quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Sonho de melhorar de vida faz brasileiras escravas sexuais na Europa


Claro, ela não quer mais relembrar essa história. Diz que pretende riscar esse capítulo de sua biografia e não adianta espicaçar sentimentos, colocar sadicamente o dedo em sua ferida e perguntar: “E aí, como é ser vítima do tráfico de pessoas? ”Ela foi jurada de morte por uma organização criminosa e se recusa a entrar no programa de proteção às testemunhas, não aceita ir para “um lugar estranho de novo”, receber outra identidade e esquecer a vida que, agora, tenta reconstruir. 

Reportagem publicada na edição 183 de Caros Amigos

Para ela, de “prisão” já bastou a que viveu por quase um ano na Espanha. É difícil ter uma dimensão palpável de como seus direitos foram violados, então tente se colocar no lugar dela. Você vem de um casamento malsucedido em que apanhava diariamente e está sem emprego e grana no bolso. As coisas estão difíceis e você descobre que dá para descolar uma grana se prostituindo, 30 a 40 reais por programa, mais do que qualquer emprego paga em sua paupérrima região.



Surge um cara que faz promessas, é gentil e reacende seus sonhos cinderelescos. Ele conta sobre um mundo distante que você só conhece pela televisão, a Espanha, onde se recebe em euro e é a terra das oportunidades. Diz isso com as passagens na mão e vocês se mandam para lá.

Então você descobre que ele faz parte de uma rede criminosa que trafica pessoas para explorá-las sexualmente. O seu passaporte é retido, argumentam que você contraiu uma altíssima dívida e não pode sair enquanto não pagá-la, sendo obrigada a manter mais de 10 relações sexuais por dia e não importa que esteja cansada ou mesmo menstruada. Você não pode fugir, não pode gritar, afinal, seu ex-príncipe pode matá-la e conhece a sua família.

Você engravida e se torna um peso que pode comprometer os lucros. A dona do prostíbulo quer que você aborte. Esse inferno dantesco se arrasta até que a polícia espanhola consegue resgatá-la e a deporta para o Brasil. Você está chegando ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. E agora, o que você faz? Primeiro, saber que você não é única e está longe de ser a última.

NÚMEROS

Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), 2,4 milhões de pessoas são traficadas, anualmente, para o trabalho forçado. A exploração sexual representa quase 80% dos casos detectados – seguido do trabalho escravo e do comércio ilegal de órgãos. De cada cinco vítimas, quatro são mulheres ou meninas e metade das pessoas traficadas são menores de idade. O lucro estimado dessas organizações criminosas, ainda segundo o UNODC, é de US$ 32 bilhões por ano, o que coloca o tráfico de pessoas como a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e armas. Alguns pesquisadores afirmam que, ultimamente, esse crime tem recebido mais investimentos, pois a natureza de seu lucro não se esgota: se drogas e armas têm vendas únicas, uma pessoa pode ser vendida e revendida infinitas vezes.

Um Levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), baseado no Relatório Nacional sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para o Propósito de Exploração Sexual (publicado em 2002), mapeou 241 rotas de tráfico: 110 dentro do Brasil e 131 internacionais. As ações estão concentradas em 520 municípios. Os principais destinos no exterior são para Europa – especialmente Espanha, Portugal, França e Itália – e Estados Unidos.

Segundo o Ministério Público e a Polícia Federal, cerca de 70 mil brasileiros são traficados, anualmente, para o exterior, correspondendo a 10% dos lucros mundiais. Goiás ocupa a primeira posi-ção no ranking nacional de tráfico de pessoas, de acordo com os inquéritos apurados, com 18,6% dos 750 casos registrados no país na última década. Isso com uma população sete vezes menor que a de São Paulo, que ocupa a segunda posição, com 12,8% dos inquéritos, seguido por Minas Gerais (9%) e Rio de Janeiro (7%).

São muitos os brasileiros traficados, por isso, o Aeroporto Internacional de Guarulhos, ponto de saída e entrada da maioria das pessoas aliadas, conta com Posto de Atendimento Humanizado aos Migrantes, uma iniciativa da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (ASBRAD) em conjunto com a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) e o patrocínio da ONG holandesa Cordaid. As atividades do Posto incluem acolher pessoas vítimas desse crime.

