Claro, ela não quer mais relembrar essa história. Diz que
pretende riscar esse capítulo de sua biografia e não adianta espicaçar
sentimentos, colocar sadicamente o dedo em sua ferida e perguntar: “E aí, como
é ser vítima do tráfico de pessoas? ”Ela foi jurada de morte por uma
organização criminosa e se recusa a entrar no programa de proteção às
testemunhas, não aceita ir para “um lugar estranho de novo”, receber outra
identidade e esquecer a vida que, agora, tenta reconstruir.
Reportagem publicada na edição 183 de Caros Amigos
Para ela, de
“prisão” já bastou a que viveu por quase um ano na Espanha. É difícil ter uma
dimensão palpável de como seus direitos foram violados, então tente se colocar
no lugar dela. Você vem de um casamento malsucedido em que apanhava diariamente
e está sem emprego e grana no bolso. As coisas estão difíceis e você descobre
que dá para descolar uma grana se prostituindo, 30 a 40 reais por programa,
mais do que qualquer emprego paga em sua paupérrima região.
Surge um cara que faz promessas, é gentil e reacende seus
sonhos cinderelescos. Ele conta sobre um mundo distante que você só conhece
pela televisão, a Espanha, onde se recebe em euro e é a terra das oportunidades.
Diz isso com as passagens na mão e vocês se mandam para lá.
Então você descobre que ele faz parte de uma rede criminosa
que trafica pessoas para explorá-las sexualmente. O seu passaporte é retido,
argumentam que você contraiu uma altíssima dívida e não pode sair enquanto não
pagá-la, sendo obrigada a manter mais de 10 relações sexuais por dia e não
importa que esteja cansada ou mesmo menstruada. Você não pode fugir, não pode
gritar, afinal, seu ex-príncipe pode matá-la e conhece a sua família.
Você engravida e se torna um peso que pode comprometer os
lucros. A dona do prostíbulo quer que você aborte. Esse inferno dantesco se
arrasta até que a polícia espanhola consegue resgatá-la e a deporta para o
Brasil. Você está chegando ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. E agora, o
que você faz? Primeiro, saber que você não é única e está longe de ser a
última.
NÚMEROS
Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime (UNODC), 2,4 milhões de pessoas são traficadas, anualmente, para o
trabalho forçado. A exploração sexual representa quase 80% dos casos detectados
– seguido do trabalho escravo e do comércio ilegal de órgãos. De cada cinco
vítimas, quatro são mulheres ou meninas e metade das pessoas traficadas são
menores de idade. O lucro estimado dessas organizações criminosas, ainda
segundo o UNODC, é de US$ 32 bilhões por ano, o que coloca o tráfico de pessoas
como a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, atrás apenas do
tráfico de drogas e armas. Alguns pesquisadores afirmam que, ultimamente, esse
crime tem recebido mais investimentos, pois a natureza de seu lucro não se
esgota: se drogas e armas têm vendas únicas, uma pessoa pode ser vendida e
revendida infinitas vezes.
Um Levantamento da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), baseado no Relatório Nacional sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e
Adolescentes para o Propósito de Exploração Sexual (publicado em 2002), mapeou
241 rotas de tráfico: 110 dentro do Brasil e 131 internacionais. As ações estão
concentradas em 520 municípios. Os principais destinos no exterior são para
Europa – especialmente Espanha, Portugal, França e Itália – e Estados Unidos.
Segundo o Ministério Público e a Polícia Federal, cerca de
70 mil brasileiros são traficados, anualmente, para o exterior, correspondendo
a 10% dos lucros mundiais. Goiás ocupa a primeira posi-ção no ranking nacional
de tráfico de pessoas, de acordo com os inquéritos apurados, com 18,6% dos 750
casos registrados no país na última década. Isso com uma população sete vezes
menor que a de São Paulo, que ocupa a segunda posição, com 12,8% dos
inquéritos, seguido por Minas Gerais (9%) e Rio de Janeiro (7%).
