Quando a Ir. Carol Rittner, das Irmãs da Misericórdia,
respondeu à minha pergunta sobre o que é importante para ela, eu sabia que
estava no início de uma aventura. "O que é importante para mim? Bem,
muitas coisas – disse Rittner –, mas sem dúvida: o Vaticano II e o seu espírito
na nossa Igreja hoje; o genocídio e a prevenção ao genocídio; as relações
judaico-cristãs; estudar e aprender sobre o Holocausto e outros genocídios
(Ruanda, por exemplo); e como as Igrejas cristãs institucionais, assim como os
cristãos individuais, responderam aos 'procurados e perseguidos' (ou não); a
educação em geral; o Evangelho e como nós, cristãos católicos romanos, tentamos
viver no nosso mundo hoje".
A reportagem é da Ir. Camille D'Arienzo, das Irmãs da
Misericórdia, publicada na revista U.S. Catholic, janeiro de 2013. A tradução é
de Moisés Sbardelotto.
Eu apostava que havia mais por vir. "Estou interessada
no Vaticano e na sua investigação às religiosas norte-americanas destes últimos
anos. Eu desejo comunicar a 'notícia' realmente maravilhosa sobre o nosso
compromisso com Deus e com o povo de Deus e o nosso ministério na nossa Igreja
e em nosso mundo ferido".
A prova desses interesses está em sua "curta"
biografia, que diz:
"Dra. Carol Rittner, RSM, membro das Irmãs da
Misericórdia da comunidade do Meio-Atlântico, é uma eminente professora de
estudos do Holocausto e do genocídio, e professora da cátedra Dra. Marsha Raticoff Grossman de Estudos
do Holocausto no The Richard Stockton College, em New Jersey. É autora
ou organizadora de 15 livros e inúmeros artigos em várias revistas científicas
e educacionais sobre o Holocausto e outros genocídios dos séculos XX e XXI.
Carol proferiu conferências em todo o mundo – Canadá, Inglaterra, Irlanda,
Austrália, África do Sul, Suécia, Cambodja e Israel, apenas para citar alguns
lugares, além dos EUA. Suas publicações mais recentes incluem The Holocaust and
the Christian World [O Holocausto e o mundo cristão] (2000); Will Genocide Ever
End? [O genocídio irá acabar?] (2004); No Going Back: Letters to Pope Benedict
XVI [Sem retorno: Cartas ao Papa Bento XVI] (2009); Learn Teach Prevent:
Holocaust Education in the 21st Century [Aprender, ensinar, prevenir: Educação
sobre o Holocausto no século XXI] (2011); e Violence Against Women [Violência
contra a mulher] (2011). Seu novo livro, que acaba de ser publicado, é Rape as
a Weapon of War & Genocide [Estupro como arma de guerra e genocídio]
(2012). A Ir. Carol também está trabalhando em um documentário de 60 minutos,
Sisters, que deve estar disponível para exibição no dia 1º de abril".
Eis a entrevista.
Tudo isso nos fala muito sobre a sua apaixonada busca da
justiça e da verdade. Mas eu gostaria de voltar para as "outras
coisas" que você mencionou em sua resposta à minha pergunta inicial. Você
poderia nos contar como você passa um dia típico? Faço essa pergunta já
bastante certa de que o seu "típico" será "extraordinário"
para a maioria de nós.
Um dia típico para mim começa em torno das 5h45, com cerca
de duas horas de oração, reflexão e leitura, geralmente algo sobre teologia
para alimentar a minha mente e coração. Algumas manhãs, a minha leitura inclui
a [revista católica] The Tablet, de Londres, a revista America [dos jesuítas
dos EUA] ou o jornal National Catholic Reporter. Eu também gosto de checar o
The New York Times online, ao menos para passar as manchetes, a fim de ter uma
ideia sobre o que está acontecendo no mundo.
Então é hora de me preparar para o dia com uma caminhada
antes do café da manhã. Eu respondo aos e-mails, depois dedico algumas horas ao
estudo e à pesquisa, geralmente em preparação para as aulas que eu possa estar
lecionando naquele semestre particular. Estou sempre trabalhando em alguma
palestra ou projeto de livro, por isso há contatos para fazer ou artigos para
ler. Eu tenho múltiplos envolvimentos em comissões (duas pequenas comissões de
universidades católicas, o conselho de uma organização não governamental
filiada às Nações Unidas, em Nova York, e um conselho consultivo de um museu
local aqui de South New Jersey). Se estiver chegando perto do prazo para a
publicação online que eu edito, a Mercywords, eu tento encontrar tempo para
trabalhar nisso.