São muitas as situações de exploração de prostitutas e travestis em seu ambiente de trabalho, porém nem toda exploração caracteriza tráfico. Alguém que viaje de um canto ao outro do país e ao exterior para exercer sua profissão é um trabalhador migrante. Aqueles que não
podem deixar seus postos de trabalho por endividamentos, retenção de documentos ou violência, esses, sim, são vítimas de tráfico.

No tráfico de pessoas, a vítima perde sua característica ontológica de ser humano e passa a ser uma mercadoria e sua existência serve apenas ao lucro. A escolha quase sempre se dá por indivíduos com certa vulnerabilidade social – seja de condições migratórias, gênero, étnicoraciais ou econômicos.

A pesquisadora Maria Lúcia Leal é coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Tráfico de Pessoas, Violência e Exploração Sexual de Mulheres Crianças e Adolescentes (VIOLES), ligado a Universidade de Brasília (UnB), e o responsável pelo primeiro estudo sobre o assunto no país, que deu forma ao plano e às políticas de enfrentamento ao tráfico de seres humanos no Brasil. Segundo ela, as principais vítimas recrutadas pelas redes são mulheres entre 17 e 25 anos, de classes populares e baixa inclusão nas políticas públicas, especialmente, na educação. Têm trabalhos precários ou informais. Geralmente foram casadas, têm filhos e ajudam financeiramente a família. Em alguns casos, como as famílias também são muito vulneráveis, os próprios pais vendem suas crianças.

“Essas mulheres criam uma expectativa de saltar de vida e precisam do dinheiro. Algumas ficam até pagar a dívida para poder juntar mais um pouquinho e não voltar se sentindo uma fracassada”, salienta a professora da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC), Verônica Teresi, que passou dois anos na Espanha pesquisando a vida dessas mulheres.

“Quando falamos em vulnerabilidade – o que não significa que elas são frágeis, ao contrário, são fortes por tudo que passam – o responsável é o Estado, que é omisso e vagarosos na constituição dos direitos e da cidadania das mulheres”, denuncia Leal. Para alguns estudiosos do tema, é preciso ressalvas quanto ao tratamento dessas pessoas.

Vitimizar seria, para eles, retirar a autonomia dos sujeitos e transformá-los em seres incapazes de agência. Além disso, a polarização “vítima versus algoz” assumiria um tom moral que não auxilia no seu entendimento, pelo contrário, só reduziria a complexidade do problema. “Há um conservadorismo inerente ao discurso de ‘vítima idealizada’, ao mesmo tempo em que os responsabiliza individualmente pelos atos ao ‘deixar-se aliciar’, ‘denunciar ou não denunciar’ etc.”, diz a antropóloga Maia Sprandel, que integra o Grupo de Trabalho de Migrações Internacionais da Associação Brasileira de Antropologia. “Tal individualização não leva em consideração - ou não quer levar - que a potencial vítima tem uma história de vida construída coletivamente e que suas decisões de ir ou ficar são vivenciadas em contextos familiares ou afetivos”.

Para ela, o conceito de vítimas é utilizado porque é “mais palatável” para políticas públicas ao retirar do sujeito a condição de trabalhador e empreendedor que busca - ao se deslocar para outro lugar - melhorar suas condições de vida e dos seus familiares.

TANTAS HISTÓRIAS

Esse não é um dia muito bom para Dalila Figueiredo, presidente da ASBRAD. Lá fora aguarda com os seus filhos uma boliviana que era escravizada em uma fábrica têxtil de Guarulhos e espera voltar para seu país. Por email, Dalila também conversa com uma brasileira que está na Europa e teve sua filha internada em um abrigo pelas autoridades portuguesas. O caso, ainda não esclarecido, parece envolver tráfico.

As outras histórias que ela me conta, acumuladas em dez anos de trabalho, são pesadas. Histórias essas que ajudaram a construir uma metodologia de trabalho que acolha e seja menos inquiridora. Dalila conta casos de mulheres com estresse pós-traumático que só se comunicavam em espanhol e se esqueceram da vida antes de serem exploradas; de como as organizações criminosas promovem rodízios de pessoas para manter uma “novidade” a seus clientes; de mulheres que são alertadas da exploração, mas preferem correr o risco a permanecer no Brasil.

Um aspecto que tem mudado, nos últimos tempos, é a forma de aliciamento que tem sido pela internet. Segundo Dalila, o número de mães que vão até a sede da ASBRAD para consultá-la sobre propostas no exterior é muito grande. Dizem que a filha conheceu um cara na internet - ou, então, viu algum site – e tem uma proposta de emprego no exterior que banca passagem, moradia, alimentação e até roupas. Filme antigo.

