terça-feira, 3 de julho de 2012

A retomada do protagonismo feminino no parto


Parto humanizado é essencialmente aquele parto centrado na mulher, com respeito à autonomia e ao protagonismo feminino. Parto natural é o parto que acontece sem intervenções, como ocitocina , analgesia, fórceps . É possível se ter um parto humanizado não inteiramente natural, porque algumas intervenções podem ser necessárias. Por isso o fundamental é essa retomada do protagonismo feminino no parto.


Por: Graziela Wolfart (ihu online)

Ao buscar uma justificativa ao preconceito com o parto natural e humanizado por parte da maioria dos médicos na sociedade brasileira, a obstetra Melania Amorim reconhece que “realmente é muito mais fácil e conveniente programar cesarianas eletivas em data e hora agendadas para não interferir com outros compromissos do médico, livrando-os de atender partos na madrugada, em feriados e finais de semana. Mas essa é uma característica do nosso modelo de atenção ao parto, excessivamente medicalocêntrico e hospitalocêntrico”. Para ela, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, “o retorno do incentivo ao parto normal se traduz dentro de uma perspectiva ecológica e sustentável como a única via possível para o futuro da atenção obstétrica. O modelo atual está falido, aqui no Brasil mesmo nos deparamos com o chamado ‘paradoxo perinatal brasileiro’, ou seja, excesso de intervenções e taxas excessivamente elevadas de cesarianas a par de elevada mortalidade materna e perinatal. O resgate do parto como evento fisiológico e a construção de um novo paradigma de assistência centrado na mulher irá proporcionar certamente a solução para esse paradoxo”.

Melania Amorim, MD, Ph.D, é médica-obstetra, professora de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, professora da Pós-Graduação em Saúde Materno-Infantil do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP – Recife/PE), pesquisadora associada da Biblioteca Cochrane, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e Coordenadora do Núcleo de Parteria Urbana (NuPar) da Rede pela Humanização do Nascimento (ReHuNa). É graduada em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba, mestre em Saúde Materno Infantil pelo Instituto Materno Infantil de Pernambuco e doutora em Tocoginecologia pela Universidade Estadual de Campinas.

Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir da sua experiência, o que significa um parto, um nascimento natural e humanizado?
Melania Amorim – Parto humanizado é essencialmente aquele parto centrado na mulher, com respeito à autonomia e ao protagonismo feminino. Parto natural é o parto que acontece sem intervenções, como ocitocina , analgesia, fórceps . É possível se ter um parto humanizado não inteiramente natural, porque algumas intervenções podem ser necessárias. Por isso o fundamental é essa retomada do protagonismo feminino no parto.

IHU On-Line – Como o tema do parto humanizado aparece no ensino universitário de Medicina?
Melania Amorim – Infelizmente, na maioria das faculdades o parto ainda é ensinado somente do ponto de vista de seu mecanismo e estudo clínico, com pouca ênfase na fisiologia e, sobretudo, na assistência humanizada a esse evento que jamais pode ser concebido/interpretado somente sob a luz da biologia. Há múltiplas dimensões, biopsicossociais e espirituais, que precisam ser contempladas.

IHU On-Line – Podemos identificar um preconceito em relação ao parto natural por parte dos médicos em geral? Por que apenas uma pequena parcela de obstetras defende o parto natural/humanizado?
Melania Amorim – Há um preconceito, sim, que vem desde a formação médica, centrada no patológico, até questões práticas do atendimento de rotina, uma vez que a assistência ao parto natural/humanizado demanda várias horas, e muitos obstetras, atrelados a convênios ou planos de saúde que pagam valores muito baixos pela assistência ao parto, acabam preferindo realizar cesarianas eletivas sob pretextos pouco ou nada científicos, como as famigeradas circulares de cordão. Além do mais, nos programas de Residência Médica, em sua grande parte, os residentes não são treinados para atender ao fisiológico, a partos naturais, e acabam tendo uma formação mais cirúrgica, sem familiaridade com o parto humanizado. Realmente é muito mais fácil e conveniente programar cesarianas eletivas em data e hora agendadas para não interferir com outros compromissos do médico, livrando-os de atender partos na madrugada, em feriados e finais de semana. Mas essa é uma característica do nosso modelo de atenção ao parto, excessivamente medicalocêntrico e hospitalocêntrico. Em países em que há a participação de outros profissionais como enfermeiras-obstetras e obstetrizes, isso não ocorre, porque os partos de baixo risco ficam sob a responsabilidade desses profissionais, reservando-se a intervenção médica para os casos de alto risco.

IHU On-Line – Como médica e como mulher, qual sua opinião sobre o parto domiciliar?
Melania Amorim – Como mulher, acho extremamente atraente a ideia de um parto no conforto e na privacidade do domicílio, sabendo que em seu lar a mulher é a dona e ela toma, verdadeiramente, as rédeas do processo. Como médica, eu estudo e interpreto as evidências científicas que reforçam os benefícios e a segurança do parto domiciliar. Há diversos estudos demonstrando que partos domiciliares têm importantes vantagens maternas, reduzindo o risco de intervenções como uso de ocitocina, episiotomia, analgesia, cesariana, se associam com menor chance de infecção e com elevado grau de satisfação materna. Por outro lado, não se documenta aumento do risco materno e perinatal. No último grande estudo holandês envolvendo quase 680.000 partos (van der Kooy, 2011 ) se demonstrou mortalidade perinatal semelhante entre partos domiciliares planejados e hospitalares, respectivamente 0,15% e 0,18%.

