Falar de violência de gênero como um problema que é mais grave no Oriente, em ‘países atrasados como a Índia’, é querer esconder a sujeira do nosso próprio quintal.
A morte de uma estudante indiana de 23 anos, vítima de um
ataque sexual dentro de um ônibus em Nova Déli em dezembro do ano passado,
horrorizou o mundo e escancarou a violência de gênero presente na Índia. A
estudante saía do cinema e foi estuprada por seis homens, que também utilizaram
uma barra de ferro para agredi-la. A violência do ato foi tamanha que a jovem
perdeu seus intestinos, não resistiu aos graves ferimentos e morreu em um
hospital em Cingapura. O assunto ganhou grande repercussão na mídia
internacional e a morte da estudante foi seguida de atos e protestos no país
pedindo punição aos culpados e maior segurança às mulheres.
Durante algumas semanas, os principais meios de comunicação
do mundo reproduziram as histórias de insegurança das mulheres indianas e da
sua vulnerabilidade dentro da sociedade patriarcal do país. No entanto, o que
poucos falaram é que o relato de inúmeras Adhiras poderia ter sido o de
qualquer mulher em qualquer parte do planeta.
“Falar de violência de gênero como um problema que é mais
grave no Oriente, em ‘países atrasados como a Índia’, é querer esconder a
sujeira do nosso próprio quintal”, explica Ana Cláudia Pereira, doutoranda em
Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj
(universidade do Estado do Rio de Janeiro). “Parece que muitos grupos se
dedicam a repetir um discurso que exotiza e inferioriza as ex-colônias, os países
‘não-ocidentais’, reforçando ideias discriminatórias e de superioridade”,
completa.
Ana Cláudia, que mora em Washington, conta que não se
arrisca a esperar pelo ônibus depois das oito da noite nem mesmo na capital
norte-americana, a alguns quilômetros da Casa Branca. “Essa é uma limitação que
nenhum dos meus amigos do sexo masculino enfrenta. Em geral, a arquitetura e os
serviços públicos urbanos são planejados com uma visão muito limitada e
excludente, guiados pelo olhar do homem branco de classe média”, explica.
O jornal norte-americano Global Post destacou em uma de suas
manchetes sobre o caso "a cultura do estupro na Índia", enquanto o
The Washington Post, também dos Estados Unidos, tentou explicar as "10
razões pelas quais a Índia tem um problema de violência sexual". Na
França, o Le Monde titulou um dos seus artigos com a frase "A Índia deve
romper com a impunidade da violação". Do outro lado do Canal da Mancha, a
BBC falou sobre "Os estupros que a Índia esquece".
Os números de agressões e de impunidade, no entanto, não são
pessimistas somente quando se fala da Índia. Nos EUA, a violência doméstica é a
principal causa de lesão para as mulheres entre 15 e 44 anos. Em maio de 2012,
a câmara baixa do Congresso aprovou uma lei que diminui a proteção oferecida
pelas leis, deixando vulneráveis lésbicas, mulheres indígenas, imigrantes
ilegais e outras minorias sociais. No início deste ano, a mesma câmara decidiu
não votar a renovação da Lei de Violência contra a Mulher, de 1994, que está
suspensa. A cada nove segundos, uma mulher é espancada pelo marido ou parceiro
nos EUA.
No Brasil, o Anuário das Mulheres Brasileiras de 2011
mostrou que 43,1% das mulheres no país já foram vítimas de violência em sua
própria residência. No Egito, este número é 34%, segundo pesquisas nacionais.
No Canadá, 29% das mulheres já foram atacadas fisicamente por seus parceiros
íntimos e na Nova Zelândia o número chega a 35%.
Em entrevista a Opera Mundi, Sheeba Rakesh, fundadora da
organização de empoderamento das mulheres Pankh, que trabalha na Índia, diz que
nenhum grupo de mulheres pode ser realmente considerado protegido.
“Infelizmente, quando falamos de agressões a mulheres, somos todas vulneráveis.
Prova disso é o aumento dos ataques a mulheres urbanas, até então tidas como em
melhor situação. Abuso sexual no trabalho, estupro em viagens noturnas... o
medo está em todas as partes”. E continua: “A violência contra a mulher é um
problema social pandêmico, não uma questão geográfica”.
Beatrice Vanaja, coordenadora da associação filantrópica
indiana New Life, acredita que os crimes devem ser vistos como o subjugamento
de um sexo pelo outro. “A discussão deve ser a respeito do patriarcado, da
misoginia e da violência sexual no mundo, não somente na Índia”.
O caso indiano
Os contrastes e paradoxos da Índia não podem ser deixados de
lado quando se aborda o tema da violência de gênero. O país é berço de poetas
como Subramanya Bharathiyar e ativistas como Raja Ram Moham Roy, que já nos
séculos XVIII e XIX falavam sobre o empoderamento feminino, enquanto o mundo
respirava o ar da moral britânica vitoriana. A Índia é um país cujas mulheres
são cultuadas como divindades (diferentemente das religiões abraâmicas) e onde
surgiu no século XX o erotismo aparentemente liberalizador do Kamasutra.
Apesar disso, a segurança da mulher é questionada desde o
momento da concepção, com abortos seletivos por gênero. Em 1901, havia 972
mulheres para cada grupo de 1000 homens. Hoje são 940. Existe um tabu até mesmo
na alimentação das crianças em famílias mais pobres – o menino sempre vai
receber mais comida.
"A situação da mulher está melhorando com a entrada
massiva das mulheres no mercado de trabalho, mas os homens estão agora
enfrentando a competição feminina e parece que isso criou uma raiva, um
sentimento de vingança", explica Vanaja. "Mas não podemos culpar
apenas os homens indianos. Pessoas realmente preocupadas em reduzir crimes
contra as mulheres vão entender que este é um problema universal com a
construção da ideia de gêneros. O debate não deve ser usado para criticar país
ou religião".
A estratificação social com o sistema de castas também serve
de pano de fundo e justificativa para os ataques de gênero. O estupro é
frequentemente usado como arma contra mulheres em conflitos entre castas. Em
2002, durante os conflitos de Gujarat, homens dos partidos de direita utilizam
o estupro para “dar uma lição” às comunidades minoritárias. Os responsáveis
pelos estupros ainda estão livres. Durante o massacre de 2006 em Kherlanji, mãe
e filha de uma casta inferior foram estupradas por um grupo de homens antes de
ser assassinadas. Em algumas áreas mais problemáticas, os militares e os
policiais são há muito tempo acusados de violência contra a mulher.
Soluções
A reforma na legislação, aumentando a punição para crimes de
violência de gênero, é geralmente a primeira maneira encontrada para lutar
contra os ataques a mulheres. No Brasil, foi aprovada em 2006 a Lei Maria da
Penha, que alterou o Código Penal brasileiro possibilitando que agressores
sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva decretada. Além disso, a
legislação aumentou a pena de detenção máxima de um para três anos e prevê
medidas para proibir a aproximação do homem da mulher agredida.
Na Índia, um painel do governo foi organizado para debater
mudanças na lei e implementar medidas efetivas para evitar os ataques.
“Precisamos de mais ativismo e menos teoria neste lado do planeta”, conta
Sheeba.
Ana Cláudia Pereira defende medidas práticas, como melhor
iluminação pública e autorização de comércio informal. "Paralelamente, há
que investir em uma educação não-sexista e em mecanismos de prevenção da
violência. Esse modelo deve ser utilizado inclusive pelos países que se
consideram ‘desenvolvidos’".
Fonte: Opera Mundi
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