“Eu digo para parar tudo! Pela nossa experiência, percebemos que a internet tem facilitado o trabalho desses aliciadores”. Essa facilidade tem assustado: em apenas um ano o SaferNet, entidade especializada no combate aos crimes e violações aos direitos humanos na internet,registrou 707 sites suspeitos de serem agências aliciadoras para o tráfico de pessoas. Por mais difícil que seja precisar, quem financia e lucra com estas atividades? “Quem está ganhando eu não sei”, responde-me. “Mas quem está perdendo
sei muito bem: são essas mulheres que eu recebo diariamente aqui”.

REDES CRIMINOSAS

Sim, muita gente está perdendo, inclusive a vida, como Verônica Crosati, que foi esfaqueada, em 2010, dentro de sua casa em Milão, na Itália.

Ela já havia procurado entidades que prestam ajuda a vítimas de exploração sexual e queria denunciar uma rede que a escravizara e supria cerca de metade do mercado milanês de prostituição. Esse também foi o destino de Letícia Peres Mourão, assassinada em dezembro de 2008 com um tiro na nuca, em Guará (DF). O crime foi encomendado por uma organização criminosa dona de seis prostíbulos na Espanha. Letícia havia denunciado o horror enfrentado durante os oito anos que passou nos bordéis espanhóis.

Essas são apenas duas histórias, porém, os dados sobre assassinatos cometidos por essas redes são subnotificados e a realidade pode ser mais perversa. Muitas vezes, para despistar, as organizações os maquiam, levantando hipóteses de suicídio, roubo e assassinato cometido por companheiros das vítimas.
Juliana Armede é coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de São Paulo, e aponta o interesse central dessas redes. “Lucro”, diz, veemente. “É só dinheiro, as pessoas não fazem diferença, o que importa é lucrar. O problema é como estão ganhando”. O lucro dessas redes, aliás, faz parte de uma matemática elementar do capitalismo, principalmente nas relações trabalhistas: quanto menor os custos e maior a possibilidade de exploração, melhor. Explorar, hoje em dia, é um efetivo instrumento do capital para facilitar a acumulação e concorrência em seu processo de expansão na economia globalizada.

“Esses altos lucros não se dão no deslocamento para o exterior - apesar do trabalhador pagar sempre de maneira superfaturada -, mas no período de trabalho”, afirma o pesquisador Marcel Hazeu, da Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia (Sodireitos), ONG que atua desde 2006 na defesa dos direitos humanos, em especial dos diretos sexuais e migratórios na Amazônia. “A não punição exemplar de quem explora, escraviza e trafica pessoas pesa no balanço de empregadores e exploradores em arriscar-se na ilegalidade, em vez de arcar com as despesas sociais e trabalhistas”.

Esses exploradores, que se articulam em rede para traficar pessoas do Brasil, mantêm aliciadores que, geralmente, conhecem a família e os amigos da vítima e utilizam isso para intimidação. Há também a participação das próprias vítimas como aliciadoras – muitas vezes para saldar suas dívidas. Armede explica que essa característica é devido a “uma questão territorial”. “Eles precisam de alguém que conheça o lugar e abra espaço. É a lei da oferta e procura”, diz, mas faz as ressalvas que as articulações dessas redes ainda são obscuras e que o Estado não está totalmente organizado para enfrentá-las.

Outro fato importante é que esses aliciadores têm contato, também, com outras redes internacionais: “O crime não é informal, é organizado, ninguém manda alguém para Europa sem contatar alguém lá”, aponta Rodrigo Vitória, oficial da Área de Governança e Justiça do UNODC. “As quadrilhas são organizadas e criam ramificações em vários países para cooptar pessoas”.

Mas um grande desafio para a Polícia Federal é a corrupção e a falta de informações oficiais, o que dificulta identificar todos os envolvidos. Estela Scandola, representante do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, acredita que impera uma visão restrita sobre o problema, o que dificultaria a responsabilização de todos os envolvidos. Ela também questiona a responsabilidade da cadeia produtiva “honesta” que utiliza o tráfico para se manter.

