"Quando a mulher entra no hospital para ter o seu bebê, seja no sistema público ou no sistema privado, o seu corpo é levado pelas circunstâncias e pelos protocolos que forem determinados por aquela instituição”. 25% das mulheres sofreram algum tipo de abuso físico ou verbal dentro das maternidades. A discussão do parto domiciliar está relacionada com o reconhecimento dessa opção para as mulheres, e a liberdade de elas escolherem onde e como querem ter o seu bebê”, declara a obstetra Ana Cristina Duarte.
As recentes discussões e manifestações acerca do parto
domiciliar e a Marcha do Parto em Casa, realizada em São Paulo, tiveram o
objetivo de "chamar atenção sobre a questão das escolhas no parto”, disse
a obstetra Ana Cristina Duarte, à IHU On-Line. "Não defendo que as mulheres
devam optar pelo parto domiciliar. Penso que devem optar por obter o máximo
possível de informações sobre as possibilidades de nascimento, e fazer uma
escolha de acordo com o que o coração delas diz”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, a obstetra
enfatiza que os "centros obstétricos ainda carecem de direitos básicos dos
direitos humanos”. Na teoria médica, assegura, "as mulheres têm direito de
escolher o que vai acontecer com o corpo delas”. Entretanto, "na prática
isso não funciona. (...) Quando a mulher entra no hospital para ter o seu bebê,
seja no sistema público ou no sistema privado, o seu corpo é levado pelas
circunstâncias e pelos protocolos que forem determinados por aquela
instituição”.
Ana Duarte também critica a maneira como os médicos orientam
as mulheres a escolherem o parto normal ou a cesariana, e enfatiza que o
direito ao acompanhante, determinado por lei, também não é respeitado em muitos
hospitais brasileiros. Além disso, informa que pesquisas já retratam casos de
violência nas maternidades. "Pelo menos, 25% das mulheres sofreram algum
tipo de abuso físico ou verbal dentro das maternidades”.
Ana Cristina Duarte é formada em Obstetrícia pela
Universidade de São Paulo - USP. Atualmente atua no Grupo Samaúma – Maternidade
Consciente, e no Grupo de Apoio à Materinidade Ativa – GAMA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como avalia as discussões acerca do parto
domiciliar? Quais as vantagens e desvantagens para as mulheres que desejam que
os filhos nasçam em casa?
Não defendo que as mulheres devam optar pelo parto
domiciliar. Penso que devem optar por obter o máximo possível de informações
sobre as possibilidades de nascimento, e fazer uma escolha de acordo com o que
o coração delas diz. Portanto, o melhor lugar para se ter o bebê é onde a
mulher se sente mais segura. Se ela se sente mais segura na casa dela, precisa
procurar opções para ter o bebê em casa. Mas, por outro lado, se sentir mais
segura no hospital, é bom se informar que, primeiro, será muito difícil
conseguir realizar um parto normal e, segundo, vai ser muito difícil fazer
escolhas dentro do hospital.
Dentro de casa, as vantagens são que não há interferência de
uma instituição, ou seja, o protocolo de uma instituição em cima de um processo
que é natural. Todo o processo do parto passa sob o controle exclusivo da mãe,
pois é ela quem determina as pessoas que estarão presentes. Então, em geral é
um processo natural, a não ser que haja uma circunstância de risco iminente.
IHU On-Line – Por que muitos obstetras são contra o parto
domiciliar? A senhora, como obstetra, como avalia esse posicionamento?
Ana Cristina Duarte – Porque não conhecem as evidências
científicas e não querem conhecê-las. Usam argumentos falaciosos do tipo
"eu já vi muita mulher morrer de hemorragia”. Enfim, são argumentos que
não têm consistência lógica. As evidências dizem que o parto em casa é seguro,
e o obstetra que não quiser ler e se atualizar, vai continuar falando que é
perigoso.
IHU On-Line – É possível definir o perfil das mulheres que
têm optado pelo parto normal e parto domiciliar? Percebe uma retomada deste
tipo de parto? O que isso significa?
Ana Cristina Duarte – As mulheres que têm buscado o parto
domiciliar são, em geral, de nível superior, com idade acima de trinta anos,
profissionais liberais, que trabalham fora, e com o nível educacional bem
elevado. São mulheres que pesquisam bastante, leem muito, compram livros,
procuram em sites brasileiros e internacionais antes de fazer a sua escolha.
Então, em geral, é um pessoal de nível cultural bastante elevado. São pessoas
que já fazem escolhas diferentes para sua vida: muitas já têm profissões diferentes,
como cineastas, produtoras, fotógrafas e têm também algumas pessoas comuns,
como advogadas, médicas. Em geral são pessoas que já levam um tipo de vida
diferente.