São muitos os brasileiros traficados, por isso, o Aeroporto
Internacional de Guarulhos, ponto de saída e entrada da maioria das pessoas
aliadas, conta com Posto de Atendimento Humanizado aos Migrantes, uma
iniciativa da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da
Juventude (ASBRAD) em conjunto com a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) e o
patrocínio da ONG holandesa Cordaid. As atividades do Posto incluem acolher
pessoas vítimas desse crime.
São muitas as situações de exploração de prostitutas e
travestis em seu ambiente de trabalho, porém nem toda exploração caracteriza
tráfico. Alguém que viaje de um canto ao outro do país e ao exterior para
exercer sua profissão é um trabalhador migrante. Aqueles que não
podem deixar seus postos de trabalho por endividamentos,
retenção de documentos ou violência, esses, sim, são vítimas de tráfico.
No tráfico de pessoas, a vítima perde sua característica
ontológica de ser humano e passa a ser uma mercadoria e sua existência serve
apenas ao lucro. A escolha quase sempre se dá por indivíduos com certa
vulnerabilidade social – seja de condições migratórias, gênero, étnicoraciais
ou econômicos.
A pesquisadora Maria Lúcia Leal é coordenadora do Grupo de
Pesquisa sobre Tráfico de Pessoas, Violência e Exploração Sexual de Mulheres
Crianças e Adolescentes (VIOLES), ligado a Universidade de Brasília (UnB), e o
responsável pelo primeiro estudo sobre o assunto no país, que deu forma ao
plano e às políticas de enfrentamento ao tráfico de seres humanos no Brasil.
Segundo ela, as principais vítimas recrutadas pelas redes são mulheres entre 17
e 25 anos, de classes populares e baixa inclusão nas políticas públicas,
especialmente, na educação. Têm trabalhos precários ou informais. Geralmente
foram casadas, têm filhos e ajudam financeiramente a família. Em alguns casos,
como as famílias também são muito vulneráveis, os próprios pais vendem suas
crianças.
“Essas mulheres criam uma expectativa de saltar de vida e
precisam do dinheiro. Algumas ficam até pagar a dívida para poder juntar mais
um pouquinho e não voltar se sentindo uma fracassada”, salienta a professora da
Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC), Verônica
Teresi, que passou dois anos na Espanha pesquisando a vida dessas mulheres.
“Quando falamos em vulnerabilidade – o que não significa que
elas são frágeis, ao contrário, são fortes por tudo que passam – o responsável
é o Estado, que é omisso e vagarosos na constituição dos direitos e da
cidadania das mulheres”, denuncia Leal. Para alguns estudiosos do tema, é
preciso ressalvas quanto ao tratamento dessas pessoas.
Vitimizar seria, para eles, retirar a autonomia dos sujeitos
e transformá-los em seres incapazes de agência. Além disso, a polarização
“vítima versus algoz” assumiria um tom moral que não auxilia no seu
entendimento, pelo contrário, só reduziria a complexidade do problema. “Há um
conservadorismo inerente ao discurso de ‘vítima idealizada’, ao mesmo tempo em
que os responsabiliza individualmente pelos atos ao ‘deixar-se aliciar’,
‘denunciar ou não denunciar’ etc.”, diz a antropóloga Maia Sprandel, que
integra o Grupo de Trabalho de Migrações Internacionais da Associação
Brasileira de Antropologia. “Tal individualização não leva em consideração - ou
não quer levar - que a potencial vítima tem uma história de vida construída
coletivamente e que suas decisões de ir ou ficar são vivenciadas em contextos
familiares ou afetivos”.
Para ela, o conceito de vítimas é utilizado porque é “mais
palatável” para políticas públicas ao retirar do sujeito a condição de
trabalhador e empreendedor que busca - ao se deslocar para outro lugar -
melhorar suas condições de vida e dos seus familiares.
