Na última década, a Igreja Católica teve uma perda sem
precedentes na História, embora continue a religião majoritária do País. Além
da queda recorde na proporção de fiéis, a população católica encolheu pela
primeira vez em números absolutos. Dados do Censo divulgados ontem mostram que
em 2010 havia quase 1,7 milhão de católicos a menos que em 2000. Em média, a
Igreja perdeu 465 fiéis por dia.
A reportagem é de Luciana Nunes Leal e Clarissa Thomé e
publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 30-06-2012.
Em 2010, 64,6% da população brasileira era católica. Houve
uma queda de 12,2% em relação aos 73,6% de 2000, a maior perda proporcional
desde o início da contagem da população, em 1872. Há 50 anos, a religião
católica tinha predomínio absoluto, com 93% da população. Se for mantido o
ritmo da última década, em 20 anos os católicos serão menos da metade da
população.
O crescimento dos evangélicos é a maior causa da queda dos
católicos, embora também tenham crescido os brasileiros que se declaram sem
religião e os de religiões minoritárias, como o espiritismo.
Divididos em três grandes categorias, os evangélicos seguem
crescendo, mas em ritmo bem menor que na década anterior e chegaram a mais de
um quinto da população brasileira, com 22,2%, ou 42,2 milhões de fieis. Houve
um aumento em números absolutos de 16 milhões de evangélicos entre 2000 e 2010
- ou 4.383 novos fiéis por dia.
"Não existe uma inversão da sociedade católica para a
protestante. O que se vê é um processo mais agudo de diversificação. O
brasileiro não tem mais constrangimento de dizer que não é católico. A
diversificação da sociedade, a modernização e o acesso a novas tecnologias fazem
com que as pessoas tenham mais liberdade para dizer 'sou sem religião'. Mas
essa afirmação de identidade tem caráter muito fluido. A religião passa a ser
um aspecto da vida social, onde é permitido experimentar. Com isso, católicos e
protestantes tradicionais ficam mais vulneráveis", diz a professora e
pesquisadora da religião Sílvia Fernandes, da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ).
Os evangélicos tradicionais (de missão), de igrejas
históricas trazidas ao Brasil pela imigração europeia, como luterana,
presbiteriana, batista e adventista, entre outras, cresceram em números
absolutos, mas estão estagnados na proporção em relação à população. Eram 4,1%
dos brasileiros em 2000 e agora são 4%. O número de luteranos e presbiterianos
diminuiu na última década.
No conjunto da população, evangélicos pentecostais,
católicos e sem religião são os que têm menor renda e menor escolaridade. Os
espíritas e os evangélicos tradicionais se destacam por terem mais anos de
estudo. Os espíritas têm renda bem superior aos demais.
Professor de antropologia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Ronaldo de Almeida acredita que a Igreja Católica perde
fiéis em quantidade, mas os que ficam são mais convictos. "O que está
perdendo é o catolicismo tradicional: você não sabe muito o que dizer, diz que
é católico. Não sabe o que fazer com seu filho, põe na catequese. Mas, se ele
começar a usar drogas, vai para uma evangélica. O catolicismo perde gordura,
mas se fortalece também. Eu não apostaria em fragilidade do catolicismo. Ao
ficarem mais convictos, os católicos ficam mais parecidos com os
evangélicos", diz o pesquisador.
Aparentemente, o crescimento dos padres cantores, que
arregimentam multidões de católicos, ainda não surtiu efeito no objetivo de
trazer novos fieis. "Os padres cantores têm um fator de atração, sim.
Vendem muitos CDs. Mas há um dado interessante. Não é o caso do padre Marcelo Rossi,
mas o padre Fábio de Melo atrai gente de todas as religiões", diz Sílvia
Fernandes.
Declínio da Igreja Católica
Quais são os motivos que explicam a galopante queda de
fiéis, principalmente jovens e mulheres, no maior país católico.