O parto normal na rede pública é "meio” obrigatório. A
mulher só fará uma cesárea se o médico achar que tem que fazer. Portanto, a
cesariana não é uma escolha para as mulheres. No sistema de saúde privado, as
mulheres que escolhem o parto normal geralmente são aquelas que procuram
informação, que leem muito, que acabam conhecendo os benefícios e sabendo que
isso é melhor para a mãe e para o bebê. Essa escolha é uma tendência mundial. O
Brasil é um dos últimos lugares onde está chegando esse movimento. Na
Inglaterra e nos EUA, já se fala disso há 30 anos, e em países da Europa isso
nunca deixou de ser opção. Em nível mundial há um crescimento dessa visão do
parto como sendo um processo fisiológico e que, dentro das circunstâncias
normais, não deveria ser hospitalizado. A própria internet tem ajudado as
mulheres a acharem mais facilmente essas informações.
IHU On-Line – Como a discussão acerca do direito de escolha
é vista hoje na obstetrícia? De modo geral, as mães têm o direito de decidir
como querem que aconteça o nascimento de seus filhos?
Ana Cristina Duarte – Na verdade, em termos de direitos
básicos humanos as mulheres têm direito de escolher o que vai acontecer com o
corpo delas. A medicina enxerga também esse direito nos tratados de ética. A
questão é que na prática isso não funciona. Então, quando a mulher entra no
hospital para ter seu bebê, seja no sistema público ou no sistema privado, o
seu corpo é levado pelas circunstâncias e pelos protocolos que forem
determinados pela instituição. Então, não perguntam para elas, por exemplo:
"Nós queremos raspar os seus pelos. A vantagem de raspar os seus pelos é
que facilita o nosso serviço; a desvantagem é que pode lhe incomodar no
pós-parto. A senhora nos autoriza a fazer a raspagem?”. Então, as questões não
são colocadas desse jeito. Acontece assim: "Senhora, por favor, abre as
pernas, porque nós precisamos fazer a raspagem dos pelos”. Então, isso acontece
desde a raspagem dos pelos até o corte da vagina dela. Então, quando o bebê
está saindo, o médico faz a episiotomia. Esse corte é feito sem autorização,
sem aviso prévio, sem um consentimento informado, e vai totalmente contra ao
que prega a medicina. Um médico não consegue arrancar uma verruga sem explicar
exatamente o que irá fazer e quais são os riscos para o paciente.
Toda a assistência ao parto carece desse tipo de cuidado.
Num consultório que atende pacientes com plano de saúde, o médico diz assim:
"O parto normal e a cesárea têm vantagens e desvantagens. O parto normal é
melhor para você, mas o bebê pode ficar retardado. Você pode ficar com a vagina
larga e seu marido ir embora, mas a recuperação é melhor para você. Na
cesariana, a desvantagem é que a recuperação demora um pouco mais, mas aí o
bebê fica bem, a sua vagina fica ótima e conseguimos organizar tudo, evita correrias
e tal”. Então, quando as coisas são colocadas dessa forma mentirosa para a
mulher, o direito às escolhas acaba existindo apenas no papel, mas não existe
sequer na cabeça dos profissionais. O sistema de saúde não reconhece esse
direito.
Se você vai no centro obstétrico, por exemplo, em qualquer
hospital público, onde tiverem dez mulheres grávidas, todas estarão ligadas no
soro com ocitocina, e nenhuma delas sabe o que tem lá dentro. Nenhuma delas
sabe que esse medicamento pode causar morte, descolamento de placenta, dar
excesso de contração. Ninguém fala isso para elas. Então, na verdade, os
centros obstétricos ainda carecem de direitos básicos dos direitos humanos. E
isso sem falar em violência obstétrica. Já existe um levantamento no Brasil que
mostra que, pelo menos, 25% das mulheres sofreram algum tipo de abuso físico ou
verbal dentro das maternidades. Penso que esse número é bem maior do que 25%,
porque muitas mulheres não entendem que foram vítimas de violência. Quando a
mulher está com oito centímetros, o médico faz uma cesariana para poder ir
embora logo, dizendo que o bebê está em sofrimento. A mulher não faz a menor
ideia de que sofreu um processo de lesão física grave. Se cada mulher souber
exatamente o que é violência física, e se tiver noção real do que aconteceu com
ela, esse número no Brasil vai chegar facilmente perto dos 70%.
IHU On-Line – E por que se age dessa forma?
IHU On-Line – Como vê a proposta de incluir a atividade de
parteiras no Sistema Único de Saúde?
Ana Cristina Duarte – Primeiro vamos definir o que é
parteira, pois tem dois tipos de parteira. Tem a parteira tradicional, que é a
que trabalha nos rincões do Brasil, nas regiões ribeirinhas, florestas e
aldeias indígenas, que aprendem por tradição. E têm as parteiras urbanas, que
são profissionais formadas com curso superior de enfermagem ou de obstetrícia,
e que atendem partos domiciliares nos grandes centros.
