A PRIMEIRA vez foi com um italiano", diz M. Ela tinha
13 anos e o conheceu bem ali, em frente ao número 171 da Rua dos Potiguaras, em
uma esquina a poucos metros de onde hoje aguarda por clientes, no circuito de
bares para estrangeiros da Praia de Iracema, em Fortaleza.
Com seu 1,55 metro de altura e 45 quilos, a menina com
corpo de criança sorri. M. recém-matriculou-se no primeiro ano do ensino médio
em uma escola pública do Conjunto Esperança, na periferia onde vive com o avô.
Mas às 11 da noite de uma terça-feira de janeiro, em pleno auge do movimento
turístico da capital, passeia pelos bares com a destreza de quem o faz há três
anos. Tem 16. A microssaia jeans e a blusa florida cobrem poucos palmos do
corpo moreno. O piercing na boca brilha à luz dos postes no caminho dos
turistas: e eles chegam em bandos, contornando a orla até o burburinho dos
bares e boates onde prostitutas de todas as idades se apinham à espera,
inclusive menores como ela.
A cena não é exclusividade de Fortaleza e já foi pior. Mas
o turismo sexual em sua faceta mais tenebrosa, a que mira crianças e
adolescentes, ainda tem suas cores destacadas em cidades onde existe a
confluência entre desigualdade, pobreza e turismo massivo voltado para
estrangeiros. Caso do Rio de Janeiro, Salvador e outras capitais do Nordeste,
com suas praias de areias brancas, água quente e mulheres e adolescentes
pobres e habituadas ao costume da venda de sexo.
É nesse cenário que tais cidades se defrontarão com um novo
problema. Com a Copa das Confederações neste ano e a Copa do Mundo no próximo,
600 mil turistas, a maioria homens com dinheiro em busca de diversão, desembarcarão
no Brasil. "Se não forem tomadas as devidas providências, vai ser
escandaloso, vão aumentar os casos de prostituição infantil e a imagem do
Brasil vai continuar sendo essa lá fora", afirma Eliana Gomes,
ex-vereadora do PCdoB que relatou à CPI da exploração sexual infantil na cidade
há pouco mais de um ano. "São meninas pobres, negras, de famílias
vulneráveis, que acabam encontrando essas figuras cretinas." Segundo a
investigação, existe um fio invisível que liga a prostituição mais pobre nas regiões
da Barra do Ceará, onde casas de "tias" funcionam à luz do dia e
meninas são aliciadas por até 10 reais, e o circuito das praias ricas como
Iracema e Futuro.
Durante seis meses uma equipe de oito pesquisadores
infiltrou-se nos locais suspeitos e constatou, por meio de entrevistas, que
havia uma rede de aliciamento de menores na cidade. O relatório da CPI
concluiu: "É marcante o turismo sexual em Fortaleza, envolvendo
principalmente crianças e adolescentes de ambos os sexos". E mais: "Existe
uma rede de agenciadores, em alguns casos estrangeiros, e em sua maioria
italianos" e que "há indícios de lavagem de dinheiro, narcotráfico,
tráfico de influência e pedofilia". E "que as redes que operam o
turismo sexual envolvem pessoas e equipamentos de apoio como taxistas,
mototaxistas, porteiros, gerentes, recepcionistas de hotéis, flats, pousadas,
motéis, bares e restaurantes".
Na lista estão ao menos 20 locais onde havia sinais de
prostituição de menores ligadas ao "consumo externo", a maioria deles
na Praia de Iracema. "Mas nada vai ser feito", diz Eliana.
"Existem poderes fortes por trás disso. Fomos perseguidos, ameaçados pelos
donos de comércio."
Somente na alta estação, entre dezembro de 2012 e
fevereiro, 980 mil turistas devem vir ao Ceará via Fortaleza, segundo
estimativas da Secretaria de Turismo local. Uma receita direta de 1.6 bilhão de
reais e um impacto de 2,8 bilhões na economia local.
Apesar do relatório da CPI. há quem negue a existência do
crime organizado. "Digo e repito: não há uma rede de prostiaiição
infantil no Ceará e menos ainda ligada a estrangeiros", afirma o delegado
da Polícia Civil Andrade Júnior. "Quem afirmar isso estará sendo
desrespeitoso com o estado do Ceará." Em dezembro, ele coordenou uma
operação na Praia de Iracema que deu batidas em bares e boates. Cinqüenta
estrangeiros foram detidos para interrogação. Muitos não tinham sequer
documentos. A blitz foi feita exatamente onde M. e suas amigas fazem ponto. Em
2009, um avião fretado com 150 homens foi interceptado à meia-noite no
aeroporto de Fortaleza e mandado de volta por suspeitas mais do que óbvias de
que o objetivo era turismo sexual.