Eu também encontro tempo para encontrar os amigos,
compartilhar uma refeição e desfrutar de um bom copo de vinho. E, antes que eu
me esqueça, se for um dia de ensino, eu dirijo até o The Stockton Richard
College, de New Jersey, passo minhas horas no gabinete para que possa me
encontrar com os estudantes ou outros professores, depois dou as minhas aulas.
Quando finalmente chego em casa, eu tento relaxar assistindo um pouco de
televisão, conversando com a minha amiga e membro de comunidade, a Ir. Deirdre
Mullan, irmã da Misericórdia de Derry, Irlanda do Norte, antes de ir para a
cama ali pelas 22h. Não estou dizendo que todos os dias são preenchidos com
tudo o que eu enumerei, mas esses são os elementos da maioria dos dias.
Você poderia indicar alguma experiência de vida ou influência
que a colocou nessa trajetória?
Bem, provavelmente o Papa João XXIII e o Vaticano II tiveram
a maior influência sobre mim. Um mês depois que eu entrei no convento das Irmãs
da Misericórdia, naquele que é agora a Misericordia University, em Dallas,
Pensilvânia, em setembro de 1962, o Papa João XXIII abriu a primeira sessão do
Concílio Vaticano II, na Basílica de São Pedro, em Roma. Apesar de ele ter
morrido antes de o concílio ter concluído o seu trabalho, o tom pastoral que
ele definiu, fez com que a Igreja Católica Romana passasse por uma enorme
transformação, que alguns regressivos tridentinos estão hoje tentando reverter,
eu lamento dizer.
Duas das mudanças iniciadas pelo concílio tiveram uma grande
influência em mim. Primeiro, a Igreja Católica Romana chegou a uma nova
apreciação do judaísmo e, desde então, tentou libertar o seu ensino da retórica
antijudaica herdada. E, segundo, a Igreja Católica Romana descobriu um novo
senso de solidariedade junto a outras comunidades religiosas e com toda a
família humana. Para mim, tanto como cristã católica romana e como membro das
Irmãs da Misericórdia, o Papa João XXIII e o Vaticano II continuam sendo
influentes e, posso dizer, formativos na minha vida pessoal e na minha vocação
profissional a serviço de todas as pessoas como professora e estudiosa.
O que influenciou o seu interesse pelas relações
judaico-cristãs?
Há mais de 40 anos, eu fiquei comovida pelo livro de Victor
Frankl, Em busca de sentido. Eu me perguntei: como um lugar como Auschwitz pôde
ter existido dentro do próprio coração da chamada "Europa Cristã"?
Como seres humanos puderam ter separado os judeus de outros membros da família
humana, forçá-los aos campos de concentração, humilhá-los e privá-los de
comida, depois empurrá-los para câmaras de gás e queimá-los em fornos? Onde
estavam as Igrejas cristãs? Por que os cristãos não ajudaram os judeus em seu
momento de necessidade? O que aconteceu, eu me perguntava, com os grandes
ensinamentos que Jesus ensinou aos cristãos: "Faça aos outros o que
gostaria que fizessem a você", "O que você faz pelo menor dos seus
irmãos e irmãs, você faz a mim"?
Eu lembro que fiquei abalada com a percepção de que nada
disso parecia importar muito quando se tratava de ajudar os judeus durante o
Holocausto. Por quê?, eu me perguntava. Por que o ensino do bem e do mal em
instituições sociais e religiosas organizadas não conseguiu evitar o
Holocausto? Hoje, essas parecem ser perguntas ingênuas, mas há 40 anos eu ainda
não sabia que Hitler e os nazistas haviam construído a sua ideologia mortal
sobre os fundamentos gêmeos do antissemitismo racista e do antijudaísmo
teológico na teologia cristã. Só mais tarde, depois de um estudo muito
angustiante sobre as escrituras e outros ramos da teologia, renovada e
re-energizada pelos Padres do Vaticano II, é que eu cheguei a entender o que
desencadeou tais males sobre os inocentes.
Por quase dois milênios, os cristãos se agarraram à
"crença" de que os judeus foram responsáveis pela morte de Jesus.
