Honoré pretendeu fazer falar esses sujeitos destituídos de fala por uma sutil rede de saberes-poderes. Não são mais os homens, frequentadores de bordéus, que contam ao ouvinte suas impressões sobre o espaço de prostituição, sobre as putas que o habitam etc. São elas, as putas, que agora, restituídas de seu poder discursivo, narram suas experiências com esses homens ora apaixonados, ora perversos, ora extravagantes etc.
Segundo o cineasta Christophe Honoré “em geral, os pintores
e escritores desta época vão aos bordéis e dão o ponto de vista masculino sobre
as prostitutas, mas o que me interessava era o olhar das mulheres sobre os
homens que as visitavam. Quis mostrar a decadência, o inelutável fim desse
mundo”; é esse o mote de L’Apollonide (2011). Com essa fala o cineasta assegura a compreensão de sua obra – que sem
dúvida soaria estranha, não fosse seu esclarecimento. Trata-se de dar voz
àqueles que antes nada diziam – porque não podiam dizer -, uma vez que
silenciados pela tagarelice de um certo discurso hegemônico com sujeito de
enunciação pré-fixado e inalterável; nesse caso: o homem, o discurso masculino
acerca do espaço dos bordéis que exclui a palavra das prostitutas, também
ocupantes desse espaço. Na pintura, tanto quanto na literatura, é a voz do
homem que se ouve. A palavra, ou melhor, o sentido que ela carrega, é
masculina, assim como os traços, as cores e as formas que o pintor expõe em
seus quadros. A prostituta, entendida como sujeito ausente na ordem do
discurso, nada diz. Ela tão-somente aparece como objeto sobre o qual o homem
tagarela com impertinência e arrogância.
Assim como
Foucault pretendeu encontrar o sentido da loucura recuperando a voz do louco,
outrora excluído da ordem do discurso pelos saberes médicos (o mesmo ocorre com
os presidiários, excluídos do discurso sobre as prisões); assim como Michelet,
célebre historiador francês que quis, não escrever a história dos grandes
feitos e das figuras icônicas, mas escrever a história dos sujeitos comuns,
anônimos, em suma, do povo, que outrora era excluído pelo saber histórico, como
que não tendo direito a ocupar um lugar no discurso desse saber; Honoré
pretendeu fazer falar esses sujeitos destituídos de fala por uma sutil rede de
saberes-poderes. Não são mais os homens, frequentadores de bordéus, que contam
ao ouvinte suas impressões sobre o espaço de prostituição, sobre as putas que o
habitam etc. São elas, as putas, que agora, restituídas de seu poder
discursivo, narram suas experiências com esses homens ora apaixonados, ora
perversos, ora extravagantes etc.
Não é apenas uma
questão de dar às putas o direito à fala, ao falarem, percebemos que elas
realmente têm algo a dizer. Seu discurso é rico em significação. Como
compreender uma espaço como o bordéu quando aqueles que nele se fazem a si
mesmos enquanto sujeitos, não podem falar? Há toda uma lógica por detrás de um
espaço como o bordéu que se faz preciso compreender, isso sem falar nos
processos de subjetivação intrínsecos a esse espaço. As mulheres que o habitam
têm obrigações, uma rotina, deveres, hábitos a serem rigorosamente repetidos;
há inclusive uma certa “ordem moral” à qual elas se submetem: a proprietária do
bordéu diz que elas não são “simples putas” e que há regras a serem seguidas. E
isso é certo, principalmente por tratar-se de uma casa que atende a alta
burguesia francesa. Essas mulheres também amam, sofrem, adoeçem, morrem,
alegram-se, entristecem-se, divertem-se: há algo para além dos leitos nos quais
elas se deitam com seus clientes e isso o filme mostra muito bem. O erro
daqueles que tentam retratar as putas é que eles a retratam apenas do ponto de
vista da relação sexual, e sempre do ponto de vista do homem sobre o sexo.
Nunca se fala sobre o que elas fazem quando não estão com seus clientes. Qual o seu expediente diurno? Por exemplo, a
série de obrigações que se deve cumprir antes de a casa abrir (estar sempre
perfumada, fazer todas as extravagâncias dos clientes, manter-se saudável) e
após ela fechar (os banhos, a preocupação minuciosa com a higiene pessoal). Os
passeios, a socialização entre as mulheres da casa, os laços afetivos que elas
estabelecem entre si e entre seus clientes.
Acontece que se
os homens têm sua perspectiva sobre as prostitutas, as prostitutas, por sua
vez, têm sua perspectiva acerca dos homens com os quais elas se deitam. Elas
também produzem imagens sobre o masculino. E são muitos tipos que elas mesmas
elencam: os doces e amáveis, os perversos, os extravagantes, os gastadores e os
não gastadores etc. E assim como os homens, elas também elegem seus clientes
preferidos de acordo com uma série de critérios aos quais só temos acesso se
darmos a elas a potência do discurso, potência através da qual a experiência da
prostituição é dissecada. Ora, essa capacidade de dar sentido à experiência da
prostituição não é uma capacidade destinada, só e somente só, aos homens. Nunca
se compreenderá o fenômeno da prostituição enquanto se privilegiar o discurso
do homem sobre ele, como se o homem fosse o único portador de discurso, isto é,
o porta-voz da experiência da prostituição.
O que o filme de
Honoré faz é dar à mulher o estatuto de sujeito de enunciação, isto é, sujeito
capaz de produzir discurso – um discurso coerente e vivo – sobre o espaço em
que essa subjetividade se constrói. Ela é inserida no interior da ordem do
discurso, não mais como objeto sobre o qual se fala, mas como sujeito que o
produz, restituindo, assim, sua posivitidade.
Fonte: rizosite.wordpress.com/2012/09/20/lapollonide-prostituicao-e-discurso/
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