Jaci, em tupi, quer dizer “deusa-lua”, entidade protetora
dos amantes e da reprodução. Paraná quer dizer grande rio. Jaci Paraná é o nome
de um pequeno, pobre e empoeirado vilarejo de Porto Velho, onde a deusa
indígena deve estar tendo bastante trabalho. Jaci é o maior bordel a céu aberto
de Rondônia e talvez um dos maiores do país.
Tudo em Jaci gira em torno da prostituição.
São 44 pequenos cabarés construídos em casas feitas de
tábuas de madeira e telhas de fibra. É mais do que a soma de todos os mercados,
padarias e farmácias da região. A qualquer hora, do dia ou da noite, garotas de
programa se exibem na porta dos bares, vestidas em pequenos shorts jeans e tops
apertados, deixando as gordurinhas da barriga à vista.
Elas começaram a chegar de vários estados do país há três
anos, pouco antes da construção das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo
Antônio. Juntas, as obras empregam 35 mil trabalhadores, na grande maioria
homens, e formam a maior obra do PAC, o principal projeto de desenvolvimento de
infraestrutura do governo federal. A partir daí, Jaci virou a promessa do novo
Eldorado brasileiro, a terra das oportunidades — para homens e mulheres.
"A prostituição infantil é sutil. Dar um presente é
suficiente para dormir com uma menina" – Noelle Xavier, delegada
A sexta-feira seguinte ao dia 5 é a data mais aguardada do
mês em Jaci Paraná — a 30 quilômetros de Jirau e 90 de Santo Antônio, a vila
virou o polo dormitório dos trabalhadores. É quando os funcionários das obras
vão para os bares festejar as folgas do fim de semana com o pagamento no bolso.
Jogam sinuca e carteado, fumam, tomam cerveja e gastam boa parte do salário em
fichas de jukebox, que toca forró, brega e sertanejo em um volume que torna
impossível qualquer conversa.
Os hits são “Madri”, de Fernando e Sorocaba, e as músicas da
banda Calcinha Preta. Durante o dia, é possível encontrar homens vestidos com o
uniforme de trabalho, circulando nos bordéis. À noite, “os amigos” (como são
chamados pelas prostitutas) chegam nos bares de sorriso no rosto, banho tomado,
cabelo penteado, calça jeans, camiseta e, quase sempre, boné. Os cabarés e as
ruas de terra ficam lotados de homens, na maioria das vezes jovens. As meninas
chegam a fazer 15 programas na mesma noite e ganhar R$ 1 mil em algumas horas
de trabalho.
Elas dividem os ganhos com as cafetinas, donas dos bares,
que, em geral, são mulheres mais velhas com longa experiência na profissão.
Os bares costumam ter de duas a quatro funcionárias fixas: a
gerente e as outras ajudantes, que moram em cubículos de madeira nos fundos dos
cabarés, na beira da estrada. Os quartos são precários, construídos, muitas
vezes, sobre as fossas. O mau cheiro é permanente.
É parte do trabalho das prostitutas fazer com que os
clientes consumam durante o máximo de tempo possível antes do programa. Elas
conversam, sorriem, fumam, dançam, sentam no colo deles, antes de chegar ao
objetivo final.
Os preços em Jaci, aliás, estão inflacionados: uma cerveja
de garrafa custa R$ 5, uma sandália rasteirinha, R$ 80. Alguns clientes
frequentam os cabarés apenas como bar.
“Tem homem que quer só conversar. Eles vieram de longe e
ficam muito sozinhos. Tenho até de pedir pra eles irem embora”, diz Cláudia*,
uma morena de cabelos compridos, sorriso doce e olhos grandes. Ela tem 24 anos,
está grávida de cinco meses e pede para não ser identificada — a família não
sabe o que ela faz exatamente em Jaci. Ela diz que recebe R$ 3 mil mensais pelo
trabalho como gerente do bar e como prostituta, e mora de graça em um quarto de
dois metros quadrados nos fundos do boteco, onde nos recebeu. Assim que
entramos no quartinho, um amigo que n?o notou nossa presença a puxou pelo braço
para a cama. Ela rispidamente tirou a mão dele e ordenou que saísse. Ele obedeceu
rapidamente e ela, sorrindo, mas sem coragem de nos olhar nos olhos, esticou
uma pequena fronha limpa em cima do colchão sujo e florido, onde dorme e
trabalha.