O governo está falando da parteira tradicional. Nesse
momento, não vejo como o SUSnão reconhecer o trabalho dessas mulheres, porque
elas trabalham a vida inteira, sem ganhar nada, sem direito à aposentadoria, à
assistência médica ou coisa alguma. O governo ignora a existência dessas
parteiras, e elas precisam ser reconhecidas e remuneradas pelo seu trabalho. A
questão é saber se o modelo de atenção baseado nessas parteiras tradicionais
seria eficaz, porque nós sequer temos um estudo que nos diga se esse trabalho
da parteira tradicional é eficaz e seguro. Essa questão tem de ser estudada.
IHU On-Line – Quais são, para a mãe e o bebê, os benefícios
de contar com a presença de uma doula durante o parto?
Ana Cristina Duarte – Em geral, a doula acompanha a mulher
onde ela quiser. Então, se ela for ter um parto hospitalar, a doula vai junto,
desde que o hospital permita. O ideal seria que a mãe tivesse direito a um
acompanhante de escolha dela e mais a doula, porque a doula não é da família, é
uma profissional. O ideal seria a presença das duas pessoas. A doula é uma
pessoa que já conhece o processo todo de nascimento, então ela reconhece as
necessidades físicas e emocionais da mulher durante esse processo e pode
oferecer ajuda e suporte durante todo o trabalho de parto, diante das
necessidades da mulher.
IHU On-Line – Qual é o papel do pai durante o processo de
parto?
Ana Cristina Duarte – O pai é o coautor da obra. Então, na
verdade, o processo pode não estar acontecendo no corpo dele, mas a
responsabilidade dele é muito grande no sentido de oferecer suporte. Ele tem
suas próprias necessidades, obviamente, emocionais, e a doula pode ajudar, mas
ele tem de estar junto, tem de participar do processo todo, dentro do que ele
possa oferecer. Alguns são mais tímidos, outros fazem força junto, torcem, cada
um tem o seu estilo, mas a presença deles durante todo o processo é
fundamental, desde que a mulher queira.
IHU On-Line – Quais são os desafios em relação à orientação
médica e ao direto de escolha da mulher?
Ana Cristina Duarte – Não podemos esperar que os médicos que
ganham mais e trabalham menos em uma cesariana sejam os portadores da
informação, porque a informação que ele traz tem um viés. A mulher tem de
procurar as informações em fontes isentas, ou seja, evidências científicas,
livros, grupos de apoio ao parto normal, enfim ela tem de procurar fora do
consultório médico. O consultório médico é o último lugar onde ela deve
procurar essas opções, até porque no Brasil a cultura médica ainda é muito
intervencionista. Se ela quer saber como ter um parto menos medicalizado, ela
tem que procurar outras fontes de informação. E hoje em dia já existem muitos
livros interessantes publicados sobre isso.
IHU On-Line – O parto domiciliar é menos medicalizado?
Ana Cristina Duarte – O parto domiciliar tem que ser
desmedicalizado, tem que ser um parto natural. São utilizados outros recursos,
como água, banheira, massagem, respiração, visualização, mas não se pode usar
droga, anestesia durante o parto. Ele é um parto natural e tem que ser, porque
esses procedimentos todos trazem risco para a mãe e para o bebê. Eventualmente,
algumas mulheres são levadas para a maternidade para poder fazer o
procedimento, porque precisam receber um pouco de hormônio para melhorar as contrações.
IHU On-Line – Como você vê as campanhas de apoio do governo
federal ao parto natural e humanizado?
Ana Cristina Duarte – É fundamental, mas ainda está muito
lento. Se você pegar as campanhas de aleitamento materno que aconteceram depois
que o leite de fórmula passou a ser uma realidade para a nossa sociedade – o
que gerou muitos problemas para os bebês –, o governo respondeu com campanhas
maciças e investiu muito dinheiro para reverter esse absurdo, porque estava
lutando contra uma grande indústria do leite em pó.
Por outro lado, temas como o parto normal e a cesariana
passam batido pelo governo, principalmente porque a cesariana acontece no
serviço privado, onde quem paga por suas escolhas são as próprias mulheres.
Elas pagam um plano de saúde, no qual já está incluso a cesárea absurda. Mas se
a mulher for para a UTI porque perdeu o útero, ou está com uma hemorragia, o
governo não paga um centavo por isso. Então, não custa caro para o governo o
que está acontecendo e, portanto, o governo não investe tudo que poderia e
deveria investir em termos de educação para melhorar a demanda das mulheres que
fazem o parto normal.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?
Ana Cristina Duarte – Gostaria de ressaltar que o parto
domiciliar tem de ser planejado. Ele não é uma aventura selvagem. As equipes
que atendem o parto natural em casa têm o material completo, tanto para
situação de baixo risco como para uma complicação. A única coisa que não
podemos fazer em casa é uma cesariana, mas quando se tem uma hemorragia, é
possível controlá-la. Além disso, o parto domiciliar é bacana, porque ele não é
uma obrigação. A mulher pode começar o parto em casa e desistir, ir para o
hospital. Ele é muito mais confortável para a mulher.
Fonte: ihu
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