A naturalização da prostituição reforça um modelo em que a
sexualidade feminina se constrói em função do desejo masculino.
A conversa era sobre
o aluguel em São Paulo. O rapaz gente boa, que estava passeando por aqui, ficou
chocado com o preço. Só que a conversa não seguiu pelos rumos da especulação
imobiliária… “Já vem com as meninas?” [caras e bocas de perplexidade] E ele repete:
“É, as acompanhantes…” A gente tinha entendido.
Ele expressou ali uma visão de muitos homens, acostumados em
ter e tratar as mulheres como seres à disposição para satisfação das suas
necessidades. E que têm um preço [uma mercadoria, a gente costuma dizer por
aqui]. A lógica deste comentário é a mesma desse: “Como é que bota na selva
amazônica centenas de homens sem mulher? Era preciso ter bordéis nos canteiros
de obras”. (Paulinho da Força Sindical/PDT, no contexto da greve dos
trabalhadores da usina de Jirau e Santo Antônio, em 2011).
Ana de Miguel propõe que a prostituição não seja definida
apenas pela troca de sexo por dinheiro, mas sim como “uma prática através da
qual é garantido aos homens o acesso grupal e regrado ao corpo das mulheres”. É
acessível, ainda que mediado pelo dinheiro, e regulado, porque não é natural
nem espontâneo, mas envolto em uma série de normas conhecidas e respeitadas,
desde a localização das mulheres até a negociação do preço para determinado
“serviço”.
Temos ouvido muito por aí que algumas feministas são
moralistas e conservadoras, porque questionam a prostituição. Além de colocar a
gente lado a lado com setores religiosos (justamente os que costumam dizer que
o feminismo é um mal para a sociedade, porque questionamos esse modelo de
família e sexualidade e defendemos o prazer e a liberdade), ainda nos chamam de
equivocadas…
“O outro equívoco desse feminismo socialista é que ele
advoga pela autonomia da mulher sobre o seu corpo, e aí quer tutelar o corpo da
mulher dizendo que ela não tem o direito de prestar um serviço sexual com o seu
corpo”. (Jean Wyllys)
Juro que gostaria de ver esse empenho de mais deputados na
defesa do direito ao aborto, mas esse é assunto pra outra hora…
Agora, só queria dizer que a forma como setores
pró-regulamentação da prostituição têm tratado setores do feminismo que
questionam a prostituição é, no mínimo, desrespeitosa e não contribui em nada
para o debate. Vemos uma desqualificação de um longo processo de lutas das
mulheres por liberdade, igualdade e autonomia e que nada tem a ver com
conservadorismo. As feministas defendem o direito das mulheres de viverem
livremente sua sexualidade, com autonomia do desejo, questionando a
heteronormatividade e a violência. Mas nós negamos a falsa liberdade, oferecida
pelo mercado, que se encerra unicamente na ideia de não ter impedimentos para
alguma ação “econômica”. Esta ideia está na base da banalização da sexualidade,
tornando-a mais um produto.
Pra mim, conservadora é uma visão de liberdade sexual que se
baseia na satisfação dos desejos dos homens e que oculta/inibe/oprime o desejo
das mulheres. Somos frequentemente bombardeadas com essa visão, seja com as
dicas da Nova sobre como enlouquecer seu homem na cama, ou com o mainstream da
pornografia. Enquanto isso… Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo as mulheres
brasileiras declaram que “na maior parte das vezes” quando tiveram relação
sexual sentiram “muito prazer”, isso 42% das mulheres. Outras 42% dizem que
acharam “gostoso”. A soma das que na maior parte das vezes tiveram relação “por
obrigação”, “não sentiram nada” ou avaliam “que foi um sofrimento” foi 9%. 9% é
muita gente. E “gostoso” é um chocolate.
A sexualidade é um componente fundamental na opressão das
mulheres. Não dá pra ignorar as experiências das mulheres na sexualidade e
simplesmente afirmar que exercer a prostituição é uma forma de vivenciar sua
liberdade sexual. Ou dá, mas daí então tem que afirmar que se trata da
liberdade sexual dos homens, e que essa liberdade tem um preço e se encontra no
mercado. A naturalização da prostituição reforça um modelo em que a sexualidade
feminina se constrói em função do desejo masculino.
