controle social e
intervenção na economia (o que arrepia os escrúpulos da social-democracia
quixotesca ou neoliberais envergonhados incrustados no governo).
No Brasil, elo mais forte do capitalismo hegemônico na
América Latina, a incapacidade (ou tibieza) da social-democracia em aprofundar
reformas de controle social e democratização do sistema político-jurídico e
econômico e, the last but not the least, o sistema midiático, só abre espaço,
como na Europa em crise, para o avanço das forças conservadoras e reacionárias
da direita tupiniquim.
Na verdade, é o pêndulo perverso da crise estrutural do
capital que, no plano político, oscila entre governos sociais-democratas
medíocres e governos conservadores e reacionários impenitentes, que ameaça nos
próximos anos os parcos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros; pêndulo
perverso lastreado num sistema político radicalmente corrompido, ineficaz e
ineficiente para expressar a representação popular.
Portanto, a maior ameaça aos direitos sociais dos
trabalhadores brasileiros não é a direita reacionária, mas sim a tibieza de
parte da esquerda reformista hegemônica incapaz de aprofundar, sem aventuras,
mas com ousadia, as reformas sociais no país. É claro que a incapacidade
política da esquerda social-democrata deriva estruturalmente da miséria
histórica dos intelectuais de esquerda radical no Brasil, incapazes de
hegemonia social num cenário de violência simbólica e manipulação midiática
historicamente estrutural da direita socialmente organizada.
Enfim, na medida em que não se investe num processo de
formação da consciência de classe social capaz de negar o estado de coisas
existentes, com uma esquerda política e sindical capaz de travar a luta
ideológica, com mais criatividade e menos sectarismo, ampliando alianças
sociais e políticas sem perder a radicalidade, fragiliza-se a capacidade de
resistência ao tsunami da crise europeia que se aproxima e, ao mesmo tempo,
azeita-se a máquina do pêndulo perverso do capital em sua etapa de crise
estrutural. Como diria Marx, hic Rhodus, hic salta.
IHU On-Line – Como podemos interpretar a presença do
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no evento de lançamento de um
veículo da Ford do Brasil? Trata-se de uma mudança nas relações entre capital e
trabalho na região considerada berço do sindicalismo brasileiro?
Giovanni Alves – Trata-se apenas da comprovação da
estratégia de concertação social adotada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC
– SMABC. No lugar da luta de classes e do sindicalismo de confronto, o SMABC
adotou, há mais de vinte anos, a estratégia do sindicalismo propositivo,
negociando com o capital as inovações produtivas no local de trabalho e
colaborando com as grandes empresas montadoras. Pode-se dizer que existe uma
“parceria” entre as montadoras e o SMABC, “parceria conflituosa” que
ocasionalmente provoca rusgas entre os parceiros, mas nada que abale a
confiança ideológica na ideia da concertação social.
Primeiro, é preciso salientar que o sindicalismo brasileiro
não nasceu na região do ABC paulista. O que nasceu lá foi o saudoso “novo
sindicalismo”, que surgiu nas grandes greves de 1979 e 1980, berço do PT e da
CUT. Entretanto, nos últimos trinta anos, o novo sindicalismo envelheceu muito
rapidamente e tornou-se um sindicalismo pragmático, propositivo, neocorporativo
e bastante eficaz na prática da negociação coletiva tendo como base a
organização por local de trabalho (as comissões de fábrica). O SMABC é
enraizado nas fábricas e isso é uma singularidade local construída
historicamente pela negociação e luta operária. Poucos sindicatos têm essa base
nos locais de trabalho.
IHU On-Line – A partir das novas relações de trabalho,
podemos identificar ainda uma solidariedade entre classes? O que pesa mais
diante das negociações trabalhistas em nossos dias?
Giovanni Alves – As novas relações de trabalho nascem
constrangidas pela realidade da crise estrutural do capital que pressiona as
empresas a inovarem vorazmente visando garantir melhores custos de produção e
pressiona os sindicatos a renunciarem à ideologia da luta de classes e
assumirem o sindicalismo propositivo e de colaboração de classes. Visando
preservar suas bases, muitos sindicatos aderem de modo pragmático à nova
realidade da concorrência capitalista, aproximando-se do horizonte ideológico
das empresas. Fazem greve, mas por empresas, evitando politizá-las, isto é,
generalizá-las e dar-lhes um conteúdo político-ideológico da luta de classes.
A luta sindical tornou-se mais amesquinhada pelo
economicismo, em parte devido às próprias condições da ofensiva do capital na
produção que reduziu o poder de barganha de muitos sindicatos; muitas vezes
também as novas condições da acumulação capitalista, a acumulação flexível,
colocam imensas dificuldades para a negociação coletiva nos termos da
preservação da consciência de classe, fazendo com que sindicalistas com baixa
formação político-intelectual sucumbam à mediocridade geral, tornando-se meros
gestores da força de trabalho e dos negócios capitalistas.
O sindicalismo brasileiro – tal como ocorre na maioria dos
países capitalistas – não está preparado para aquilo que David Harvey intitulou
“condição pós-moderna”. O que significa que se fecharam no burocratismo,
neocorporativismo e pragmatismo venal, amesquinhando mais ainda a luta sindical
(que Lenin denominava de “luta cinzenta”). Este fechamento do horizonte
ideológico do sindicalismo muitas vezes fez os sindicatos tornarem-se eficazes
tecnicamente na negociação coletiva, mas em detrimento da sua capacidade
moral-política de formação da consciência de classe. O que pode ser constatado
pelo desprezo pela formação sindical com caráter político-ideológico. O caso
exemplar é a CUT que adotou o discurso da cidadania (sindicato-cidadão) e
deixou de lado o discurso da classe trabalhadora como sujeito protagônico da
construção de uma sociedade sem exploradores e explorados.
Mas, como dizemos, a crise da CUT é a crise do PT. Não
adianta responsabilizar o sindicalismo pela crise do intelectual orgânico de
classe. Na época de crise estrutural do capital, a renúncia do sindicalismo à
formação da consciência de classe é deveras muito perversa, pois o que a
história está cada vez mais mostrando é que não existe futuro com o
capitalismo. Entretanto, caso não seja construído o sujeito histórico-político
de classe capaz de negar o estado de coisas existentes, por meio de um processo
de democratização radical da sociedade, a crise capitalista só tenderá a
aprofundar mais ainda a barbárie social como modo de reprodução do capital em
sua etapa de crise estrutural.
IHU On-Line – O que é o “trabalho ideológico” e como ele
pode ser medido, mensurado, avaliado?
Giovanni Alves – Apresentei o conceito de “trabalho
ideológico” no meu novo livro – intitulado Dimensões da precarização do
trabalho (Práxis, 2013). O trabalho, como categoria ontológica fundante (e
fundamental) do ser social, é formado por posições teleológicas que, em cada
oportunidade, põem em movimento séries causais; como disse Vygotsky, ele
implica tanto instrumentos quanto signos, elementos de mediação das posições teleológicas
compositivas do processo de trabalho (Lukács diria: posições teleológicas
primárias e posições teleológicas secundárias).
Todo trabalho humano, incluindo o trabalho ideológico,
implica a articulação de instrumentos e signos. Entretanto, no caso do
“trabalho ideológico”, os signos tornam-se essenciais para a realização da
posição teleológica secundária: por isso a ação sobre outros homens. Na medida
em que se desenvolve a sociedade de serviços e amplia-se a escala dos conflitos
sociais, o trabalho ideológico, formado por posições teleológicas secundárias,
constitui hoje amplamente a esfera das ocupações profissionais vinculadas à
reprodução e controle social.
O trabalho ideológico constitui a natureza material de
diversas ocupações profissionais no interior da divisão social do trabalho. Por
exemplo, ele caracteriza o trabalho de formação e informação (professores e
jornalistas), o trabalho de regulação e normatividade (juízes e policiais), o
trabalho de convencimento (publicitários), o trabalho do cuidado (médicos,
enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais), etc. O trabalho ideológico das
profissões vocacionadas exige, do homem-que-trabalha, cuidado, abnegação e
doação (como, por exemplo, o trabalho do formador ou o trabalho assistencial).
Finalmente, enquanto modalidades de trabalho assalariado no setor privado ou no
setor público, elas são regidas pela lógica do trabalho abstrato, subsumindo-se
diretamente ou por derivação, aos parâmetros de produtividade. O que significa
que, na sociedade do capital, o trabalho ideológico impregna-se da lógica do
trabalho estranhado.
Na medida em que a forma material do trabalho ideológico
impregna-se da forma social do capital, caracterizada pelo trabalho estranhado,
constitui-se uma implicação subjetiva de natureza perversa. O que explica, de
certo modo, o crescimento do adoecimento laboral, principalmente transtornos
mentais, nas categorias de trabalhadores assalariados vinculados ao “trabalho
ideológico”. Devido à sua forma de ser (trabalho imaterial), o trabalho
ideológico como trabalho concreto é recalcitrante à quantificação e às medidas
da lei do valor. Ele não pode ser medido ou avaliado de acordo com a “régua” da
lei do valor. De forma arbitrária, o capital utiliza para avaliar a produção da
“saúde” ou “educação, a mesma régua que avalia a produção de carros e
salsichas”. Na verdade, os critérios de produtividade do “trabalho ideológico”,
imbuídos do produtivismo capitalista, são meros simulacros próprios da época do
capitalismo fictício, um capitalismo descolado da própria objetividade da lei
do valor-trabalho (que o diga a predominância, hoje, do capital fictício).
Na verdade, como explico no livro, esta é uma das naturezas
da crise do capital: a desmedida do valor, tendo em vista que muitas atividades
de serviços capitalistas que implicam “trabalho ideológico” não se adequam
materialmente à forma social do capital. É o típico caso de inadequação da
forma material à forma social do valor, elemento crucial da crise de
valorização nas condições da crise estrutural do capital.
IHU On-Line – O que marca as novas formas de controle sobre
os trabalhadores contemporâneos? Quais os desafios se considerarmos um controle
sobre a subjetividade do trabalhador?
Giovanni Alves – As novas formas de controle sobre os
trabalhadores contemporâneos são marcados pelo “espírito” do toyotismo,
conceito tratado por mim no livro Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011).
Não se trata meramente de dispositivos organizacionais próprios do modelo
japonês, mas sim de uma pletora de valores-fetiches que impregnam o metabolismo
social do trabalho estranhado nas condições da acumulação flexível.
O “espírito” do toyotismo caracteriza-se então pela
“captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pelas disposições estranhadas
do capital. É a lógica da gestão hegemônica não apenas na indústria, mas nos
serviços e administração pública, que articula novas modalidades de remuneração
baseada em cumprimento de metas e jornada de trabalho flexível, além de uma
crescente carga ideológica nos treinamentos que assumem mais um caráter
psicológico-comportamental do que técnico-profissional.
Na verdade, os treinamentos das empresas atuam mais sobre o
trabalho vivo do que sobre a força de trabalho: treina-se hoje nas empresas
mais para se manipular e conformar o operário ou empregado na linha da
“autoajuda” empresarial, incutindo-lhes valores-fetiches do capital; do que
para formar tecnicamente e operacionalmente a força de trabalho. Ao mesmo
tempo, pari passu ao ambiente do “trabalho em equipe” e a proclamação da
ideologia da colaboração, disseminam-se, nos novos locais de trabalho
reestruturados, formas perversas de pressão psicológica que os gestores fazem
sobre o trabalho vivo (o assédio moral).
No plano do mercado de trabalho, as novas formas de
contratação flexível que se disseminam fecham o cerco sobre a subjetividade do
trabalhador assalariado na medida em que contribuem para a dessubjetivação de
classe, tendo em vista que são os trabalhadores precarizados, trabalhadores
assalariados em geral pouco organizados, que perdem o referencial coletivo do
em si da classe, ocorrendo, desse modo, a subordinação total da individualidade
pessoal à condição de “classe” ou condição de proletariedade.
IHU On-Line – Como ocorre a articulação entre mente e corpo
do homem-que-trabalha no século XXI?
Giovanni Alves – Como salientei acima, a ideia de “captura”
da subjetividade do homem-que-trabalha pressupõe uma nova articulação entre
mente e corpo, muito mais sofisticada do que aquela que havia na época do
fordismo-taylorismo. Por isso, a vigência da lógica do toyotismo como
“espírito” intelectual-moral da gestão capitalista. Com as novas tecnologias de
base informacional e a crise estrutural do capital, que produz contradições
insanas no plano da produção e reprodução do valor, as estratégias de gestão
capitalista baseiam-se cada vez mais no envolvimento do trabalho vivo na
produção do capital. É uma perversa ironia da história que o capitalismo da
grande indústria, que “negou” o lugar do trabalho vivo na produção de valor,
seja obrigado a repô-lo contraditoriamente nas novas condições do
desenvolvimento capitalista e produção do capital. É por isso que estamos numa
nova forma social de produção do capital que eu denomino (no meu livro chamado
Dimensões da precarização do trabalho) de “maquinofatura”.
A “maquinofatura” é a forma social no interior da qual o
capital, em sua etapa de crise estrutural, reproduz suas candentes
contradições. Portanto, a maquinofatura, como a manufatura e a grande
indústria, não é apenas um “modelo” de organização da produção de mercadorias,
mas principalmente um modo de controle estranhado do metabolismo social e,
portanto, de articulação entre mente e corpo. É uma forma de produção social no
interior da qual ocorre o desenvolvimento da produção do capital. É a vigência
da terceira forma de produção do capital (a maquinofatura) que explica, por
exemplo, a presença enquanto momento predominante da reestruturação produtiva
do capital, da “captura” da subjetividade do homem-que-trabalha e das novas
formas de estranhamento que dilaceram o núcleo humano-genérico.
Nesse caso, o capital atinge seu limite radical, isto é, o
capital atinge a sua própria raiz, o homem, ou melhor, as relações sociais no
sentido da constituição/deformação do sujeito histórico como
homem-que-trabalha. O toyotismo como ideologia orgânica da produção de
mercadorias surgiu no seio da maquinofatura, na medida em que a “captura” da
subjetividade do homem-que-trabalha pelo capital tornou-se seu nexo essencial.
O capitalismo manipulatório inaugura a era da maquinofatura como derivação
lógica (e ontológica) da grande indústria.
Ao mesmo tempo, a epidemiologia laboral nas condições
históricas da maquinofatura caracteriza-se pelo predomínio do adoecimento da
mente, na medida em que o que está sob tensão é (como na manufatura) o homem
integral. Entretanto, enquanto na manufatura o que está posto é o homem como
força de trabalho, na maquinofatura o que está posto em questão é o homem como
trabalho vivo. Nas condições do capitalismo manipulatório opera-se de modo
radical a redução do trabalho vivo à força de trabalho como mercadoria – e
pior: ser-mercadoria num momento histórico de crise radical da
forma-mercadoria.
Fonte: Ihu
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