IHU On-Line – Como a senhora caracteriza a tendência da “medicina baseada em evidências científicas” e como isso se aplica ao parto humanizado?
Melania Amorim – Medicina Baseada em Evidências é um paradigma que vem se consolidando nos últimos 20 anos, e consiste na integração das melhores evidências científicas correntemente disponíveis com a experiência clínica individual e com as características e expectativas dos pacientes. Em termos de assistência humanizada ao parto, nós dispomos, há algum tempo, de dezenas de recomendações baseadas em evidências corroborando os benefícios de práticas diversas, como dieta livre durante o trabalho de parto, possibilidade de deambulação e liberdade de posição, suporte contínuo intraparto com ênfase no papel das doulas, uso de métodos não farmacológicos para alívio da dor do parto, incentivo às posições não supina (ou seja, verticais/laterais/de quatro apoios) durante o período expulsivo, não realização de episiotomia (corte no períneo) de rotina, evitar puxos dirigidos (ou seja, não ficar orientando a mulher sobre quando e como fazer força) e não realizar manobra de Kristeller (pressão no fundo do útero). Existem claras evidências de que essas práticas se traduzem por melhores desfechos maternos e perinatais. Também em relação ao nascimento, as evidências reforçam pontos importantes, como a ligadura tardia do cordão, o contato precoce pele a pele de mãe e bebê e a amamentação na sala de parto. Mais ainda, as evidências demonstram que o parto de baixo risco pode e deve ser assistido por profissionais não médicos, como enfermeiras-obstetras e obstetrizes, treinadas para atender e respeitar a fisiologia, e que um modelo de atenção obstétrica promovido por obstetrizes se associa com melhores resultados do que um modelo centrado no médico.

IHU On-Line – Como entender a transformação da cultura do parto atualmente, se percebermos um retorno ao incentivo ao parto normal? O que isso representa do ponto de vista de um novo olhar da sociedade sobre a mulher e sobre a medicina?
Melania Amorim – O retorno do incentivo ao parto normal se traduz dentro de uma perspectiva ecológica e sustentável como a única via possível para o futuro da atenção obstétrica. O modelo atual está falido. Aqui no Brasil mesmo nos deparamos com o chamado “paradoxo perinatal brasileiro”, ou seja, excesso de intervenções e taxas excessivamente elevadas de cesarianas a par de elevada mortalidade materna e perinatal. O resgate do parto como evento fisiológico e a construção de um novo paradigma de assistência centrado na mulher irá proporcionar certamente a solução para esse paradoxo.

IHU On-Line – Como você define a experiência do nascimento de um bebê? Que diferenças citaria aqui entre o nascimento por cesárea ou parto normal/natural/humanizado?
Melania Amorim – Uma cesariana pode ser necessária durante a assistência ao parto, e em algumas ocasiões ela é salvadora. O que nós nos posicionamos contra é a cesariana eletiva sem indicação médica definida, retirando-se um bebê que ainda não “sinalizou” estar pronto para nascer. Diversos são os benefícios do parto normal para o bebê, a começar pelo “coquetel hormonal” que ele recebe, de hormônios produzidos pelo organismo materno, como ocitocina e endorfinas. Bebês nascidos de parto normal também têm menor chance de apresentar desconforto respiratório, uma vez que a passagem pelo canal de parto elimina o excesso de líquido nos pulmões, e têm maior chance de ficar em contato precoce pele a pele e ter a oportunidade de mamar logo depois do nascimento. Além disso, a cesariana eletiva pode ocasionalmente levar ao nascimento prematuro sem uma justificativa, por erro de datação da idade gestacional, e é por isso que em muitos hospitais uma proporção relativamente elevada desses bebês ficam internados em UTI para tratamento do desconforto respiratório. O nascimento por parto normal representa uma oportunidade única e intraduzível para o estabelecimento imediato do vínculo mãe/bebê, com maior segurança do ponto de vista dos desfechos neonatais.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário?
Melania Amorim – O debate em torno do parto domiciliar não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, tem se tornado extremamente polarizado e politizado, de forma que nós não esperamos resolver tão cedo essa polêmica. Nossa intenção é promover ampla discussão com toda a sociedade, tentando estabelecer um consenso, visando a garantir o respeito a um direito reprodutivo básico, qual seja, a escolha do local de parto, mas também a implementar estratégias para aumentar a segurança e a satisfação das usuárias em todos os partos. Isso inclui tanto melhorar e humanizar a atenção hospitalar, no sentido de que os partos assistidos em maternidades ou centros de parto normal possam representar uma experiência gratificante para as mulheres, como estabelecer diretrizes para a seleção adequada das candidatas ao parto domiciliar e um atendimento obstétrico seguro e de qualidade em domicílio.

Fonte: Ihu

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