TANTAS HISTÓRIAS
Esse não é um dia muito bom para Dalila Figueiredo,
presidente da ASBRAD. Lá fora aguarda com os seus filhos uma boliviana que era
escravizada em uma fábrica têxtil de Guarulhos e espera voltar para seu país.
Por email, Dalila também conversa com uma brasileira que está na Europa e teve
sua filha internada em um abrigo pelas autoridades portuguesas. O caso, ainda
não esclarecido, parece envolver tráfico.
As outras histórias que ela me conta, acumuladas em dez anos
de trabalho, são pesadas. Histórias essas que ajudaram a construir uma
metodologia de trabalho que acolha e seja menos inquiridora. Dalila conta casos
de mulheres com estresse pós-traumático que só se comunicavam em espanhol e se
esqueceram da vida antes de serem exploradas; de como as organizações
criminosas promovem rodízios de pessoas para manter uma “novidade” a seus
clientes; de mulheres que são alertadas da exploração, mas preferem correr o risco
a permanecer no Brasil.
Um aspecto que tem mudado, nos últimos tempos, é a forma de
aliciamento que tem sido pela internet. Segundo Dalila, o número de mães que
vão até a sede da ASBRAD para consultá-la sobre propostas no exterior é muito
grande. Dizem que a filha conheceu um cara na internet - ou, então, viu algum
site – e tem uma proposta de emprego no exterior que banca passagem, moradia,
alimentação e até roupas. Filme antigo.
“Eu digo para parar tudo! Pela nossa experiência, percebemos
que a internet tem facilitado o trabalho desses aliciadores”. Essa facilidade
tem assustado: em apenas um ano o SaferNet, entidade especializada no combate
aos crimes e violações aos direitos humanos na internet,registrou 707 sites
suspeitos de serem agências aliciadoras para o tráfico de pessoas. Por mais
difícil que seja precisar, quem financia e lucra com estas atividades? “Quem
está ganhando eu não sei”, responde-me. “Mas quem está perdendo
sei muito bem: são essas mulheres que eu recebo diariamente
aqui”.
REDES CRIMINOSAS
Sim, muita gente está perdendo, inclusive a vida, como
Verônica Crosati, que foi esfaqueada, em 2010, dentro de sua casa em Milão, na
Itália.
Ela já havia procurado entidades que prestam ajuda a vítimas
de exploração sexual e queria denunciar uma rede que a escravizara e supria
cerca de metade do mercado milanês de prostituição. Esse também foi o destino
de Letícia Peres Mourão, assassinada em dezembro de 2008 com um tiro na nuca,
em Guará (DF). O crime foi encomendado por uma organização criminosa dona de
seis prostíbulos na Espanha. Letícia havia denunciado o horror enfrentado
durante os oito anos que passou nos bordéis espanhóis.
Essas são apenas duas histórias, porém, os dados sobre
assassinatos cometidos por essas redes são subnotificados e a realidade pode
ser mais perversa. Muitas vezes, para despistar, as organizações os maquiam,
levantando hipóteses de suicídio, roubo e assassinato cometido por companheiros
das vítimas.
Juliana Armede é coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas de São Paulo, e aponta o interesse central dessas redes.
“Lucro”, diz, veemente. “É só dinheiro, as pessoas não fazem diferença, o que
importa é lucrar. O problema é como estão ganhando”. O lucro dessas redes,
aliás, faz parte de uma matemática elementar do capitalismo, principalmente nas
relações trabalhistas: quanto menor os custos e maior a possibilidade de
exploração, melhor. Explorar, hoje em dia, é um efetivo instrumento do capital
para facilitar a acumulação e concorrência em seu processo de expansão na
economia globalizada.