Por mais que Andrade negue, o turismo sexual em Fortaleza é
patente. "A gente costuma pegar a partir de 8, 10 anos", diz a escrivã
da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca),
Andréa Queiroz. "Mas quando a gente aborda as meninas com homens mais
velhos, elas negam. Existe a exploração e todos sabemos. Mas colocar isso no
papel é quase impossível."
Por trás do fenômeno nada recente existe uma configuração
social específica, que abarca as cidades turísticas brasileiras: uma cultura de
violação infantil, aliada à pobreza e defrontada com o turismo fundado em uma
base erótica, típica de países tropicais como o Brasil. Que o diga Dom Flávio
Giovenale, bispo da Diocese de Santarém, no Pará, uma das vozes de maior
destaque na luta contra o fenômeno na Região Norte. "Há diversos atrativos
para o turismo sexual na Amazônia. A floresta em si e a mistura de lenda
indígena e sexualidade são apenas alguns deles. Há também a dificuldade das
autoridades para vigiar a área, a miséria e as regiões portuárias que facilitam
a prostituição em todo o mundo. Na Amazônia, infelizmente, as mulheres se
prostituem desde novas. Já não se questiona mais, parece natural."
Pesquisas como a Matriz Intersetorial de Enfrentamento à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, de 2011, dizem o mesmo: nas
capitais mais desiguais e com maior fluxo de turismo concentram-se os casos de
exploração. Com base em dados do Disque 100 no período de 2005 a 2010, a
pesquisa mostrou que foram registrados ao menos 1.803 casos de exploração
sexual de crianças e adolescentes na Bahia, 1.616 no Rio de Janeiro e 1.326 no
Ceará. O Nordeste é a região com maior incidência, 37%.
A forma como se constituiu a política de turismo há algumas
décadas, baseada na "sensualidade" da mulher brasileira, tem sua dose
de responsabilidade. "Nesse processo, a ideia da menina jovem e
adolescente ganha atenção e atração para esse tipo de turismo", diz Helena
Oliveira, coordenadora do Unicef em Salvador. A criança, diz, torna-se
vulnerável, "exatamente nos lugares onde o turismo foi constituído dessa
maneira, ainda mais uma criança indígena, negra ou com a pele não branca,
sendo a cor da pele determinante para o "olhar exótico" que o europeu
deseja".
Parte da ilusão dos que creem não haver mais turismo sexual
com crianças em Fortaleza se deve a um cuidado maior dos aliciadores, a uma
sofisticação dos esquemas. "Uma das nossas preocupações é trazer o
turista familiar ou de negócios, mais saudável para o País. Mas temos tido
casos de organizações criminosas que trazem turistas estrangeiros para fins
sexuais, com menores e maiores", afirma o delegado da Polícia Federal
Thomas Wlassak, que por anos chefiou a Delemig, a delegacia voltada aos
estrangeiros em Fortaleza, e representante brasileiro da Interpol. A situação
não é tão escancarada como era há dez anos, pondera o delegado. "Mas ainda
investigamos grupos qife ainda fazem isso. Só que está mais velado."
Nos últimos anos, batidas policiais, investigações como as
da CPI e uma maior atenção do setor hoteleiro, que tenta evitar a imagem ruim,
fizeram o esquema migrar dos bares e boates, alguns deles fechados, para os
flats e casas de praia. "Muitos alugam casas grandes e atraem turistas
para festas que focam em prostituição", diz Wlassak. Outros alugam flats
permissivos, onde não há vigilância. O mesmo contato alicia mulheres e, muitas
vezes, meninas.
"O turista pode ser tanto vítima quanto agente do
crime. Geralmente é vítima, mas em se tratando de questões sexuais é muitas
vezes o agente", afirma Cláudio Mendonça, comandante do BPTur, o batalhão
da PM que trabalha exclusivamente com turistas no Ceará. Criado para dar
proteção aos visitantes, o batalhão acaba por se defrontar com a situação de
fiscalizá-lo e mesmo puni-lo. Há pouco mais de dois meses, um italiano de 69
anos foi preso em flagrante, enquanto apalpava duas meninas na praia. "Os
policiais perceberam que ele mandou a menina fazer poses eróticas e que elas
estavam sendo acariciadas pelo senhor", diz. O italiano teria oferecido
100 reais para tocá-las. Isso em pleno mar.
Por que tantos italianos? "Boa pergunta", diz
Wlassak. "Não se sabe ao certo. O fato é que muitos italianos têm negócios
voltados ao turismo na cidade, flats, aluguel de carros, hotéis. Eles têm uma
rede de atendimento voltada ao turista europeu." E ao turismo sexual.
