terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Turismo Sexual e o Roteiro VIP


A PRIMEIRA vez foi com um italiano", diz M. Ela tinha 13 anos e o conheceu bem ali, em frente ao número 171 da Rua dos Potiguaras, em uma esquina a poucos metros de onde hoje aguarda por clientes, no circuito de bares para estrangeiros da Praia de Iracema, em Fortaleza. 

 "Ele passou três dias comigo num flat. Queria companhia. Foi é bom demais. Ele me deu roupas, me levou pra jantar, até convidou pra ir com ele para a Itália. Mas aí sumiu." E ele pagou por isso? "Até demais da conta."
Com seu 1,55 metro de altura e 45 qui­los, a menina com corpo de criança sorri. M. recém-matriculou-se no primeiro ano do ensino médio em uma escola pública do Conjunto Esperança, na periferia onde vive com o avô. Mas às 11 da noite de uma terça-feira de janeiro, em pleno auge do movimento turístico da capital, passeia pelos bares com a destreza de quem o faz há três anos. Tem 16. A microssaia jeans e a blusa florida cobrem poucos palmos do corpo moreno. O piercing na boca brilha à luz dos postes no caminho dos turistas: e eles chegam em bandos, contornando a or­la até o burburinho dos bares e boates onde prostitutas de todas as idades se apinham à espera, inclusive menores como ela.

A cena não é exclusividade de For­taleza e já foi pior. Mas o turismo sexu­al em sua faceta mais tenebrosa, a que mira crianças e adolescentes, ainda tem suas cores destacadas em cidades onde existe a confluência entre desigualdade, pobreza e turismo massivo voltado para estrangeiros. Caso do Rio de Janeiro, Sal­vador e outras capitais do Nordeste, com suas praias de areias brancas, água quen­te e mulheres e adolescentes pobres e habituadas ao costume da venda de sexo.

É nesse cenário que tais cidades se de­frontarão com um novo problema. Com a Copa das Confederações neste ano e a Copa do Mundo no próximo, 600 mil turistas, a maioria homens com dinheiro em busca de diversão, desembarcarão no Brasil. "Se não forem tomadas as devidas providências, vai ser escandaloso, vão au­mentar os casos de prostituição infantil e a imagem do Brasil vai continuar sendo essa lá fora", afirma Eliana Gomes, ex-vereadora do PCdoB que relatou à CPI da exploração sexual infantil na cidade há pouco mais de um ano. "São meninas po­bres, negras, de famílias vulneráveis, que acabam encontrando essas figuras creti­nas." Segundo a investigação, existe um fio invisível que liga a prostituição mais pobre nas regiões da Barra do Ceará, onde casas de "tias" funcionam à luz do dia e meninas são aliciadas por até 10 reais, e o circuito das praias ricas como Iracema e Futuro.

Durante seis meses uma equipe de oi­to pesquisadores infiltrou-se nos locais suspeitos e constatou, por meio de entre­vistas, que havia uma rede de aliciamento de menores na cidade. O relatório da CPI concluiu: "É marcante o turismo sexual em Fortaleza, envolvendo principalmente crianças e adolescentes de ambos os sexos". E mais: "Existe uma rede de agenciadores, em alguns casos estrangeiros, e em sua maioria italianos" e que "há indícios de la­vagem de dinheiro, narcotráfico, tráfico de influência e pedofilia". E "que as redes que operam o turismo sexual envolvem pessoas e equipamentos de apoio como taxistas, mototaxistas, porteiros, gerentes, recepcionistas de hotéis, flats, pousadas, motéis, bares e restaurantes".

Na lista estão ao menos 20 locais onde havia sinais de prostituição de menores ligadas ao "consumo externo", a maioria deles na Praia de Iracema. "Mas nada vai ser feito", diz Eliana. "Existem poderes fortes por trás disso. Fomos perseguidos, ameaçados pelos donos de comércio."

Somente na alta estação, entre dezem­bro de 2012 e fevereiro, 980 mil turistas devem vir ao Ceará via Fortaleza, segun­do estimativas da Secretaria de Turismo local. Uma receita direta de 1.6 bilhão de reais e um impacto de 2,8 bilhões na eco­nomia local.

Apesar do relatório da CPI. há quem ne­gue a existência do crime organizado. "Di­go e repito: não há uma rede de prostiaiição infantil no Ceará e menos ainda ligada a estrangeiros", afirma o delegado da Polícia Civil Andrade Júnior. "Quem afirmar isso estará sendo desrespeitoso com o estado do Ceará." Em dezembro, ele coordenou uma operação na Praia de Iracema que deu batidas em bares e boates. Cinqüenta es­trangeiros foram detidos para interrogação. Muitos não tinham sequer documentos. A blitz foi feita exatamente onde M. e suas amigas fazem ponto. Em 2009, um avião fretado com 150 homens foi interceptado à meia-noite no aeroporto de Fortaleza e mandado de volta por suspeitas mais do que óbvias de que o objetivo era turismo sexual.