“Esses altos lucros não se dão no deslocamento para o
exterior - apesar do trabalhador pagar sempre de maneira superfaturada -, mas
no período de trabalho”, afirma o pesquisador Marcel Hazeu, da Sociedade de
Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia (Sodireitos), ONG que atua desde 2006
na defesa dos direitos humanos, em especial dos diretos sexuais e migratórios
na Amazônia. “A não punição exemplar de quem explora, escraviza e trafica
pessoas pesa no balanço de empregadores e exploradores em arriscar-se na
ilegalidade, em vez de arcar com as despesas sociais e trabalhistas”.
Esses exploradores, que se articulam em rede para traficar
pessoas do Brasil, mantêm aliciadores que, geralmente, conhecem a família e os
amigos da vítima e utilizam isso para intimidação. Há também a participação das
próprias vítimas como aliciadoras – muitas vezes para saldar suas dívidas.
Armede explica que essa característica é devido a “uma questão territorial”.
“Eles precisam de alguém que conheça o lugar e abra espaço. É a lei da oferta e
procura”, diz, mas faz as ressalvas que as articulações dessas redes ainda são
obscuras e que o Estado não está totalmente organizado para enfrentá-las.
Outro fato importante é que esses aliciadores têm contato,
também, com outras redes internacionais: “O crime não é informal, é organizado,
ninguém manda alguém para Europa sem contatar alguém lá”, aponta Rodrigo
Vitória, oficial da Área de Governança e Justiça do UNODC. “As quadrilhas são
organizadas e criam ramificações em vários países para cooptar pessoas”.
Mas um grande desafio para a Polícia Federal é a corrupção e
a falta de informações oficiais, o que dificulta identificar todos os
envolvidos. Estela Scandola, representante do Comitê Nacional de Enfrentamento
à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, acredita que impera uma
visão restrita sobre o problema, o que dificultaria a responsabilização de
todos os envolvidos. Ela também questiona a responsabilidade da cadeia
produtiva “honesta” que utiliza o tráfico para se manter.
“Quem determina o perfil de pessoas que vão ser traficadas é
a demanda, ou seja, se é para sexo, para trabalho doméstico, para trabalho
temporário etc. A rede de traficantes trabalha para esta demanda. Porém, a
legislação é focalista e, com isso, quem lucra com o tráfico de pessoas tem
pouca ou nenhuma responsabilização no nosso atual sistema”. Ou seja: interessa
a muitos a manutenção desse crime, mas as denúncias, geralmente, acabam na
penalização individualizada dos acusados. Mas e quando o Estado e suas
políticas sociais e econômicas têm tanta responsabilidade quanto esses
criminosos?
GLOBALIZAÇÃO
A responsabilidade existe, afinal, precisa-se manter a
lucratividade e a exclusão social, disfarçados no discurso de globalização. As
transformações do capitalismo na década de 1970 promoveram, de certa forma, o
aumento da precarização do trabalho, da terceirização, da instabilidade
contratual e do desmonte da organização da classe trabalhadora.
Quando se olha para a agressividade do mercado e a
necessidade da oferta de trabalho ter o menor custo em sua relação de troca de
capital, nota-se que o crescimento do tráfico de pessoas - algo que não é novo
na história, mas que agora possui outra face - é um produto desse mundo
globalizado, em que a força de trabalho tem que ser super aproveitada.
“A globalização rebate de forma diferenciada na questão do
gênero e as mulheres estão sem nenhum tipo de proteção. Forma-se, então, um
corredor de migrações irregulares com explorações de diferentes formas, e uma
delas é no mercado do sexo”, afirma Leal. Mas e se as políticas transnacionais
forem apenas um pretexto de países centrais para conter o fluxo migratório?
Imagine a situação desses países que passam pela maior crise financeira desde a
quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929. Empresas estão falindo,
outras demitindo em massa e algumas suspendendo direitos trabalhistas.
E, ainda, há um contingente de pessoas vindo de países
periféricos em busca de melhores oportunidades de empregos e que, é claro, vão
usufruir do serviço social do país e, para esses países, vão acarretar mais
problemas. Algumas medidas não tiveram boa repercussão, não que esses países se
importem. Um exemplo foi a Diretiva do Retorno, mais conhecida por “Diretiva da
Vergonha”, aprovada pela União Europeia que discrimina oito milhões de
imigrantes indocumentados e cria condições para expulsá-los.