1 Romanização da Igreja
É cantada em prosa
e verso, já há algum tempo, a rejeição dos fiéis contemporâneos a autoridades
religiosas que impõem doutrinas e ritos. Imposição, obrigação e restrição são
palavras proscritas em um cenário no qual cada vez mais as pessoas se habilitam
a estar no comando do próprio destino. A Igreja Católica, no entanto, caminha
na direção oposta. Vive um momento de reinstitucionalização de seus fiéis, de
os disciplinar para que aprofundem a sua fé. Os bispos defendem um contato
maior com os bens religiosos, como missas e novenas. Esse processo preconizado
pelo Vaticano é conhecido como romanização do catolicismo. “Bento XVI prefere
uma Igreja menor e mais atuante em vez de uma maior sem atuação coerente e
consistente”, afirma o cientista da religião Jung Mo Sung, da Universidade
Metodista do Estado de São Paulo (Umesp). “A estratégia fortalece o fervor de
uma minoria praticante, mas traz uma consequência não intencional da perda de
adesão de católicos difusos.”
Esse efeito-rebote, somado à procura cada vez maior da
população por curas e milagres que resolvam rapidamente seus problemas, tem
levado esses católicos a migrar para outras denominações ou encorpar o grupo
dos que fazem contato com o divino sem o intermédio de uma instituição. “A
Igreja prefere que as pessoas que buscam soluções imediatas por meio de
milagres não permaneçam nela”, diz o teólogo jesuíta João Batista Libanio.
Diminui-se o número de católicos, mas, por outro lado, aumenta-se o dos
praticantes conscientes.
2 Supermercado católico
Párocos têm relatado
que seus templos estão existindo à imagem e semelhança de supermercados. Percebem que é cada vez maior o número
de fiéis que procuram a igreja ocasionalmente, em busca de serviços religiosos
como casamentos, missas de sétimo dia, batizados e bênçãos de lugares e
objetos. Tratado como produto, o casamento, só para citar um dos “bens”
católicos, se torna um evento alheio à doutrina. “Há casais que trazem o CD da
novela que faz sucesso para tocar na cerimônia. Se você se nega, alguns
inconformados batem boca com você, viram as costas e procuram quem o faça”,
conta o padre José João da Silva, da paróquia São José Operário, em Itaquera,
na zona leste da cidade de São Paulo. “Vivemos uma igreja fast-food.”
Nessa lógica de mercado, missa de sétimo dia tem se
transformado em uma grande assembleia de gente que só foi ao templo por conta
da ocasião e não está preocupada com o significado do ritual. Quanto aos
batizados, explica o cônego Celso Pedro da Silva, da paróquia Santa Rita de
Cássia, do Pari, zona norte de São Paulo, a Igreja supõe que quem quer que o
filho se insira nela antes do uso da razão o faz porque dela faz parte e aceita
suas regras. “O mesmo vale para a primeira comunhão, mas muitos pais não têm
vínculos efetivos, nem foram casados na Igreja”, diz ele. “Acredito que uma
dificuldade do catolicismo seja saber que o povo católico não é evangelizado e,
mesmo assim, se comportar na prática como se ele fosse”, diz o cônego. O padre
João Carlos Almeida, teólogo e diretor da Faculdade Dehoniana (SP), foi vigário
paroquial no Santuário São Judas Tadeu, na capital paulista, por três anos. E
conta que passava quase o dia todo atendendo a confissões e abençoando
automóveis. “Muita gente trazia seu carro recém-comprado para ser benzido e ia
embora. Poucos rezavam ou participavam de uma missa”, lembra. Com a oferta
religiosa na vitrine, católicos assistem a seus fiéis se afastando dos vínculos
espirituais.
3 Fuga de mulheres
Está lá no “Novo
Mapa das Religiões”. Entre as 25 denominações pesquisadas, apenas no
catolicismo a mulher não constitui a maioria dos adeptos (leia quadro à pág.
70). Entre evangélicos, espíritas, religiões de matriz africana, oriental e
asiática, elas superam os fiéis do sexo masculino. As católicas, porém, são
cerca de 67,9%, enquanto os homens são 68,9%. Neri, o organizador do estudo da
FGV, atribui o resultado, entre outras interpretações, ao fato de as alterações
no estilo de vida feminino ocorridas nos últimos 30 anos não terem encontrado
eco na doutrina católica, menos afeita a mudanças. De fato, seguem engessadas
na Igreja, só para citar três tabus, as questões sobre os métodos
contraceptivos, o divórcio e o aborto.