Por mais que Andrade negue, o turismo sexual em Fortaleza é patente. "A gen­te costuma pegar a partir de 8, 10 anos", diz a escrivã da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca), Andréa Queiroz. "Mas quando a gente aborda as meninas com homens mais velhos, elas negam. Existe a exploração e todos sabemos. Mas colocar isso no papel é quase impossível."

Por trás do fenômeno nada recente existe uma configuração social específica, que abarca as cidades turísticas brasileiras: uma cultura de violação infantil, aliada à pobreza e defrontada com o turismo fun­dado em uma base erótica, típica de países tropicais como o Brasil. Que o diga Dom Flávio Giovenale, bispo da Diocese de San­tarém, no Pará, uma das vozes de maior destaque na luta contra o fenômeno na Região Norte. "Há diversos atrativos para o turismo sexual na Amazônia. A floresta em si e a mistura de lenda indígena e sexuali­dade são apenas alguns deles. Há também a dificuldade das autoridades para vigiar a área, a miséria e as regiões portuárias que facilitam a prostituição em todo o mundo. Na Amazônia, infelizmente, as mulheres se prostituem desde novas. Já não se questio­na mais, parece natural."

Pesquisas como a Matriz Intersetorial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, de 2011, dizem o mesmo: nas capitais mais desiguais e com maior fluxo de turismo concentram-se os casos de exploração. Com base em dados do Disque 100 no período de 2005 a 2010, a pesquisa mostrou que foram registrados ao menos 1.803 casos de exploração sexual de crianças e adolescentes na Bahia, 1.616 no Rio de Janeiro e 1.326 no Ceará. O Nordeste é a região com maior incidência, 37%.

A forma como se constituiu a política de turismo há algumas décadas, baseada na "sensualidade" da mulher brasileira, tem sua dose de responsabilidade. "Nes­se processo, a ideia da menina jovem e adolescente ganha atenção e atração para esse tipo de turismo", diz Helena Olivei­ra, coordenadora do Unicef em Salva­dor. A criança, diz, torna-se vulnerável, "exatamente nos lugares onde o turis­mo foi constituído dessa maneira, ain­da mais uma criança indígena, negra ou com a pele não branca, sendo a cor da pele determinante para o "olhar exótico" que o europeu deseja".

Parte da ilusão dos que creem não haver mais turismo sexual com crian­ças em Fortaleza se deve a um cuidado maior dos aliciadores, a uma sofisti­cação dos esquemas. "Uma das nossas preocupações é trazer o turista familiar ou de negócios, mais saudável para o País. Mas temos tido casos de organi­zações criminosas que trazem turistas estrangeiros para fins sexuais, com me­nores e maiores", afirma o delegado da Polícia Federal Thomas Wlassak, que por anos chefiou a Delemig, a delegacia voltada aos estrangeiros em Fortaleza, e representante brasileiro da Interpol. A situação não é tão escancarada como era há dez anos, pondera o delegado. "Mas ainda investigamos grupos qife ainda fa­zem isso. Só que está mais velado."

Nos últimos anos, batidas policiais, in­vestigações como as da CPI e uma maior atenção do setor hoteleiro, que tenta evitar a imagem ruim, fizeram o esquema migrar dos bares e boates, alguns deles fechados, para os flats e casas de praia. "Muitos alu­gam casas grandes e atraem turistas pa­ra festas que focam em prostituição", diz Wlassak. Outros alugam flats permissivos, onde não há vigilância. O mesmo contato alicia mulheres e, muitas vezes, meninas.

"O turista pode ser tanto vítima quanto agente do crime. Geralmente é vítima, mas em se tratando de questões sexuais é muitas vezes o agente", afirma Cláu­dio Mendonça, comandante do BPTur, o batalhão da PM que trabalha exclusi­vamente com turistas no Ceará. Criado para dar proteção aos visitantes, o bata­lhão acaba por se defrontar com a situa­ção de fiscalizá-lo e mesmo puni-lo. Há pouco mais de dois meses, um italiano de 69 anos foi preso em flagrante, enquan­to apalpava duas meninas na praia. "Os policiais perceberam que ele mandou a menina fazer poses eróticas e que elas estavam sendo acariciadas pelo senhor", diz. O italiano teria oferecido 100 reais para tocá-las. Isso em pleno mar.

