Em dezembro de 2012,
uma notícia gerou um raro consenso na Argentina. A absolvição de 13 acusados do
sequestro de María de los Angeles Verón gerou indignação e protestos em
diferentes cidades do país. Susana Trimarco, mãe da jovem, luta há mais de dez
anos para esclarecer o paradeiro da filha e virou um símbolo da luta contra o
tráfico de mulheres para exploração sexual.
Marita, como era
conhecida, tinha 23 anos quando saiu de sua casa, na cidade de San Miguel de
Tucumán, em abril de 2002, e nunca mais voltou. Desde então, Susana Trimarco
busca sua filha e, no meio do caminho, encontrou centenas de mulheres que
haviam sido sequestradas e obrigadas a prostituir-se.
Mas Marita não
apareceu e, ainda que a investigação independente levada por Susana tenha
encontrado indícios de que ela havia sido vítima de uma rede de tráfico de
mulheres, a justiça tucumana acatou o argumento da defesa e desestimou o
depoimento de mais de 130 testemunhas, entre elas mulheres resgatadas de
prostíbulos onde haviam estado com Marita.
“O sistema judicial é patriarcal. E em um sistema
patriarcal, uma 'puta' não tem credibilidade”, dispara, em entrevista a Opera
Mundi, Eliana Etizne, militante feminista e uma das mulheres que se dedicam
todos os dias a retirar os anúncios de prostituição dos pontos de ônibus,
telefones públicos e postes das principais praças de Buenos Aires.
A ideia não é nova.
Desde 2010, a Campanha Abolicionista “Nem mais uma mulher vítima das redes de
prostituição”, que reúne várias organizações feministas, transformou essa
pequena ação direta contra o tráfico de mulheres, que já era levada a cabo de
forma independente por feministas, em algo que extrapola os limites do
ativismo: é possível ver nas ruas da capital argentina pessoas que de repente
param para retirar anúncios de prostituição, jogam os papéis no lixo e seguem
seu caminho.
“Da mesma forma que colar esses papéis gera um diálogo na
rua, retirá-los também. Muitas vezes me vi explicando a pessoas por que fazia
isso e terminei convencendo algumas a fazer o mesmo”, conta Eliana.
Prostituição ou tráfico de mulheres?
“Os anúncios de prostituição são um convite a prostíbulos
para ver mulheres vítimas de tráfico de pessoas”, denuncia Mimi Sifón,
integrante da AMMAR-Capital (Associação de Mulheres Argentina pelos Direitos
Humanos), uma dissidência da homônima AMMAR (Associação de Mulheres Meretrizes
da Argentina), que se opõe à retirada dos panfletos com oferta de serviços
sexuais e está vinculada à CTA (Central de Trabalhadores da Argentina) como
sindicato de trabalhadoras sexuais.
Em julho de 2011, um
decreto presidencial proibiu na Argentina a “difusão de mensagens e imagens que
estimulem ou fomentem a exploração sexual”, o que terminou com os anúncios de
prostituição publicados em jornais e também deveria ter alcance sobre os
panfletos que aparecem colados na via pública. Georgina Orellano, da AMMAR,
afirma que, com a medida, a publicidade nos jornais não acabou, apenas mudou de
lugar e preço. Mulheres que queiram oferecer seus serviços como prostitutas
hoje pagam mais que o dobro do preço anterior ao decreto, e publicam em seções
de relacionamento ou oferta de massagem.
“Somos mulheres maiores de 18 anos que exercemos essa
atividade sem constrangimento, por isso nos reivindicamos trabalhadoras
sexuais. Temos um horário, não temos cafetão, nem ninguém que nos pressione a
trabalhar. O tráfico de mulheres é completamente diferente. Muitas vezes são
jovens menores de idade sequestradas, que entram no circuito contra a sua
vontade”, diferencia Georgina. “Uma coisa é exploração sexual, outra é o
trabalho sexual.”
Georgina Orellano, da
Associação de Meretrizes, defende regularização do trabalho sexual, com direito
a aposentadoria
Diferente da posição
de Georgina, que defende a regularização do trabalho sexual autônomo, com
direitos como aposentadoria, plano de saúde e alvará para cooperativas, Adriana
García, do Grupo Des-Pegar – Vínculos sem Violência, rejeita a ideia de que a
prostituição seja um trabalho. “Consideramos como a violência mais antiga do
mundo, não o trabalho. E se não intervirmos de maneira enérgica não apenas
vamos perder a batalha contra o tráfico de mulheres, mas também contra a
violência.”
Estatísticas pouco confiáveis
Como ocorre com quase
todas as atividades ilegais, o tráfico de mulheres é de difícil monitoramento e
há poucas estatísticas confiáveis. A Unidade Fiscal de Assistência em
Sequestros Extrosivos e Tráfico de Pessoas, do Ministério Público Fiscal da
Argentina, publicou um relatório que aponta para as mulheres como as principais
vítimas das redes de prostituição forçada: elas constituem 98% dos casos de
sequestro. O levantamento foi realizado com base em notícias de jornais e
processos judiciais – e não nas sentenças, que ainda são poucas.
Segundo o documento,
74% dos casos foram identificados em estabelecimentos públicos, o que indica
que a ação judicial se concentra em boates e casas de prostituição. Em muitos
dos casos, estes locais contavam com alvará para seu funcionamento e deveriam
ser monitoradas por agentes da lei.
A cumplicidade entre
o poder público e a exploração sexual não parece ser nenhum segredo na
Argentina. Eliana Etizne conta que uma vez, enquanto retirava papéis no bairro
de Once, onde fica uma das estações de trem com maior movimento em Buenos
Aires, foi abordada por um rapaz que colava os anúncios. Em meio à discussão,
recebeu de um policial uma ameaça de que a levaria presa por perturbação da
ordem pública, mesmo depois de ter alegado que colar papéis era o delito,
retirá-los não.
Elo mais fraco
“O caso da Marita Verón me faz pensar que todos os anos de
militância feminista não foram capazes sequer de impedir que o elo mais fraco
da cadeia do tráfico de mulheres, a pessoa que cola os anúncios ou quem serve
de isca para as mulheres, seja preso. Como mulher isso gera medo, muitas vezes
paralisa, nos faz sentir impotentes”, reflete.
Para ela, não será
possível reverter a situação das mulheres sem uma atenção especial à educação
dos homens. “É preciso ensiná-los que não têm o direito de dominar as mulheres
e que a sua felicidade não pode ser à custa do nosso sofrimento. A única
maneira de mudar o sistema é criar homens novos. E o homem novo não contrata
prostitutas.”
Marcela D'Angelo, integrante do seminário Direitos Humanos
com Perspectiva de Gênero da Faculdade de Filosofia e Letras da UBA
(Universidade de Buenos Aires), concorda que o patriarcado é o responsável pela
naturalização do consumo de sexo, tanto para homens como para mulheres. “Somos
educadas durante a vida inteira para ser objetos sexuais a serviço dos homens.
E eles são educados para consumir mulheres como se fossem objetos, sem nenhum
remorso ou responsabilidade.”
Para Marcela, a pequena ação de retirar os anúncios de
prostituição não transforma o mundo, mas ajuda. “Não achamos que ao arrancar os
papeizinhos vamos terminar com o sistema de prostituição, mas é uma forma de
dar visibilidade ao problema, de intervir simbolicamente”, conclui.
Fonte: Opera Mundi
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