No histórico desrespeito pelos direitos humanos em todo o
mundo, as principais vítimas ainda são mulheres - de várias idades, raças e
nacionalidades - apesar dos inegáveis avanços conquistados e de sua crescente
participação política e econômica.
São elas as que mais sofrem com problemas
como mortalidade materna, violência doméstica, escravidão moderna, tráfico de
pessoas, prostituição, turismo sexual, estupro, mutilação genital, casamento
forçado e precoce, falsa igualdade política e profissional. O Livro Negro da
Condição das Mulheres (Editora Bertrand Brasil, tradução Nícia Bonatti, 826
páginas, 85 reais), que acaba de ser lançado no Brasil, reúne uma série de
textos repletos de dados sobre as mazelas enfrentadas por elas em várias
nações, além de depoimentos duros e reveladores de vítimas reais, organizados
por Christine Ockrent e Sandrine Treiner.
Françoise Gaspard, autora do posfácio, socióloga e perita da
ONU junto à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher (Cedaw), explica ao site de VEJA por que a publicação, que foi
originalmente lançada em 2006 na França, continua atual: "É sempre
interessante retomar a discussão sobre questões que ainda atravessam o respeito
aos direitos humanos das mulheres, embora ele avance lentamente". Desde a
Conferência de Pequim, em 1995, regularmente são feitos levantamentos sobre a
condição feminina no mundo. Segundo Françoise, os principais problemas
atualmente estão relacionados à segurança e à pobreza - especialmente à
mortalidade materna e à violência conjugal. "O que muitas vezes ainda
dificulta as pesquisas é que muitos países não divulgam estatísticas dos casos
de discriminação e maus tratos", lamenta.
De maneira geral, o
campeão de injustiças continua sendo o mundo árabe. No passado, grande parte
desses países ratificou a Cedaw, mas muitos fizeram ressalvas em artigos que
divergiam da lei islâmica - entre eles Arábia Saudita, Bahrein, Egito, Iraque,
Kuait, Líbia, Marrocos e Síria. "A situação das mulheres nesses países é
lamentável. Entre os árabes, a Tunísia é uma exceção, pois teve uma melhora
considerável no âmbito dos direitos das mulheres desde 1956, ano de sua
independência, e continua a evoluir nesse aspecto em suas leis civis",
aponta Françoise. Um estudo divulgado pela revista Newsweek no fim de setembro,
com os melhores e piores países do mundo para as mulheres, coloca Chade,
Afeganistão e Iêmen no topo da lista dos mais críticos.
Casos recentes - A Arábia Saudita anunciou na semana passada
que a partir de 2015 as mulheres poderão votar, mas ainda há uma série de
obstáculos para a participação efetiva delas na política do reino, lembra
Françoise. "O primeiro deles se deve ao fato de que elas não possuem os
documentos necessários para votar ou se candidatar." Ainda assim, salienta
a socióloga, a atuação feminina foi muito importante nas revoltas árabes.
"Elas tiveram um peso grande na elaboração da lei, que atualmente determina
a paridade absoluta entre homens e mulheres nas eleições. Porém, o que acabamos
de constatar é que 95% dos candidatos para as próximas eleições (na Tunísia)
são homens. Não foi algo imposto, mas uma escolha das próprias mulheres de não
se candidatar.". Na Líbia, a situação é semelhante. O novo governo conta
com menos mulheres do que no regime de Muamar Kadafi. Isso porque muitos
membros do Conselho Nacional de Transição são muçulmanos praticantes e
conservadores.
Para reverter essa
situação de desigualdade, o "feminismo muçulmano" é cada vez mais
forte e presente. "As mulheres muçulmanas funcionam em rede, e a internet
tem um papel importante. No Mahgreb, elas formaram, por exemplo, uma coalizão
que faz campanha contra as reservas dos governos à Cedaw", conta, destacando
ainda que, no Irã, há mais mulheres nas universidades do que homens. "São
mulheres educadas que tem um papel na sociedade de fato e admitem cada vez
menos a falta de igualdade." Assim como a presidente brasileira Dilma
Rousseff, que em seu discurso na Assembleia Geral da ONU disse que este é o
"século da mulher", Françoise também enxerga o futuro com certo
otimismo. "Quando olhamos para os progressos conquistados, mesmo que
lentamente, o de maior destaque é a educação cada vez mais ampla das mulheres.
Creio que isso será fundamental na definição do seu papel nos próximos anos e
fará com que elas exijam seus direitos de forma mais marcante na
sociedade."