Caso de Ricardo Barberi, proprietário de vários flats em residenciais da
cidade, que alugava para turistas interessados em sexo com meninas. Um dos
locais era o residencial Atlântico, ainda hoje livre para a prática.
Ao ser informado de que três amigos homens querem flats para
cinco dias, o recepcionista passa a ligação para uma proprietária que calha de
estar ao lado. Quem atende se identifica como Áurea. Tudo leva a crer tratar-se
de Áurea Tomé de Lima, apontada pelo relatório da CPI da exploração sexual da
Câmara dos Vereadores como uma das "pessoas identificadas como
agenciadores ou integrantes de redes de agenciamento do turismo sexual em
Fortaleza". A mulher de voz arrastada fica encantada com a possibilidade
de pagamento à vista. "Os dois amigos são estrangeiros? De que
nacionalidade?" Ao ouvir que um italiano indicou o local, ela fica mais
tranqüila. "Com italianos não tem problema." Ela afirma que tem três
flats para alugar para o dia seguinte, por 200 reais a diária. Sem burocracia,
sem complicação, basta pagar antecipado uma caução. A conta de luz fica fora do
preço. "Aqui tem de ser discreto. Mas nada impede que você tenha as suas
namoradas. Só não pode dar na vista."
Em tempo: a Alitália acaba de anunciar um voo semanal entre
Roma e Fortaleza.
Mais do que o esquema mafioso, donos de flats, aliciadores e
menores vitimadas, o que o fenômeno mostra é uma configuração cultural no
mínimo doentia. "É elas que querem, são umas safadas", diz o taxista,
a caminho da Iracema. "Rapaz, faz 20 anos que eu trabalho no mesmo ponto
na Beira-Mar e canso de ver as meninas se jogando no colo. É ver o cara
cantando e já se joga. Com 8, 10, 12 anos e já tudo safada" Um policial
da BPTur faz coro. "Vai fazer o quê, se elas é que querem o
dinheiro?"
Como enfrentar a situação? A política do governo federal
está concentrada em avisos nos hotéis, restaurantes é aeroportos. O Ministério
do Turismo criou em 2004 o programa Turismo Sustentável e Infância (TSI), em
parceria com as secretarias estaduais, focada no combate à exploração sexual
de menores. Há um plano de ação nas 12 cidades-sede da Copa. Em outubro, após a
divulgação de um estudo que mapeia a relação entre o turismo e a exploração
sexual de menores no Brasil, pesquisadores realizaram um alerta sobre o risco
de um aumento da atividade durante os eventos esportivos. O governo afirmou que
muitas das ações necessárias estão no centro das políticas públicas do governo
federal, como o combate à pobreza extrema e o combate ao trabalho infantil.
Nada, porém, de concreto.
"O governo trabalha com a formação de profissionais da
rede hoteleira e transporte para o conhecimento e educação. Mas existem redes
muito bem montadas e silenciosas que desde o aeroporto identificam quem é
quem, fazem a abordagem de homens com tal perfil, geralmente vindos de aviões
fretados", diz Helena Oliveira. Caso de Fortaleza e de outros locais. Em
2010, a PF de Manaus recebeu uma denúncia sobre empresas de turismo no Brasil e
nos Estados Unidos que vendiam pacotes de turismo e de pesca esportiva na
Amazônia nos quais estariam incluídas orgias com ribeirinhas adolescentes em
barcos de luxo. O caso envolveu ao menos sete menores de idade.
"Temos um enfoque claro em distinguir o que é a alma
cordial e festeira do povo brasileiro dessa exploração sexual e tentativa de
mercantilização das relações humanas", explica Flávio Dino, presidente da
Embratur. "Vamos fazer um trabalho específico na Copa, um evento que
aglutina muito público masculino e jovem. Queremos aproveitar a exposição
para se amputar definitivamente essa ideia de Brasil como nação permissiva
sobre esse crime."
Enquanto isso, sentada em frente aos bares da Praia de
Iracema, encostada exatamente no muro da Delegacia do Turista que Bianca (nome
escolhido por ela), de 15 anos, pede 70 reais por um programa. Com um vestido
curto de corações vermelhos e o cartão estudantil de ônibus na mão, ela
aguarda um cliente. Bianca trocou um rendimento de 300 reais como babá pelas
ruas. Um policial se aproxima: é proibido tirar fotos das meninas em frente à
delegacia. O oficial não se incomoda com a atividade das garotas, apenas não
quer o local associado à função. Bianca ri. "Agora com essa Copa você vai
ver. É nessa que eu caso com um gringo e vou embora daqui."
Willian Vieira
Fonte: Carta Capital
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