Essa acusação do chamado "deicídio" manteve vivo o preconceito e o
ódio antijudaico. Ela foi usada para justificar tudo, da perseguição e expulsão
dos judeus da Espanha, Inglaterra e de outros lugares na Europa entre 1050 e
1650, até o pogrom vicioso contra os judeus conhecido como Kristallnacht em
novembro de 1938, um pogrom projetado pelos nazistas e seus colaboradores na
Alemanha e Áustria. Foi o meu estudo do Holocausto e do fracasso das Igrejas
cristãs para evitá-lo que me encorajou a fazer a minha pequena parte para
promover melhores relações entre cristãos e judeus.
Por favor, descreva-nos a sua infância.
Eu nasci há 70 anos com uma formação de classe média
norte-americana bastante padrão. Minha mãe era uma dona de casa, e o meu pai
era um empresário muito trabalhador e de sucesso. Eu frequentei um colégio
católico em Harrisburg, Pensilvânia – a Bishop McDevitt Catholic High School –,
depois fui para o Immaculate College, nos arredores da Filadélfia durante um
ano, antes de entrar para as Irmãs da Misericórdia, em Dallas, Pensilvânia. Eu
estava envolvida em muitas atividades do Ensino Médio e trabalhava para o meu
pai em um dos seus restaurantes durante o verão e aos fins de semana. Eu tinha
duas irmãs mais novas e um irmão mais velho. Minha mãe era católica, e o meu
pai era protestante. Fomos todos criados como católicos, assistíamos à missa
todos os domingos. Tínhamos amigos da família que eram católicos, protestantes
e judeus. Éramos, em suma, uma típica família suburbana. Tínhamos até uma
cachorrinha chamada Cindy.
Você teve modelos de vida?
Meus pais certamente eram modelos de vida para mim: fiéis,
honestos, amorosos e acolhedores para a família e os amigos. Crescendo, eu
lembro que me inspirei no Dr. Tom Dooley e no seu compromisso com as pessoas
necessitadas do Sudeste Asiático. Eu também adorava a energia e o compromisso
com o serviço público de John F. Kennedy. Ele se tornou presidente quando eu
estava no meu último ano do colégio.
O que a atraiu à vida religiosa?
Quase todas as minhas professoras do Ensino Médio eram
freiras na Bishop McDevitt High School, em Harrisburg, entre elas Irmãs da
Misericórdia, de Dallas, e Irmãs do Imaculado Coração de Maria, da Filadélfia.
Eu me sentia atraída por essas mulheres jovens e enérgicas, com com
personalidades atraentes e amorosas. Elas riam conosco, nos ajudavam a decorar
a nossa academia de danças e, claro, nos davam conselhos sobre as nossas
preocupações e sofrimentos, dentre os quais estavam os nossos namorados, ou a
falta deles.
Elas pareciam perfeitamente normais, completamente dedicadas
e muito interessadas em nós. Havia algumas professoras realmente boas entre
elas. Eu também tive duas colegas que ajudaram a incentivar uma atração pela
vida religiosa – Michele Lanshe e Cecilia Wambach. Nós seríamos irmãs juntas.
Acabamos entrando em duas comunidades diferentes, elas para as Irmãs Escolares
de Nossa Senhora, e eu para as Irmãs da Misericórdia. Elas ficaram alguns anos,
depois abandonaram para seguir novas vocações. Mesmo assim, sem elas e o seu
encorajamento, eu duvido seriamente se eu teria "entrado para o
convento".
Onde você encontra apoio para as suas muitas paixões?
Meu apoio vem das outras Irmãs da Misericórdia,
especialmente da minha boa amiga de tantos anos, a Ir. Deirdre Mullan, mas
também de outros amigos, religiosos e também leigos.
Como você reza?
Eu espero que você não pense que estou brincando ao dizer
que eu rezo "com alguma dificuldade". Quase todos os dias, durante os
50 anos da minha vida como Irmã da Misericórdia, eu tenho tentado tirar algum
tempo para rezar, geralmente pela manhã, mas também alguns momentos antes de ir
para a cama. O que significa rezar? Significa recitar os salmos? Eu tento fazer
isso. Significa ler silenciosamente as Escrituras judaicas e cristãs? Eu tento
fazer isso, também. Significa "falar" com alguém, com alguma
"pessoa" além de mim mesma? Eu dou o máximo de mim para fazer isso.
