A psicóloga e ativista romena Iana Matei chega ao Brasil. O
lançamento do seu livro À venda, que trata de histórias de tráfico humano,
oferece ao público brasileiro relatos de jovens mulheres vítimas desse tipo de
crime, cujas dimensões no país apenas agora as autoridades começam a
identificar.
Matei denuncia o tráfico e suas diversas camadas de corrupção e o
envolvimento por baixo dos panos de autoridades. A autora conhece o caso de
perto. Iana fundou a organização não governamental Reaching Out Romenia, que
encontra e reabilita vítimas de prostituição forçada em seu país. A instituição
comporta o House of Treasure, um abrigo para ex-vítimas.
Foi in loco que Matei conheceu essas vítimas, durante dez
anos. No período, viu praticamente de tudo: mulheres cortadas por navalhas,
traficadas queimadas ou congeladas, jovens famintas. “É difícil descrever em
palavras a imagem do que vi”, diz. Pelo seu trabalho, foi nomeada como “Europeu
do Ano”, pela revista Reader’s Digest em 2010. Seu ativismo ainda não acabou.
Agora ela luta por mais rigidez na legislação sobre tráfico humano e cobra dos
governos e da sociedade a compreensão de que prostituição forçada – resultante
do tráfico humano – é crime organizado. E que seus praticantes sejam punidos
com rigor. “A melhor forma de confrontar o criminoso é puni-lo com prisão
perpétua e confiscar todo o dinheiro e propriedades que tenha adquirido de
forma totalmente ilegal”, diz a autora. Leia abaixo a entrevista concedida por
Iana Matei a ÉPOCA.
ÉPOCA – Pela sua experiência de dez anos à frente do
Reaching Out Romenia, o que a sra. pode dizer sobre as marcas que o tráfico
humano deixa nas vítimas? Elas conseguem se recuperar desse trauma e se
reinserir na sociedade?
Iana Matei – Essas
garotas são torturadas, queimadas por cigarros, ameaçadas a cada passo que dão:
é uma imagem muito difícil de descrever em palavras. Algumas delas têm sido
torturadas com cortes de navalhas, outras estão grávidas, e muitas estão
sofrendo com transtornos pós-traumático. Conosco, elas atendem a sessões de
terapia em grupo e se ajustam a uma rotina de vida normal, com tarefas diárias
que têm como fim cultivar um senso de responsabilidade pessoal. Somos mais que
uma família, porque a triste verdade é que muitas delas são rejeitadas por seus
pais, como conto no livro: “Os pais as censuram por serem prostitutas, por se
permitirem ser enganadas e por envergonhá-los na frente dos vizinhos”. Nós,
entretanto, não as forçamos a se reintegrar a suas famílias. A maior parte
escolhe ficar por perto e aceita empregos que arrumamos para elas. Cerca de 80%
delas continuam em contato com a fundação mesmo depois de partirem.
>>Susana Trimarco, uma das maiores ativistas contra o
tráfico humano
ÉPOCA – Como as vítimas normalmente conseguem escapar de um
esquema criminoso de tráfico internacional e vão parar no abrigo? E como,
especialmente no caso das jovens, elas vão parar nas mãos de criminosos?
Iana – Existem tantas
histórias, e cada uma é como um passo adiante. Tem Mariana, é claro, cuja
história é bastante detalhada no livro (Mariana, então com 15 anos, é vendida
por uma mulher para prostituição forçada por menos de 100 euros). Também me
lembro de três garotas, com idade entre 13 e 14 anos, que estavam morrendo de
frio, eram maltrapilhas e famintas. Elas me contaram que tinham sido vendidas
por seus pais a um cigano. E depois foram compradas e revendidas, antes de
serem despejadas na rua. Elas me encontraram por intermédio de um policial. Um
caso de que me lembro com especial apreço é a garota que chegou grávida ao
abrigo. Ela decidiu ter o bebê mesmo que não soubesse a identidade de seu pai
biológico. Ela se tornou uma grande mãe para esse bebê. Depois ela se casou, e
o seu marido tem sido um grande e bondoso pai à criança.
ÉPOCA – Num mundo cada vez mais globalizado, você imagina
ser possível coibir o tráfico de pessoas? Faltam leis na comunidade
internacional ou mesmo na Europa, grande destino de vítimas?
Iana – A grande falha
da atual legislação é seu foco nas vítimas e não nos traficantes. A melhor
forma de confrontar o criminoso seria puni-lo com prisão perpétua e confiscar
todo o dinheiro e propriedades que adquiriu de forma totalmente ilegal. O que
as pessoas deveriam entender é que prostituição forçada não é uma questão
social – é crime organizado. Infelizmente, políticos focam na prostituição no
geral, em imigração. Mas não no tráfico humano. O foco nesse assunto é o
primeiro passo a dar. É um crime contra a humanidade vender e comprar vidas.
Além do mais, os traficantes se adéquam às diferentes leis. Eles mudam seu
modus operandi dependendo da legislação que encaram. Por exemplo, a lei
italiana. Ela deu mais direito às vítimas. Além disso, ficou mais fácil às
vítimas processarem envolvidos. Mas então os traficantes se adaptaram a esse
novo contexto e têm usado um novo método: gigolôs. Mulheres não vão processar
quem amam. Outra tática das quadrilhas é usar meninas com problemas psicológicos,
porque elas não podem testemunhar no tribunal, caso o assunto seja levado à
Justiça.
Fonte: Epoca
Nenhum comentário:
Postar um comentário