“Quem determina o perfil de pessoas que vão ser traficadas é a demanda, ou seja, se é para sexo, para trabalho doméstico, para trabalho temporário etc. A rede de traficantes trabalha para esta demanda. Porém, a legislação é focalista e, com isso, quem lucra com o tráfico de pessoas tem pouca ou nenhuma responsabilização no nosso atual sistema”. Ou seja: interessa a muitos a manutenção desse crime, mas as denúncias, geralmente, acabam na penalização individualizada dos acusados. Mas e quando o Estado e suas políticas sociais e econômicas têm tanta responsabilidade quanto esses criminosos?

GLOBALIZAÇÃO

A responsabilidade existe, afinal, precisa-se manter a lucratividade e a exclusão social, disfarçados no discurso de globalização. As transformações do capitalismo na década de 1970 promoveram, de certa forma, o aumento da precarização do trabalho, da terceirização, da instabilidade contratual e do desmonte da organização da classe trabalhadora.

Quando se olha para a agressividade do mercado e a necessidade da oferta de trabalho ter o menor custo em sua relação de troca de capital, nota-se que o crescimento do tráfico de pessoas - algo que não é novo na história, mas que agora possui outra face - é um produto desse mundo globalizado, em que a força de trabalho tem que ser super aproveitada.

“A globalização rebate de forma diferenciada na questão do gênero e as mulheres estão sem nenhum tipo de proteção. Forma-se, então, um corredor de migrações irregulares com explorações de diferentes formas, e uma delas é no mercado do sexo”, afirma Leal. Mas e se as políticas transnacionais forem apenas um pretexto de países centrais para conter o fluxo migratório? Imagine a situação desses países que passam pela maior crise financeira desde a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929. Empresas estão falindo, outras demitindo em massa e algumas suspendendo direitos trabalhistas.

E, ainda, há um contingente de pessoas vindo de países periféricos em busca de melhores oportunidades de empregos e que, é claro, vão usufruir do serviço social do país e, para esses países, vão acarretar mais problemas. Algumas medidas não tiveram boa repercussão, não que esses países se importem. Um exemplo foi a Diretiva do Retorno, mais conhecida por “Diretiva da Vergonha”, aprovada pela União Europeia que discrimina oito milhões de imigrantes indocumentados e cria condições para expulsá-los.

Então, sob a justificativa de proteção aos direitos humanos, surge uma solução que não pega tão mal: alegar que esse fluxo migratório pode estar sendo usado para ser explorado por organizações criminosas. “É uma política higienista que criminaliza os indivíduos e as atividades de prostituição”, afirma Leal. “É o controle social dos corpos - reprimindo para estabelecer a ordem e o equilíbrio da sociedade - para um desenvolvimento voltado para as classes conservadoras”.

Sprandel destaca que essa política surge, nos últimos anos, em um contexto de restrição à imigração de trabalhadores na Europa e nos EUA, o que os isentaria de pautarem discussões mais urgentes, como a dos direitos dos migrantes. “Por que, enquanto as políticas públicas para atender às demandas dos migrantes têm se arrastado há décadas, a agenda antitráfico rapidamente mobilizou as estruturas de poder e da sociedade civil, resultando numa política e num plano de enfrentamento que já está em vias de aprovação de sua segunda edição?”, se pergunta.

Para a pesquisadora, é importante que o Brasil possa dialogar e não simplesmente “se render” a abordagens hegemônicas de agendas internacionais. “Corremos o risco de dissipar energias e experiências acumuladas, tornando a bem intencionada defesa dos direitos humanos numa pauta vazia e referida a sujeitos que sequer irão se posicionar, por serem vítimas. A temática do tráfico de pessoas precisa ser colocada em seu devido lugar. É apenas uma pequena parte de uma realidade maior, referente aos desafios da mobilidade humana em nosso período histórico”, diz.

Pergunto quais políticas migratórias seriam necessárias para atenuar o tráfico de pessoas e outros problemas decorrentes de políticas migratórias antiquadas e conservadoras. “Uma que garanta a mobilidade humana e o os direitos dos trabalhadores migrantes e suas famílias. Simples assim”, diz ela.

TRÁFICO INTERNO

Se a agenda antitráfico internacional pode ser uma jogada para maquiar políticas higienistas e antimigratórias de países centrais, também pode esconder a realidade do tráfico interno dentro do próprio Brasil.