Por que tantos italianos? "Boa pergun­ta", diz Wlassak. "Não se sabe ao certo. O fato é que muitos italianos têm negócios voltados ao turismo na cidade, flats, alu­guel de carros, hotéis. Eles têm uma rede de atendimento voltada ao turista euro­peu." E ao turismo sexual. Caso de Ricardo Barberi, proprietário de vários flats em re­sidenciais da cidade, que alugava para tu­ristas interessados em sexo com meninas. Um dos locais era o residencial Atlântico, ainda hoje livre para a prática.

Ao ser informado de que três amigos homens querem flats para cinco dias, o recepcionista passa a ligação para uma proprietária que calha de estar ao lado. Quem atende se identifica como Áurea. Tudo leva a crer tratar-se de Áurea Tomé de Lima, apontada pelo relatório da CPI da exploração sexual da Câmara dos Vereadores como uma das "pessoas iden­tificadas como agenciadores ou integran­tes de redes de agenciamento do turismo sexual em Fortaleza". A mulher de voz ar­rastada fica encantada com a possibilida­de de pagamento à vista. "Os dois amigos são estrangeiros? De que nacionalidade?" Ao ouvir que um italiano indicou o local, ela fica mais tranqüila. "Com italianos não tem problema." Ela afirma que tem três flats para alugar para o dia seguinte, por 200 reais a diária. Sem burocracia, sem complicação, basta pagar antecipado uma caução. A conta de luz fica fora do preço. "Aqui tem de ser discreto. Mas nada impe­de que você tenha as suas namoradas. Só não pode dar na vista."

Em tempo: a Alitália acaba de anunciar um voo semanal entre Roma e Fortaleza.

Mais do que o esquema mafioso, donos de flats, aliciadores e menores vitimadas, o que o fenômeno mostra é uma configura­ção cultural no mínimo doentia. "É elas que querem, são umas safadas", diz o taxista, a caminho da Iracema. "Rapaz, faz 20 anos que eu trabalho no mesmo ponto na Beira-Mar e canso de ver as meninas se jogando no colo. É ver o cara cantando e já se joga. Com 8, 10, 12 anos e já tudo safada" Um po­licial da BPTur faz coro. "Vai fazer o quê, se elas é que querem o dinheiro?"

Como enfrentar a situação? A política do governo federal está concentrada em avisos nos hotéis, restaurantes é aeropor­tos. O Ministério do Turismo criou em 2004 o programa Turismo Sustentável e Infância (TSI), em parceria com as secre­tarias estaduais, focada no combate à ex­ploração sexual de menores. Há um plano de ação nas 12 cidades-sede da Copa. Em outubro, após a divulgação de um estudo que mapeia a relação entre o turismo e a exploração sexual de menores no Brasil, pesquisadores realizaram um alerta so­bre o risco de um aumento da atividade durante os eventos esportivos. O governo afirmou que muitas das ações necessárias estão no centro das políticas públicas do governo federal, como o combate à po­breza extrema e o combate ao trabalho infantil. Nada, porém, de concreto.

"O governo trabalha com a formação de profissionais da rede hoteleira e trans­porte para o conhecimento e educação. Mas existem redes muito bem montadas e silenciosas que desde o aeroporto iden­tificam quem é quem, fazem a abordagem de homens com tal perfil, geralmente vin­dos de aviões fretados", diz Helena Oli­veira. Caso de Fortaleza e de outros locais. Em 2010, a PF de Manaus recebeu uma denúncia sobre empresas de turismo no Brasil e nos Estados Unidos que vendiam pacotes de turismo e de pesca esportiva na Amazônia nos quais estariam incluí­das orgias com ribeirinhas adolescentes em barcos de luxo. O caso envolveu ao menos sete menores de idade.

"Temos um enfoque claro em distin­guir o que é a alma cordial e festeira do povo brasileiro dessa exploração sexual e tentativa de mercantilização das relações humanas", explica Flávio Dino, presiden­te da Embratur. "Vamos fazer um trabalho específico na Copa, um evento que agluti­na muito público masculino e jovem. Que­remos aproveitar a exposição para se am­putar definitivamente essa ideia de Brasil como nação permissiva sobre esse crime."

Enquanto isso, sentada em frente aos bares da Praia de Iracema, encostada exatamente no muro da Delegacia do Turista que Bianca (nome escolhido por ela), de 15 anos, pede 70 reais por um programa. Com um vestido curto de co­rações vermelhos e o cartão estudantil de ônibus na mão, ela aguarda um clien­te. Bianca trocou um rendimento de 300 reais como babá pelas ruas. Um policial se aproxima: é proibido tirar fotos das meninas em frente à delegacia. O oficial não se incomoda com a atividade das ga­rotas, apenas não quer o local associado à função. Bianca ri. "Agora com essa Copa você vai ver. É nessa que eu caso com um gringo e vou embora daqui."
Willian Vieira
Fonte: Carta Capital

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