Mãe de três filhos, dois meninos de 8 e 6 anos e uma menina
de 3, ela saiu pela primeira vez de Porto Velho há três meses em busca dos
ganhos de Jaci, famosos na região. Diz que faz programas para sustentar “os
meninos” e sonha com um emprego na usina.
O pai dos filhos mais velhos morreu assassinado há cinco
anos. “Até hoje não sei o motivo. Ele trabalhava numa fazenda por aqui.
Atiraram quando ele tava saindo pela porteira, de carro”, diz, com lágrimas nos
olhos.
“É o amor da minha vida. Tu quer saber se sinto saudade
dele? Ôxi, até hoje. Mas gosto de falar disso, não”.
Viúva, Cláudia se apaixonou pelo professor de biologia da
escola, com quem foi morar. Ele largou a mulher para ficar com a aluna e
tiveram uma filha.
“Digo que estudei, não digo que casei. Larguei a escola por
causa da bebê, mas durante todo o tempo que fiquei com ele só fazia estudar.
Fiz curso de digitação, de recepcionista.”
A paixão acabou, ele voltou para a ex-mulher e os cursos não
ajudaram Cláudia a encontrar um emprego na cidade. Foi quando ela engravidou de
um novo namorado. Ele contestou a paternidade e o namoro acabou.
Cláudia deixou os três filhos com a irmã e mudou-se para
Jaci. No começo de maio, quando a visitamos pela última vez, ela nos contou que
o pai do bebê renegado foi procurá-la no bordel. Deu um pequeno par de brincos
e disse que sentia saudade.
“Eu acho que gosto dele, mas não vou voltar agora só porque
ele quer. Mas, olhe, tem que gostar muito para vir me procurar nesse fim de
mundo, tem não?”.
Dentro dos cabarés, as cafetinas não costumam aceitar
prostitutas menores de idade. Nas ruas, no entanto, é possível encontrar
adolescentes circulando em trajes justinhos durante toda a noite.
Elas se concentram na boate do “reggae”, que apesar do nome
toca funk, e na “Esquina do Geladão”, onde há DJ e pista de dança. Nesses
lugares, elas bebem e dançam sensualmente rodeadas por homens. “A prostituição
infantil em Jaci é muito sutil. Não é ostensiva. Os homens presenteiam as
meninas com um tênis, um celular e isso é suficiente para que consigam dormir
com elas”, diz a delegada Noelle Xavier, da Delegacia de Proteção à Criança e
ao Adolescente de Porto Velho. Muitas vezes os pais das garotas são coniventes,
segundo Noelle, pois a miséria é o principal motivador da prostituição infantil
no vilarejo. “Já teve pai que veio tirar a filha da escola dizendo que estudo
não dá dinheiro e levou a menina para os bares”, diz Tarcísio Inácio Ramalho,
vice-diretor da escola estadual Maria de Nazaré dos Santos, onde estudam os
adolescentes de Jaci.
Mariane, 13, brincava de boneca até o ano passado, quando
perdeu a virgindade, engravidou e largou a escola
Além da prostituição, o tráfico também acontece à luz do
dia, principalmente nos bordéis, onde as próprias prostitutas vendem maconha,
cocaína e crack. Traficantes também rondam a corrutela de moto. O vilarejo fica
a 140 quilômetros da fronteira com a Bolívia. Essa proximidade colocou Jaci
dentro da rota de entrada da pasta de coca no país. “O consumo de drogas, que
já era alto, ficou ainda maior depois da chegada das usinas”, diz a conselheira
tutelar Ângela Fortes. Joana*, 43 anos, mora em Jaci e é mãe de três jovens.
Ela conta que tirou seu filho da cidade depois de ele ter se envolvido com
drogas, no ano passado.