Ou você nunca notou a quantidade de crianças no litoral abordando solitários senhores grisalhos; ou nas pessoas de outras regiões do país que são deslocadas para abastecer o mercado sexual das grandes metrópoles; ou nas que são levadas para beira de rodovias de alta circulação de cargas, áreas com boom industrial e ao redor de projetos desenvolvimentistas do governo?

O tráfico interno é debatido há pouco tempo no país. Em 2000, a primeira Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual (PETRAF) indicou as rotas desse crime. O Código Penal brasileiro só passou a criminalizá-lo, explicitamente, em março de 2005. Antes, só o internacional era reconhecido e, por isso, ainda hoje, conta com mais visibilidade em função de estudos, pesquisas, denúncias e atuação do poder público e de movimentos sociais.

Um dos motivos do “silêncio” em relação ao tema é que debater a exploração no exterior lança a responsabilidade e a culpa fora do território nacional sem questionar as contradições e os problemas internos.

“Denunciar o tráfico e suas raízes, na maioria das vezes, significa denunciar as próprias políticas públicas que promovem as condições para sua existência; e isso colocaria o Brasil em situação vexatória diante dos demais países”, afirma Scandola. Para ela, o governo brasileiro teme borrar sua imagem de aceitação ao falar do tráfico interno. “E muitos, ainda, ficam ofendidos, dizendo que estamos inventando situações”, lamenta.

Um aspecto problemático desse crime, que é apontado como “situação inventada”, são as obras de grande porte - muitas feitas com dinheiro do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] –, que atraem essas redes criminosas em busca de um mercado consumidor rentável. O problema sequer é mencionado em relatórios socioambientais exigidos pelo governo.

As cidades que abrigam grandes obras como a Usina de Belo Monte (PA), a construção da Ferronorte (PE) ou empreendimentos agrominerais e industriais movimentam muita grana e recebem grande contingente de pessoas, porém com um custo: o tráfico de pessoas para trabalho forçado e exploração sexual. Em alguns casos, como na construção das usinas de Jirau e Santo Antônio, em Porto Velho (RO), cerca de 100 mil operários foram à região em busca de empregos.

Esse desenvolvimento também atrai estrangeiros em busca de melhores oportunidades de emprego, principalmente, em regiões de fronteira, com entrada de muitos bolivianos, paraguaios, peruanos, haitianos, surinameses e guianenses. Como falta infraestrutura social em certas regiões desses países, eles são aliciados para o serem explorados a um custo muito baixo e, ainda, sem direitos trabalhistas ou oportunidade de denúncia, já que estão ilegais no país e temem serem deportados.

“É difícil apontar e definir as redes criminosas porque as obras são implementadas por grandes empresas e consórcios e com apoio do Governo. Juntos, atuam de forma ilegal em relação à legislação ambiental, de respeito a terras indígenas e direitos trabalhistas, além de omissão de responsabilidade pelos impactos sociais”, aponta Hazeu.

E continua: “A terceirização dessas grandes obras - através de empreiteiras - estimula a organização do trabalho através de lógicas do tráfico de pessoas. O próprio deslocamento forçado da população local leva a vulnerabilidades extremas”. Para Hazeu, é criminosa a atitude do governo em minimizar os impactos sociais da implementação dessas grandes obras.

“Vivo num estado, Mato Grosso do Sul, em que a migração está no cotidiano de quem quer ver, mas é comum gestores públicos não reconhecerem a existência de migrantes”, conta Scandola. “Eles falam, primeiro, da ilegalidade e da necessária atuação de controle dos fluxos migratórios e, somente depois de alguma ação política de defesa, falam dos direitos e, ainda assim, como peso sobre as políticas sociais”. Já Sprandel acredita que se deve tomar um cuidado especial nessas reivindicações. “Cobrar do governo e da Polícia Federal maior atuação nessa área seria desastroso para a prostituição autônoma, que sempre se caracterizou pela mobilidade”, afirma. “Se o tráfico é para trabalho escravo ou trabalho doméstico, penso que a subnotificação tem a ver com a naturalização, em nossa sociedade, destas modalidades de trabalho”. Então, como construir políticas públicas, plurais, que garantam a mobilidade migratória e combatam redes criminosas de tráfico de pessoas?

POLÍTICAS PÚBLICAS

A partir da aprovação, em 2000, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado - mais conhecida como Convenção de Palermo - e seus Protocolos Adicionais, o mundo passou a contar com instrumentos para operacionalizar a cooperação jurídica internacional. No Brasil, ela só foi promulgada quatro anos depois.