Então, sob a justificativa de proteção aos direitos humanos,
surge uma solução que não pega tão mal: alegar que esse fluxo migratório pode
estar sendo usado para ser explorado por organizações criminosas. “É uma
política higienista que criminaliza os indivíduos e as atividades de
prostituição”, afirma Leal. “É o controle social dos corpos - reprimindo para
estabelecer a ordem e o equilíbrio da sociedade - para um desenvolvimento
voltado para as classes conservadoras”.
Sprandel destaca que essa política surge, nos últimos anos,
em um contexto de restrição à imigração de trabalhadores na Europa e nos EUA, o
que os isentaria de pautarem discussões mais urgentes, como a dos direitos dos
migrantes. “Por que, enquanto as políticas públicas para atender às demandas
dos migrantes têm se arrastado há décadas, a agenda antitráfico rapidamente mobilizou
as estruturas de poder e da sociedade civil, resultando numa política e num
plano de enfrentamento que já está em vias de aprovação de sua segunda
edição?”, se pergunta.
Para a pesquisadora, é importante que o Brasil possa
dialogar e não simplesmente “se render” a abordagens hegemônicas de agendas
internacionais. “Corremos o risco de dissipar energias e experiências
acumuladas, tornando a bem intencionada defesa dos direitos humanos numa pauta
vazia e referida a sujeitos que sequer irão se posicionar, por serem vítimas. A
temática do tráfico de pessoas precisa ser colocada em seu devido lugar. É
apenas uma pequena parte de uma realidade maior, referente aos desafios da
mobilidade humana em nosso período histórico”, diz.
Pergunto quais políticas migratórias seriam necessárias para
atenuar o tráfico de pessoas e outros problemas decorrentes de políticas
migratórias antiquadas e conservadoras. “Uma que garanta a mobilidade humana e
o os direitos dos trabalhadores migrantes e suas famílias. Simples assim”, diz
ela.
TRÁFICO INTERNO
Se a agenda antitráfico internacional pode ser uma jogada
para maquiar políticas higienistas e antimigratórias de países centrais, também
pode esconder a realidade do tráfico interno dentro do próprio Brasil.
Ou você nunca notou a quantidade de crianças no litoral
abordando solitários senhores grisalhos; ou nas pessoas de outras regiões do
país que são deslocadas para abastecer o mercado sexual das grandes metrópoles;
ou nas que são levadas para beira de rodovias de alta circulação de cargas,
áreas com boom industrial e ao redor de projetos desenvolvimentistas do
governo?
O tráfico interno é debatido há pouco tempo no país. Em
2000, a primeira Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes
para Fins de Exploração Sexual (PETRAF) indicou as rotas desse crime. O Código
Penal brasileiro só passou a criminalizá-lo, explicitamente, em março de 2005.
Antes, só o internacional era reconhecido e, por isso, ainda hoje, conta com
mais visibilidade em função de estudos, pesquisas, denúncias e atuação do poder
público e de movimentos sociais.
Um dos motivos do “silêncio” em relação ao tema é que
debater a exploração no exterior lança a responsabilidade e a culpa fora do
território nacional sem questionar as contradições e os problemas internos.
“Denunciar o tráfico e suas raízes, na maioria das vezes,
significa denunciar as próprias políticas públicas que promovem as condições
para sua existência; e isso colocaria o Brasil em situação vexatória diante dos
demais países”, afirma Scandola. Para ela, o governo brasileiro teme borrar sua
imagem de aceitação ao falar do tráfico interno. “E muitos, ainda, ficam
ofendidos, dizendo que estamos inventando situações”, lamenta.
