Entrevista com a arquiteta Natacha Rena
“Não estamos vendo projetos sociais para a melhoria das
condições de vida do morador de rua, a gente está vendo uma limpeza urbana. O
que acontece nesses grandes eventos é empurrar para debaixo do tapete, para as
margens da cidade, causando não a segurança, mas uma sensação de segurança. Eu
acho que é isso que vai acontecer com a cidade: um embelezamento, uma limpeza,
uma tentativa de transformar a cidade em desenvolvida, mas no final das contas
não vai reverter para todo mundo. Algumas pouquíssimas pessoas vão ganhar com
isso e, na maioria das vezes, não são as pessoas da cidade.”
Gentrificação. O nome é bem estranho, mas trata-se de um
processo que acontece ao lado de todo mundo e a população nem se dá conta.
Segundo a arquiteta e professora da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Natacha Rena, gentrificação é a explusão de pessoas para valorização de
uma área da cidade. Uma ação cruel e muito polêmica que vem acontecendo nas
áreas centrais, nas praças, nos parques e tem se intensificado com os
preparativos para Copa.
Envolvida com as questões políticas da arquitetura, Natacha
Rena já desenvolveu vários projetos sociais em Minas Gerais, levando seu
conhecimento para além das questões técnicas e estéticas e focando na função
social da arquitetura. Em entrevista ao Minas Livre, ela fala sobre o processo
de gentrificação em Belo Horizonte, sobre os preparativos para a Copa e critica
a parceria público-privada, que para ela é um “sintoma da falência do estado”.
ML: Fale um pouco sobre sua experiência e como chegou às
questões políticas da arquitetura
NR: Quando passei no vestibular de arquitetura comecei uma
experiência de trabalhar com grandes arquitetos, depois ter um escritório,
muito preocupada com as questões técnicas e estéticas, de uma maneira pouco
politizada. Eu fazia loja, ganhava prêmio Deca, Casa Cor, sempre tentando fazer
um trabalho mais investigativo, mas muito pouco político. Então minha vida veio
mudando, diminui um pouco meus trabalhos de arquitetura de mercado e hoje sou
professora de dedicação exclusiva da UFMG. Estou muito mais envolvida com essas
questões políticas da arquitetura. Hoje, enquanto professora, tenho muito mais
um papel de dizer aos alunos que a arquitetura neutra não existe, porque essa
posição de neutralidade já é uma posição que não se preocupa com a sociedade,
com a cidade, com os pobres, com os excluídos. Hoje, meu papel como arquiteta é
muito menos pensar as questões técnicas e estéticas, mas pensar como a
arquitetura está envolvida com a ideia de espaço, de urbanismo com um todo.
ML: O que é o processo de gentrificação?
NR: Isso já aconteceu e continua acontecendo no mundo
inteiro. O mercado começa a detectar que a cidade cresce rapidamente e, ou ele
vai ficar investindo cada vez mais à margem, ou ele começa a investir nos
centros das cidades. Isso porque essas regiões são degradadas, mas têm
transporte, fácil acesso e podem ser valorizadas se ficarem limpinhas, cheias
praça, câmeras, policiamento e lojas para turistas. Então, o mercado e o poder
público, a portas fechadas – a gente não sabe exatamente como isso acontece –
sentam na mesa e dizem: ‘nós do poder público vamos melhorar a região do
centro, mas, antes disso, você senhor do mercado vai lá e compra aquele
apartamentinho do seu Zé do lado da rodoviária, porque é muito barato, uns R$10
mil. Depois que eu colocar um museu lá, ele vai passar a custar R$200 mi’.
Então alguns investidores compram esses terrenos na região degradada. Aí o
estado lança um grande projeto. O cara que vendeu o apartamento dele por R$10
mil comprou um quarto em Ribeirão das Neves, a duas horas de ônibus de onde ele
trabalhava. Então esse é o processo: a cidade se valoriza e as pessoas são
expulsas. É uma hiper-valorização de uma região e a expulsão das pessoas para
áreas mais baratas. Vários autores estão dizendo muito abertamente o motivo de
o estado fazer isso a portas fechas. Se era para o estado defender o bem estar
social, os pobres, por que ele está fazendo isso? A ideia é que, mais tarde,
são essas mesmas construtoras que vão financiar as campanhas políticas. A
construtora se beneficia disso, as empreiteiras, todo o mercado imobiliário e
depois eles financiam a campanha daquele grupo.
ML: Dentro desse contexto, como você avalia a parceria
público-privada?
NR: Imaginar que existe uma dicotomia entre público e
privado é uma inocência. Público e privado, do jeito que a gente está vivendo
hoje no ocidente, é a mesma coisa. O estado está junto do mercado e não é mais
aquela coisa idealizada - nem sei se foi algum dia - de defesa de todos, dos
direitos iguais, dos direitos humanos. Então, a gente tem que acabar com essa
inocência: público e privado são a mesma coisa.
Metade do recurso do
estado é pra pagar dívida com bancos nacionais e internacionais. De cara a
gente já tem um estado com seu orçamento comprometido com o mercado: ele está
quebrado e não tem dinheiro pra fazer as melhorias urbanas que ele precisa
fazer. Aí o estado diz: ‘eu não tenho dinheiro, não tenho gestão, o funcionário
público é lento, então vamos fazer uma parceria público-privada que vai me
garantir eficiência’. Esse é o discurso para as pessoas comuns. Mas isso só
significa que o mercado vai tomar frente daquela ação e aí o estado, na hora
que alguém vem cobrar alguma coisa como o corte das árvores no Mineirão, ele
vai dizer ‘isso foi uma parceria público-privada e a gente precisa disso para
atrair turistas para Belo Horizonte, isso vai gerar dinheiro pra todo mundo’.