“Não sei direito o que ele consumia, acho que era maconha
porque ele fumava e tinha um cheiro bem forte. Meu filho disse que era a
própria polícia quem vendia. Numa vingança, os policiais invadiram minha casa e
disseram que encontraram uma quantidade enorme de droga no quarto dele. Meu
mundo caiu. Criei meus filhos sozinha, o pai deles foi assassinado em uma briga
com traficantes. Quando soube que meu filho estava envolvido, vi o filme se
repetir na minha cabeça. Ele foi preso, mas depois inocentado na investigação.
Não tive coragem de trazê-lo de volta. Mandei meu menino para casa de parentes
em outro estado.”
Os filhos de Jirau
Enquanto o tráfico é a grande ameaça aos rapazes, a gravidez
na adolescência é um dos principais problemas das meninas de Jaci. Nos
primeiros três meses do ano, 33 meninas com menos de 18 anos começaram o pré-natal
no posto de saúde de Jaci. Boa parte delas engravidou dos funcionários das
usinas.
Em meio à pobreza, os trabalhadores das firmas representam
uma possibilidade de ascensão social. Mariane* tem 13 anos e está grávida de 4
meses. Mudou-se para Jaci há um ano com a mãe, Lúcia*, e três irmãos. Lúcia
buscava um emprego no comércio. Quando a família chegou, a mãe começou a
trabalhar todos os dias da semana, das 5 h às 14 h, num restaurante e, das 15 h
às 22 h, em outro, e Mariane ficava em casa com os irmãos. Foi quando conheceu
o pai do seu filho, funcionário da usina, e morador da sua rua.
Perdeu a virgindade e engravidou aos 12 anos.
"Ele ficou assustado quando soube que eu estava
grávida. Não falou nada”, diz Mariane, que abandonou a escola porque anda muito
sonolenta em função da gravidez. “Eu também fiquei assustada, mas nunca pensei
em tirar.” Mariane diz que menstruou pela primeira vez aos 10 anos e parou de
brincar de boneca no ano passado.
Os médicos que a atenderam no hospital de Porto Velho
instruíram Lúcia sobre as medidas que ela poderia tomar caso quisesse denunciar
o pai do bebê por abuso de menor. “Eu não quis que ele fosse preso, não. Se ele
fez o filho, vai ter de assumir”, afirma Lúcia. Desde que foi confirmada a
gravidez, o sustento de Mariane, que ainda mora com a mãe, ficou por conta do
pai do bebê.
“Jaci Paraná é um Velho Oeste” é uma frase que se ouve com
frequência na região. Se lá a noite começa barulhenta e animada, à medida que a
madrugada chega, um clima de tensão toma conta das ruas e dos bordéis.
Os cabarés fecham as portas à meia-noite — horário em que
começam a sair as brigas entre a clientela exaltada. Os moradores, que quase
não saem às ruas depois que escurece, não ficam sequer na janela de casa, como
em qualquer cidade do interior.
A primeira delegacia do vilarejo foi inaugurada na última
semana de abril, no distrito de Nova Mutum, a 15 quilômetros de Jaci. Ou seja:
quem não tem carro tem de caminhar duas horas para chegar até lá. A delegacia
não tinha telefone até o fechamento desta edição e só funcionava pela manhã. A
delegada responsável também não tem celular, segundo informações da Direção Geral
da Polícia Civil de Rondônia.
O aumento populacional (moradores falam em 20 mil novos
habitantes na vila que antes comportava 4 mil) trouxe mais violência para Jaci.
São histórias de assalto à mão armada à luz do dia, brigas com facadas durante
a noite.
Além do tráfico, os conflitos de terra têm gerado mortes
violentas no vilarejo. Com o anúncio da chegada das usinas, o valor dos
terrenos subiu. Segundo moradores, um lote de 400 metros quadrados valia R$ 100
há dez anos. Hoje vale R$ 10.000. Como boa parte dos terrenos de Jaci não
possui documentação, instaurou-se uma briga pelas terras sem dono — ou com mais
de um dono. As disputas, em Jaci, costumam ser resolvidas na ponta da faca ou
com balas de revólver.
Fonte: Revista Marie Claire
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