Significa simplesmente se sentar calmamente e "ouvir"? Eu também tento
fazer isso. Mas algo disso é oração? Honestamente, eu não sei. Eu acho que é
por isso que eu me sinto atraída por Jesus, que revelou o rosto humano de Deus.
Eu sempre espero que eu o reconheça nos outros. E eu confesso que nem sempre
faço isso. Talvez isso seja a oração. Honestamente, eu não tenho certeza.
Qual a sua passagem favorita da Escritura?
Jeremias 29, 11-13: "Conheço meus projetos sobre vocês
– oráculo de Javé: são projetos de felicidade e não de sofrimento, para
dar-lhes um futuro e uma esperança. Quando vocês me invocarem, rezarão a mim, e
eu os ouvirei. Vocês me procurarão, e me encontrarão se me buscarem de todo o
coração".
O que a levou a fazer Sisters, o documentário em que você
está trabalhando?
A chamada "visitação" vaticana às religiosas
norte-americanas.
Do que se trata e qual a sua relevância?
Muitos norte-americanos – católicos, protestantes e judeus –
ficaram surpresos – até mesmo confusos – por causa da atenção negativa do
Vaticano dirigida às irmãs católicas dos Estados Unidos. Essas mulheres, que
dedicaram as suas vidas a Deus, à Igreja que elas amam, e ao povo de Deus dos
Estados Unidos e de outros lugares influenciaram a vida de milhões de pessoas,
católicas e não católicas também, através do seu trabalho nas escolas,
hospitais, orfanatos e outras instituições de serviço social. Elas estiveram na
vanguarda das questões de justiça social, servindo aos pobres e marginalizados
na Igreja e na sociedade em geral, defendendo os direitos das mulheres e das
crianças, educando os imigrantes e os refugiados, levando cuidados de saúde às
comunidades rurais e ministrando aos idosos e aos solitários.
A presença e o ministério das "mulheres
religiosas" (o termo canônico geralmente preferido ao coloquial
"freiras" ou "irmãs") tiveram um grande impacto sobre o
desenvolvimento da cultura católica norte-americana e, de fato, sobre a
construção da sociedade norte-americana como um todo. Embora algumas pessoas
possam preferir que as "boas irmãs" atuem como serviçais passivas do
clero e da hierarquia, as religiosas norte-americanas pensam diferente. Quem
são essas mulheres? Em nome de que elas se posicionam? E o que é que elas
fazem? Responder a essas perguntas em uma tentativa de esclarecer o valor da
vida dessas mulheres nos Estados Unidos contemporâneos – um valor muitas vezes
obscurecido pelo mito, distorcido pelos estereótipos ou profundamente
incompreendidos por uma hierarquia religiosa dominada por homens – é o objetivo
de Sisters.
Como se consegue isso?
Sisters é uma série conectada de perfis de cinco irmãs que
trabalham nos Estados Unidos hoje: uma pediatra do setor de emergência, uma
conselheiro de estudantes universitários, uma irmã que trabalha como diretora
de uma organização não governamental na ONU, uma mulher que organiza a
reconstrução de casas da área mais pobre de Nova Orleans, uma vice-presidente
de um hospital católico que serve os pobres de Denver, e uma ministra de
pastoral e professora de uma faculdade católica da Filadélfia.
Mas algo faz com que cada uma dessas mulheres seja mais do
que apenas uma profissional comprometida, que trabalha para tornar a vida dos
outros melhor. Em Sisters, ficamos sabendo que cada uma tem um centro
silencioso e poderoso para as suas vidas. Vemo-las em seu trabalho – cuidando
de crianças, trazendo conforto para os pobres e dando um importante exemplo
moral aos jovens – e passamos a entender que, independentemente do que façam
elas trazem uma espécie de santidade para isso. Com as suas próprias vozes,
elas nos dizem qual é o seu alicerce espiritual, o que é a oração para elas,
qual é o rosto de Deus para elas e como essas coisas investem sobre todos os
esforços das suas vidas profissionais.
Elas dedicaram as suas vidas de uma forma que poucos podem
compreender verdadeiramente, mas muitos podem apreciar. Sisters não conta
apenas a história dessas mulheres notáveis; ele fornece uma espécie de
paradigma para todos nós, um lembrete do que é ser cristão hoje, do que é ser
verdadeiramente humano em um mundo difícil. Além disso, Sisters irá revelar o
seu extraordinário compromisso com a Igreja que elas amam e estimam.
Fonte: Ihu
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