Mas é claro que isso não é verdade: o seu Zezinho que vendia pipoca, o tropeiro
do Mineirão, o fulano que tomava conta do carro no estacionamento, essas
pessoas pobres não vão lucrar com a vinda da Copa.
ML: Então o formato das PPPs não funciona?
NR: A questão é por que é preciso fazer parceria
público-privada? Se você parar pra pensar no estado democrático, não tem
lógica. Se eu cobro imposto e o meu estado não está endividado, eu pego o
dinheiro do meu imposto e o transformo no que eu quiser, faço as obras
necessárias, repenso orçamento participativo, envolvo as universidades, os
profissionais. É óbvio que o mercado só entra na parceria público-privada se
ele tiver algum lucro com isso, se for pra ser bom pra ele, desde quando o
mercado é bonzinho? Quem tinha que representar os interesses da população é o
estado. O estado está quebrado, falido, desorganizado, vendido e vem com esse
discurso das PPPs. A parceria público-privada é um sintoma da falência do
estado.
ML: De que forma que essa expulsão dos pobres acontece nas
praças e parques?
NR: Na melhoria de uma praça, por exemplo, que antes era
escura, muito arborizada e aí a gente da classe média alta que vai andar nessa
praça tem medo de ser assaltado. Mas ali mora um monte de gente que, pra nós, é
mais uma categoria de sujeira urbana do que pessoas. Então, na hora que você
passa o trator, coloca uma calçada, tira os bancos, coloca câmera, tira as
árvores e faz uma praça, ela passa a ser só um lugar mais fácil de ser
controlado pela cidade e menos utilizado pelas pessoas. Toda vez que você ouve
falar que vai revitalizar alguma coisa do patrimônio, construir parques,
praças, resgatar uma natureza ali daquele lugar é pra expulsar pobre. Quando
fui à Europa o que mais me encantou foi ver as pessoas usando o espaço público.
Ficava impressionada de ver um grupo de engravatados, de mulheres chiquérrimas
sentados na praça comendo sanduíche. O nosso problema aqui é que onde temos
essas praças existem moradores. São pessoas que são sobras da sociedade e é
isso que nos incomoda. Se a gente tivesse numa praça cheia de criança linda,
loira e de olho azul tomando banho na fonte, a gente ia adorar. O problema é
quando você chega e tem um monte de mendigo lavando a roupa porque ele mora na
calçada. Isso é que incomoda, mas a gente tem que parar pra pensar porque isso
é um preconceito nosso. Aí tem uma palavrinha chave que está de volta que é o
“comum”, em relação ao espaço que não é público, nem privado, mas de todos. Se
esse espaço é comum e eu quero que todos usem, eu não posso dizer que só os
brancos, bonitos e ricos podem usar a praça.
ML: Ao mesmo tempo em que o estado não pode expulsar as
pessoas, ele precisa cuidar do aspecto visual da cidade. Como resolver esse
impasse?
NR: Existe essa ideia de o lugar que é desenvolvido é limpo,
é organizado, a parede é pintada de branco. Então a favela na cidade denigre a
imagem urbana. Mas, se a gente tivesse outro olhar pra esses lugares de
valorização de uma inteligência coletiva, de um jeito mais criativo a gente ia
ver o tanto que a favela é linda. É claro que é muito ruim não ter um
abastecimento de água, ou energia elétrica a contento, que pode pegar fogo a
qualquer hora, não tem uma infra-estrutura urbana adequada. Ao mesmo tempo, do
ponto de vista estético e visual, as favelas são maravilhosas. E não é um
discurso demagógico da minha parte, porque se você está interessado em entender
a riqueza da criação do povo brasileiro, olhar para as favelas é um pouco a
resposta disso. Você vê como as pessoas são criativas com muito pouco. Essa
ideia de que a cidade mais parecida com a Europa é melhor, também é uma ideia
que é vendida pra gente.
ML: Você acredita que a Copa intensifica esse processo de
expulsão?
NR: Toda vez que se tenta preparar uma cidade para receber
turistas para um grande evento, têm-se um leque de discursos. Primeiro você
precisa de segurança, então você precisa mesmo é da sensação de segurança. Não
estamos vendo projetos sociais para a melhoria das condições de vida do morador
de rua, a gente está vendo uma limpeza urbana. O que acontece nesses grandes
eventos é empurrar para debaixo do tapete, para as margens da cidade, causando
não a segurança, mas uma sensação de segurança. Eu acho que é isso que vai
acontecer com a cidade: um embelezamento, uma limpeza, uma tentativa de
transformar a cidade em desenvolvida, mas no final das contas não vai reverter
para todo mundo. Algumas pouquíssimas pessoas vão ganhar com isso e, na maioria
das vezes, não são as pessoas da cidade. O dinheiro sai de algum lugar para
essas grandes obras. Normalmente são financiamentos, então quem ganha com isso
são os bancos, o mercado imobiliário, as grandes empreiteiras. E a gente? Tudo
isso pra gente herdar uma dívida? Por que aí onde teremos que cortar? Na saúde,
na educação, nos projetos sociais, na aposentadoria. Vamos prestar atenção no
que aconteceu na Espanha. O país inteiro resolve se utilizar da arquitetura, do
embelezamento, das grandes obras, uma disputa de quem atrai mais turista,
gastou-se muito dinheiro, endividou-se e a Espanha quebrou. A gente tem que pensar
se não estamos fazendo exatamente a mesma coisa e, muitas vezes, com as mesmas
empresas que ganharam dinheiro lá. Então, ao invés de ficar só mirando no
primeiro mundo, a gente tem que aprender com esses erros.
Fonte: Portal Minas Livre
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