Mortalidade materna
Segundo dados de
2006, a mortalidade ligada à gravidez ou ao parto atinge 500.000 mulheres a
cada ano - de um total de 200 milhões de mulheres grávidas -, principalmente em
países pobres. Os campeões nesse quesito atualmente são Serra Leoa e
Afeganistão. Estimada entre cinco e 30 em cada 100.000 nascimentos nos países
desenvolvidos, a mortalidade materna pode atingir 2.000 em cada 100.000
nascimentos nas nações pobres. Essas mortes não são inevitáveis, e sua extinção
depende de políticas de saúde mais eficientes. Um dos principais lugares onde
faltam estatísticas demográficas é a Ásia. Países como a Índia e a China
enfrentam problemas graves e específicos, como o aborto de crianças do sexo
feminino. "A tecnologia que permite que se saiba o sexo do bebê antes de
seu nascimento contribui para o assassinato dessas crianças em locais onde os
meninos são mais valorizados", explica a socióloga. Outras questões não
são tão explícitas e se fazem presentes até em nações reconhecidamente
democráticas. "Mesmo em países onde o direito da mulher é desenvolvido,
como na Suécia e na Finlândia, a diferença de salário existe, assim como de
acesso aos postos de responsabilidade, especialmente dentro da área
econômica." E em quase todos os lugares ainda é comum a violência conjugal
- que cresce proporcionalmente à emancipação delas.
Violência doméstica
As violências físicas
e sexuais praticadas no seio do casal não acontecem apenas em países em
desenvolvimento ou naqueles baseados em leis que formalmente subjugam as
mulheres. Elas também dizem respeito a nações do norte ao sul da Europa, por
exemplo, onde os mecanismos são idênticos: impor a vontade ao outro e
dominá-lo. Difundidas e banalizadas, as violências conjugais fazem com que as
mulheres vivam no terror. A emancipação social acaba despertando a violência em
homens conservadores e de pensamentos ultrapassados.
Escravidão moderna
A escravidão continua
sendo, ainda nos dias de hoje, uma realidade econômica, social e humana - a
despeito das abolições e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
cujo artigo 4º estipula que "ninguém será mantido em escravatura ou
servidão". A noção de escravidão moderna entrou para a linguagem corrente,
embora nem sempre se meça bem o que de fato representa na vida dessas pessoas
deslocadas e reduzidas à servidão em proveito dos mais ricos. Violência desumana
e degradante, ela destrói até mesmo a personalidade das vítimas. A escravidão
doméstica de mulheres é uma das suas formas correntes. Principalmente as
estrangeiras se veem na obrigação de oferecer trabalho sem remuneração real,
num contexto privativo de liberdade e permeado por violência.
Estupro
O estupro é sem
dúvida a forma mais evidente de dominação e violência contra as mulheres. Tanto
nos países ricos quanto nos pobres, sem levar em conta necessariamente as
diferenças culturais, religiosas e sociais, as mulheres continuam a ser
consideradas objeto. O domicílio conjugal é, em todos os lugares, o quadro
privilegiado das violências sexuais. Nos Estados Unidos, por exemplo, 78% dos
estupros são cometidos por alguém da família.
Tráfico de pessoas,
prostituição e turismo sexual
Calcula-se que o
tráfico de pessoas renda de 5 a 7 bilhões de dólares por ano - embora o número
exato de vítimas e de lucros engendrados por esse comércio seja de difícil
avaliação. Porém, é certo que o comércio de mulheres, especificamente, está em
plena expansão, especialmente devido ao discurso que visa camuflar a realidade
da exploração sexual: falar em "profissionais do sexo" é afirmar que
o sexo das mulheres é um produto comercial. O turismo sexual também é uma das
formas correntes de exploração: 200.000 adeptos vasculham países pobres em
busca de corpos baratos e de crianças. Organizações criminosas fazem desse
mercado uma indústria.
Mutilação genital
As mutilações
sexuais, tradição em muitas regiões da África, não poupam as meninas dessas
comunidades em outros locais do mundo, especialmente na França. Toleradas
durante muito tempo, em nome do respeito às diferenças culturais, são agora
julgadas como crimes no país. Médicos humanitários que descobriram naquele
continente o horror e as consequências desastrosas das mutilações genitais
oferecem cirurgia reparadora - uma forma de reencontrar sua integridade física,
além de uma sexualidade bem vivida.
Casamentos forçados e
precoces
A questão do
casamento forçado preocupa as organizações internacionais da Europa e da
América do Norte. Essa prática é tradicional em algumas nações da África, do
sudoeste da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina. Embora em vias de
regressão em algumas partes do mundo, ainda se encontra em evolução em
comunidades estrangeiras - africanas, magrebinas, turcas e asiáticas - dos
países ocidentais. Na França, por exemplo, avalia-se em 70.000 o número de
jovens casadas à força, sintoma da "guetização" de algumas
comunidades. Cada vez mais, essas mulheres rompem o silêncio, testemunham e
buscam a proteção da lei - mas muitas delas continuam sem recursos. Frequentemente
são violentadas e sequestradas.
Falsa igualdade
política e profissional
O avanço das mulheres
no ramo profissional não é um fato novo. Elas sempre trabalharam, em todos os
lugares. Mas, recentemente, as formas e o volume dessa atividade se modificaram
sensivelmente, em especial a partir da década de 1960. Para além de sua posição
profissional, a posição feminina também transforma o lugar das mulheres na
sociedade contemporânea. No entanto, se nos últimos anos elas passaram a
constituir cerca da metade dos trabalhadores, a paridade quantitativa ainda
parece distante em determinados setores e de salários. Na Europa, 80% das
mulheres se dividem entre atividade profissional e vida familiar. E o trabalho
em meio período continua a ser um de seus poucos privilégios.
Fonte: Revista Veja
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