Um aspecto problemático desse crime, que é apontado como
“situação inventada”, são as obras de grande porte - muitas feitas com dinheiro
do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] –, que atraem
essas redes criminosas em busca de um mercado consumidor rentável. O problema
sequer é mencionado em relatórios socioambientais exigidos pelo governo.
As cidades que abrigam grandes obras como a Usina de Belo
Monte (PA), a construção da Ferronorte (PE) ou empreendimentos agrominerais e
industriais movimentam muita grana e recebem grande contingente de pessoas,
porém com um custo: o tráfico de pessoas para trabalho forçado e exploração
sexual. Em alguns casos, como na construção das usinas de Jirau e Santo
Antônio, em Porto Velho (RO), cerca de 100 mil operários foram à região em
busca de empregos.
Esse desenvolvimento também atrai estrangeiros em busca de
melhores oportunidades de emprego, principalmente, em regiões de fronteira, com
entrada de muitos bolivianos, paraguaios, peruanos, haitianos, surinameses e
guianenses. Como falta infraestrutura social em certas regiões desses países,
eles são aliciados para o serem explorados a um custo muito baixo e, ainda, sem
direitos trabalhistas ou oportunidade de denúncia, já que estão ilegais no país
e temem serem deportados.
“É difícil apontar e definir as redes criminosas porque as
obras são implementadas por grandes empresas e consórcios e com apoio do
Governo. Juntos, atuam de forma ilegal em relação à legislação ambiental, de
respeito a terras indígenas e direitos trabalhistas, além de omissão de
responsabilidade pelos impactos sociais”, aponta Hazeu.
E continua: “A terceirização dessas grandes obras - através
de empreiteiras - estimula a organização do trabalho através de lógicas do
tráfico de pessoas. O próprio deslocamento forçado da população local leva a
vulnerabilidades extremas”. Para Hazeu, é criminosa a atitude do governo em
minimizar os impactos sociais da implementação dessas grandes obras.
“Vivo num estado, Mato Grosso do Sul, em que a migração está
no cotidiano de quem quer ver, mas é comum gestores públicos não reconhecerem a
existência de migrantes”, conta Scandola. “Eles falam, primeiro, da ilegalidade
e da necessária atuação de controle dos fluxos migratórios e, somente depois de
alguma ação política de defesa, falam dos direitos e, ainda assim, como peso
sobre as políticas sociais”. Já Sprandel acredita que se deve tomar um cuidado
especial nessas reivindicações. “Cobrar do governo e da Polícia Federal maior
atuação nessa área seria desastroso para a prostituição autônoma, que sempre se
caracterizou pela mobilidade”, afirma. “Se o tráfico é para trabalho escravo ou
trabalho doméstico, penso que a subnotificação tem a ver com a naturalização,
em nossa sociedade, destas modalidades de trabalho”. Então, como construir
políticas públicas, plurais, que garantam a mobilidade migratória e combatam
redes criminosas de tráfico de pessoas?
POLÍTICAS PÚBLICAS
A partir da aprovação, em 2000, da Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado - mais conhecida como Convenção de Palermo - e
seus Protocolos Adicionais, o mundo passou a contar com instrumentos para
operacionalizar a cooperação jurídica internacional. No Brasil, ela só foi
promulgada quatro anos depois.
De acordo com a Convenção, as pessoas aliciadas devem ser
tratadas como vítimas de tráfico e receber proteção especial das autoridades
dos países envolvidos. Mas, segundo alguns relatórios da Polícia Federal, os
brasileiros detidos são tratados como criminosos e deportados como imigrantes
indocumentados. Isso mostra que os países receptores não estão preocupados com
o sofrimento e a violação dos direitos das pessoas traficadas, ao contrário,
querem puni-las e expulsá-las.
Em outubro de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
promulgou, também, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e
organizou diversas iniciativas no âmbito do governo federal em torno desse
tema, como os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e os Postos de
Atendimento. Essas ações visam articular diversos segmentos da sociedade civil
e ocupar um espaço na esfera pública para pautar essas discussões.