De acordo com a Convenção, as pessoas aliciadas devem ser tratadas como vítimas de tráfico e receber proteção especial das autoridades dos países envolvidos. Mas, segundo alguns relatórios da Polícia Federal, os brasileiros detidos são tratados como criminosos e deportados como imigrantes indocumentados. Isso mostra que os países receptores não estão preocupados com o sofrimento e a violação dos direitos das pessoas traficadas, ao contrário, querem puni-las e expulsá-las.

Em outubro de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promulgou, também, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e organizou diversas iniciativas no âmbito do governo federal em torno desse tema, como os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e os Postos de Atendimento. Essas ações visam articular diversos segmentos da sociedade civil e ocupar um espaço na esfera pública para pautar essas discussões.

Porém, na época da implementação dessas medidas, o governo brasileiro estava sendo pressionado a elaborar uma política para brasileiros no exterior. Além disso, estava em execução o Plano Nacional de Enfrentamento à Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes e o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. O termo “tráfico de pessoas” surge, então, como maneira de unificar todos esses planos e medidas. Agora o país caminha para o segundo Plano Nacional, que deve ser lançado ainda esse ano. Para Sprandel, o segundo Plano só conseguirá prosperar se “garantir esse caráter protetor do trabalhador migrante, regular ou irregular, traficado ou apenas explorado, prostituta ou peão”.

Para ela, as políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas só terão efeito se as políticas econômicas e de migração estiverem em consonância, ao garantir acesso a direitos civis e sociais e oferecer às pessoas a real escolha de permanecer num lugar ou migrar. Um fato que é apontado como desafio às políticas públicas de enfrentamento ao tráfico para exploração sexual é a legislação brasileira, que não diferencia a prostituição forçada da voluntária. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) tenta articular uma proposta para que a prostituição seja exercida de forma autônoma e que autorize o funcionamento de casas de prostituição, hoje proibido no Código Penal.

Quando se pensa na prostituição como economia, ela é uma indústria altamente organizada e interconectada, gera um número considerável de empregos, promove a circulação de capital e, ainda, é utilizada por certos grupos da população para lidar com a pobreza e compensar a ausência de políticas sociais. Segundo essa proposta, regulamentá-la seria a melhor opção a ser tomada por coibir a ação de grupos criminosos nesse meio. Porém, esse é um debate acalorado entre grupos feministas e longe de chegar a um consenso. De um lado, há a linha de pensamento abolicionista que defende que a prostituição é, em si, abuso, fruto da violência de gênero e mercantiliza o corpo feminino. O combate ao tráfico de mulheres, portanto, deveria ser feito mediante o combate à própria prostituição.

Outros não a condenam como violência inerente contra as mulheres e defendem a autonomia das trabalhadoras do sexo, condenando somente as condições de exploração que as mulheres possam ser submetidas. Para eles, a prostituição deve ser tratada como outras profissões com déficits de direitos e que, ao distingui-la de outros trabalhos, reforça a marginalização das prostitutas. “Essas pessoas precisam de proteção, são assassinadas antes de conseguirem denunciar. Além disso, é preciso regulamentar o mercado do sexo e isso depende de uma reorganização profunda dentro do Judiciário”, afirma Leal.

Por outro lado, Teresi destaca que a legalização da prostituição não significa acabar com a exploração sexual, muito menos com o tráfico de pessoas. Em abril desse ano foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas no Brasil, criada pelo presidente da Câmara, Marcos Maia (PT-SP). A intenção é apurar casos de desaparecimento de pessoas, entre 2003 e 2011, e o tráfico para comércio internacional de órgãos, adoção internacional ilegal, prostituição e trabalho escravo. “A CPI poderá produzir um bom relatório, principalmente se não assumir temores antiprostituição e se trabalhar a temática do tráfico de pessoas dentro do mundo do trabalho, e não como questão criminal”, afiança Sprandel.

E, claro, tratar dessas questões significa repensar o crescimento econômico brasileiro que, isolado de outras políticas que promovam a qualidade do emprego, é insuficiente e impulsiona o fluxo migratório em direção a supostas oportunidades para melhorar de vida. E é aí que se desenvolvem redes criminosas para mercantilizar seres humanos e abrir espaço para a migração irregular, o contrabando de migrantes e o tráfico de pessoas.
Fonte:  Rôney Rodrigues em Caros Amigos

Nenhum comentário: