Ana* é uma sobrevivente. Seu companheiro a agrediu duas
vezes. A primeira, com socos e pontapés. A segunda, arrastando-a pelos cabelos
aos três meses de gestação, pelas ruas do bairro Santa Rita, em Vila Velha.
Ela
foi salva por uma viatura da polícia que passava pelo local na hora. Aos 30
anos, quatro filhos, desempregada, Ana é o retrato de uma violência sem
testemunhas e que marca vidas. Para ela, se não fosse a intervenção policial,
apanharia até morrer.
São 17 horas de uma quarta-feira quando ela chega escoltada
por policiais militares à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
(DEAM), em Vitória, para registrar queixa contra o agressor. Chorando e com o
rosto todo marcado, diz que se polícia não tivesse aparecido teria sido morta.
Por ciúmes. “Estava conversando com amigos na pracinha do bairro e ele chegou
gritando, porque tem ciúmes de mim. Estava alcoolizado e me deu chutes e tapas
na cara, em nenhum momento pensou no filho que está na barriga. Tenho medo de
morrer depois que ele for solto”, diz a vítima.
Ana acredita que escapou por pouco de engrossar as
estatísticas de mulheres assassinadas pelos maridos, companheiros ou namorados.
Segundo o Mapa da Violência de 2012 do Ministério da Justiça, realizado pelo
Centro Brasileiro de Estados Latino-americanos (Cebela) e pela Faculdade
Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), nos últimos 30 anos foram
assassinadas no país mais de 92 mil mulheres, sendo 43,7 mil só na última
década. Entre 87 países, o Brasil é o 7º que mais mata. São 4,6 assassinatos em
cada grupo de 100 mil mulheres.
O Estado mais violento é o Espírito Santo, com 9,6
homicídios por grupo de 100 mil. E o que menos mata é o Piauí, com 2,6
homicídios por 100 mil mulheres. São tantos crimes no Estado que a polícia teve
de criar a primeira delegacia do Brasil especializada em investigar homicídios
de mulheres, localizada em Vitória. Na linha de frente dessa força-tarefa está
a baiana Hermínia Maria Azoury, juíza e coordenadora estadual da Mulher em
Situação de Violência Doméstica e Familiar. “O problema é cultural, onde o
homem acha que a mulher é patrimônio dele e pode dispor como quer. Mulher não é
posse”, diz.
Botão de pânico
A juíza é responsável por adotar medidas preventivas e
repressivas relativas à questão da violência contra a mulher. “Como
preventivas, pode-se citar programas de conscientização através de palestras,
cartilhas e publicações em geral. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo tem
empreendido esforços para a implantação do Dispositivo de Segurança Preventiva
(Botão do Pânico), vinculado à Patrulha Maria da Penha, como iniciativa de
fiscalização das medidas protetivas e repressão ao agressor”, explica.
O botão também é uma iniciativa pioneira no Brasil. A
princípio, o equipamento será distribuído a 100 mulheres da capital que se
encontram sob medida protetivas, garantidas pela Lei Maria da Penha, como as
que determinam que o agressor saia de casa ou mantenha uma distância mínima das
vítimas. A ferramenta poderá ser acionada quando o ex-marido ou companheiro
condenado a ficar distante, se aproximar ou fizer ameaças. Assim, a central de
monitoramento recebe um chamado. O botão disponibiliza um processo de escuta a
partir do momento em que é acionado. “Essa é apenas mais uma forma de dar
proteção a essas mulheres”, diz a juíza.
Assassinatos
Quase todos os agressores agem da mesma forma. Primeiro vem
a agressão verbal e psicológica, que com o tempo se estende para tapas, socos e
espancamentos. A violência doméstica está em todas as classes sociais e atinge
cada vez mais mulheres jovens.
Julia* disse basta. Arquiteta de 30 anos, se separou do
homem (um engenheiro) com o qual viveu cinco anos e que a agredia
frequentemente. “As agressões começaram com palavras e torturas psicológicas.
Numa noite, chegando de uma festa, ele deu um tapa no meu rosto dentro do
elevador. Por ciúmes porque eu tinha dançado”, lembra.
Depois vieram inúmeras agressões físicas, até ficar com o
olho roxo. “Passei tudo de ruim que a mulher pode passar na mão de um homem,
mas decidi começar uma nova vida”.
A capixaba, moradora de um bairro nobre da Capital, viveu em
silêncio até não aguentar mais. Júlia é o exemplo de que mulheres com nível
superior, casa própria e carro do ano também são ameaçadas, espancadas e
torturadas. “Só estou viva porque me separei”, afirma.
Os agressores não escolhem classe social, nem idade. Vitória
lidera o ranking de morte de mulheres. A capital registra uma taxa de 13,2
homicídios por 100 mil mulheres, índice que fica em 4,6 no país e 5,3 no
conjunto das capitais. No ano passado, 93 mulheres foram mortas na Grande
Vitória – três a menos que 2011.
A juíza Hermínia explica que são inúmeros os motivos que
fazem a mulher não querer denunciar agressor. “Ela luta para preservar a família;
tem vergonha de se expor; medo de ser vista com descrédito, pois os agressores,
geralmente, são pessoas que não deixam transparecer para além do lar o lado
covarde; e o medo de represálias, como a retirada da guarda dos filhos ou a
possibilidade de agressões mais violentas”, lista. Para aquelas em situação de
risco, o Estado mantém uma Casa de Abrigo, onde elas passam a morar e receber
apoio psicológico.
*Os nomes são fictícios para preservar a identidade das
vítimas
Mulheres escapam de
agressões
As agressões começaram no início do casamento, quando ela
tinha 28 anos. Sandra*, 62, lembra nitidamente. “Era uma violência psicológica
com xingamentos, humilhação e indiferença”, conta. O marido, que era
alcoólatra, não aceitava que ela frequentasse a igreja. “Ele dizia que eu ia
atrás de homem”. As discussões eram na frente dos filhos. Há seis anos, após de
ser agredida fisicamente, ela resolveu ligar para o disque-denúncia e procurar
ajuda. Nunca mais voltou para casa e recomeçou a vida em outro bairro.
A diarista Lúcia*, 32 anos, sofreu a primeira agressão há 10
anos porque na geladeira não tinha leite para os filhos. “Ele pegou um pedaço
de ripa e veio para cima de mim. Estava com a minha filha no colo, mas ele não
se preocupou. Protegi a criança e ele meteu o pedaço de pau na minha cabeça”.
Para não depender financeiramente do marido, Lúcia começou a trabalhar. “Foram
ameaças com faca, tapas no rosto e palavrões por conta do ciúme de eu estar
trabalhando fora de casa. Um dia ele me deu dois tapas no rosto e apontou o
facão para mim”.
No dia em que ela propôs separação, o marido se enfureceu.
“Ele disse que eu não poderia me separar. Se não fosse dele, não seria de mais
ninguém. Tenho medo que ele me mate”, diz em depoimento na delegacia.
Ciente dos riscos que correm essas mulheres, a juíza
Hermínia Maria Azoury busca a punição dos agressores. “Estamos trabalhando
incansavelmente para implantar medidas, a fim de retirar o Espírito Santo do
primeiro lugar no ranking da violência doméstica no Brasil, uma colocação tão
lamentável e na qual não desejamos permanecer, e assim proporcionaremos efetiva
aplicabilidade da Lei Maria da Penha”, alega.
O perigo geralmente está dentro da própria casa. A
empresária Vanda*, que é casada com outra mulher, foi agredida pelo enteado de
15 anos. “Ele mora com a avó e não aceita a nossa relação. Sempre que agride a
avó, vem para nossa casa. Nessa terceira agressão ele cuspiu na minha cara e me
deu um soco no rosto. Chamei a polícia”, desabafa.
Fonte: A Gazeta
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