Porém, na época da implementação dessas medidas, o governo
brasileiro estava sendo pressionado a elaborar uma política para brasileiros no
exterior. Além disso, estava em execução o Plano Nacional de Enfrentamento à
Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes e o Plano Nacional para
a Erradicação do Trabalho Escravo. O termo “tráfico de pessoas” surge, então,
como maneira de unificar todos esses planos e medidas. Agora o país caminha
para o segundo Plano Nacional, que deve ser lançado ainda esse ano. Para
Sprandel, o segundo Plano só conseguirá prosperar se “garantir esse caráter
protetor do trabalhador migrante, regular ou irregular, traficado ou apenas
explorado, prostituta ou peão”.
Para ela, as políticas de enfrentamento ao tráfico de
pessoas só terão efeito se as políticas econômicas e de migração estiverem em
consonância, ao garantir acesso a direitos civis e sociais e oferecer às
pessoas a real escolha de permanecer num lugar ou migrar. Um fato que é
apontado como desafio às políticas públicas de enfrentamento ao tráfico para
exploração sexual é a legislação brasileira, que não diferencia a prostituição
forçada da voluntária. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) tenta articular
uma proposta para que a prostituição seja exercida de forma autônoma e que
autorize o funcionamento de casas de prostituição, hoje proibido no Código
Penal.
Quando se pensa na prostituição como economia, ela é uma
indústria altamente organizada e interconectada, gera um número considerável de
empregos, promove a circulação de capital e, ainda, é utilizada por certos
grupos da população para lidar com a pobreza e compensar a ausência de
políticas sociais. Segundo essa proposta, regulamentá-la seria a melhor opção a
ser tomada por coibir a ação de grupos criminosos nesse meio. Porém, esse é um
debate acalorado entre grupos feministas e longe de chegar a um consenso. De um
lado, há a linha de pensamento abolicionista que defende que a prostituição é,
em si, abuso, fruto da violência de gênero e mercantiliza o corpo feminino. O
combate ao tráfico de mulheres, portanto, deveria ser feito mediante o combate
à própria prostituição.
Outros não a condenam como violência inerente contra as
mulheres e defendem a autonomia das trabalhadoras do sexo, condenando somente
as condições de exploração que as mulheres possam ser submetidas. Para eles, a
prostituição deve ser tratada como outras profissões com déficits de direitos e
que, ao distingui-la de outros trabalhos, reforça a marginalização das
prostitutas. “Essas pessoas precisam de proteção, são assassinadas antes de
conseguirem denunciar. Além disso, é preciso regulamentar o mercado do sexo e
isso depende de uma reorganização profunda dentro do Judiciário”, afirma Leal.
Por outro lado, Teresi destaca que a legalização da
prostituição não significa acabar com a exploração sexual, muito menos com o
tráfico de pessoas. Em abril desse ano foi instalada uma Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas no Brasil, criada pelo presidente da
Câmara, Marcos Maia (PT-SP). A intenção é apurar casos de desaparecimento de
pessoas, entre 2003 e 2011, e o tráfico para comércio internacional de órgãos,
adoção internacional ilegal, prostituição e trabalho escravo. “A CPI poderá
produzir um bom relatório, principalmente se não assumir temores
antiprostituição e se trabalhar a temática do tráfico de pessoas dentro do
mundo do trabalho, e não como questão criminal”, afiança Sprandel.
E, claro, tratar dessas questões significa repensar o
crescimento econômico brasileiro que, isolado de outras políticas que promovam
a qualidade do emprego, é insuficiente e impulsiona o fluxo migratório em
direção a supostas oportunidades para melhorar de vida. E é aí que se
desenvolvem redes criminosas para mercantilizar seres humanos e abrir espaço
para a migração irregular, o contrabando de migrantes e o tráfico de pessoas.
Fonte: Rôney
Rodrigues em Caros Amigos
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