“El hecho de que
los varones busquen y encuentren placer sexual en personas que obviamente no
les desean en absoluto es, sin duda, una importante materia de reflexión sobre
el abismo que se abre bajo la aparente igualdad y reciprocidad en las
expectativas y vivencias sobre la sexualidad entre las y los jóvenes” (Ana de
Miguel).
A dicotomia estabelecida entre santas e putas parece ser
substituída por uma nova normatização que impõe que todas as mulheres se
enquadrem no estereótipo de uma mulher livre nos termos do modelo de
sexualidade tradicional masculino. Ana de Miguel afirma que, neste debate, a
pergunta não deve ser se há pessoas dispostas a se prostituir, mas sim, “por
que a maior parte das pessoas destinadas ao mercado da prostituição são
mulheres?”, ou ainda “como é possível que os homens obtenham prazer de pessoas
que se encontram em uma situação explícita de inferioridade?”.
Colocar os homens no debate é importante para sair de um
discurso que faz parecer que as mulheres são o motivo pelo qual existe a
prostituição no mundo. Além disso, contribui para visibilizar que as
prostitutas não existem no vazio, mas sim na relação com uma outra pessoa.
Neste caso, em uma relação inserida em uma sociedade marcada pela desigualdade
e opressão das mulheres.
“De mais a mais, todos somos mercadoria numa sociedade
capitalista, todos nós vendemos a nossa força de trabalho, utilizamos o nosso
corpo para empreender e executar esse trabalho…” (Jean Wyllys)
Ao afirmar que “seguiremos em marcha até que todas sejamos
livres”, a Marcha Mundial das Mulheres se posiciona em um campo que questiona
profundamente as desigualdades do sistema capitalista, patriarcal e racista.
Propõe um horizonte no qual haja a real superação da divisão sexual do
trabalho, o fim da violência contra as mulheres e em que prevaleça a autonomia
das mulheres, em relações de liberdade que só podem se realizar, para todas as
mulheres, com a igualdade. Esta perspectiva é, portanto, radicalmente distinta
do individualismo liberal que defende a liberdade de cada mulher para fazer o
que quiser com seu corpo, mas que não é capaz de identificar que, no atual
modelo, a liberdade não caracteriza a vida da maioria das mulheres.
Desde essa perspectiva, também questionamos a visão, dita de
esquerda, que reduz o debate com a naturalização da prostituição como algo que
sempre existiu, invocando um fatalismo que rebaixa o debate político e não
questiona as relações patriarcais, ou seja, os privilégios masculinos que estão
em jogo com a manutenção deste modelo opressor de sexualidade. Este raciocínio
é contraditório com toda a história da esquerda que persegue a utopia de
superar o capitalismo e construir um mundo de igualdade, tarefa que é tão
difícil quanto a construção da igualdade e liberdade das mulheres, mas que lutamos
pra realizar, ao pretender “mudar o mundo e mudar a vida das mulheres em um só
movimento”.
Com a proximidade da Copa do Mundo, está colocado o desafio
de posicionar este debate não apenas a partir da constatação de que, por ser um
período com muitos turistas homens, haverá uma demanda maior pela prostituição.
Este é um fato, mas, muitas vezes, é justamente o argumento para se
regulamentar a prostituição, para que se realize em espaços seguros (para os
homens?). Assim, novamente o debate é reduzido. Um dos caminhos para enfrentar
o debate da Copa do Mundo é o de visibilizar os circuitos estabelecidos da
prostituição, de modo a explicitar que o funcionamento do turismo no Brasil tem
a prostituição como um pressuposto e uma base de movimentação de bilhões de
reais. Legitimar esta prática, sem questionar o papel dos homens, do capital e
do Estado, é uma armadilha cuja consequência é o reforço da opressão das
mulheres.
Já estamos acostumadas com “mal amadas”, “histéricas”,
“feminazis”, etc… Então, nos tachar de “conservadoras” e “moralistas” é colocar
mais um rótulo que nega os acúmulos das lutas feministas que garantiram
conquistas para as mulheres. Mas se quiser fazer o debate inteiro sobre o que
nos move enquanto feministas em movimento, como a liberdade e a igualdade,
estamos aí. E, se quiser enfrentar os privilégios masculinos nesse mundo
machista, então somos companheir@s.
Fonte: Tica Moreno em Brasil de Fato
* Tica Moreno é militante da Marcha Mundial das Mulheres em
São Paulo.
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