De acordo com o teólogo Jorge Cláudio Ribeiro, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC), o catolicismo não gosta da mulher.
“Ao que parece, elas, mal-amadas que são pela Igreja, estão se autorizando a
não gostar da religião, a reagir”, diz ele. Seu colega de PUC, o padre e psicólogo
João Edénio dos Reis Valle, afirma não ter dúvida de que a questão de gênero
pesa na constante diminuição do número de católicos no País. “Ela pesa em
especial nas mulheres de classes mais instruídas e em melhor posição
socioeconômica”, afirma. “Essas não só percebem como discutem e não aceitam as
posições da Igreja em relação a uma série de questões que as afetam.” E conclui
discorrendo sobre a não participação clerical feminina. “Elas reivindicam um
papel novo e ativo na vida da instituição.”
4 Escândalo de pedofilia
Em 2002, um grupo
de mais de 500 pessoas levou à Justiça americana denúncias de abusos sexuais
cometidos por sacerdotes e membros da arquidiocese de Boston, nos Estados
Unidos. Esse escândalo foi a chama que fez arder uma fogueira de denúncias
mundo afora, inclusive no Brasil. Na Irlanda, só para dar a dimensão do
problema, a pedofilia acobertada por seis décadas pela hierarquia católica
local foi tachada pela Anistia Internacional como o maior crime contra os
direitos humanos já registrado na história daquele país. Para uma instituição
que tem como bandeira a verdade sobre o mundo, ser atingida por problemas
éticos que constituem crime representou um duro golpe. E a mazela dos
escândalos de abuso sexual envolvendo crianças afastou muitos simpatizantes do
catolicismo. É o que defende o cientista da religião Sung. “O militante não
terá sua fé abalada. Mas os que se sentiam católicos por uma afinidade de
infância ou inspirados em alguma figura pública podem ter deixado de ser por causa
desses fatos.”
Para piorar, a Igreja não foi hábil na cicatrização da
ferida. “Ela trabalhou a questão na base do segredo e do corporativismo. A
lógica interna de uma instituição que se protege e não ventila o problema levou
a ampliar o fenômeno, tornando-o uma sensação nos meios de comunicação”, afirma
a socióloga da religião Brenda Carranza, da PUC de Campinas. Só há pouco tempo
Bento XVI decidiu ordenar que os bispos abrissem normativas internas contra
padres suspeitos de ser pedófilos e informassem as autoridades civis. Em
setembro, ao visitar sua terra natal, a Alemanha, que perdeu 180 mil adeptos no
ano passado por conta dos abusos sexuais praticados por sacerdotes, disse:
“Posso compreender que, em vista de tais informações, alguém diga: ‘Esta já não
é a minha Igreja.”
5 Ausência de lideranças
Dom Hélder Câmara,
arcebispo emérito de Olinda e Recife, falecido em 1999 aos 90 anos, foi quatro
vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Grande defensor dos direitos humanos
durante a ditadura militar brasileira, homem de vida simples que morava no quartinho
de uma sacristia no Recife, ele foi um expoente internacional da Igreja
Católica. Multidões se mobilizaram ao seu redor, no Brasil e na Europa, para
ouvi-lo. Atualmente, porém, não há entre o colegiado católico nacional símbolos
como dom Hélder, capaz de cooptar fiéis por meio do exemplo. “Numa sociedade
moderna, em que a adesão à religião acontece por opção pessoal, é preciso que
haja nomes admirados publicamente”, diz Sung, da Umesp. As grandes figuras
católicas da atualidade são os padres cantores. Eles, porém, fazem eco entre os
católicos militantes, explica Sung, mas não são referência para setores não
atuantes do catolicismo. A Igreja deixou de ser representativa entre os
brasileiros como algo a ser admirado há quase duas décadas. Dom Paulo Evaristo
Arns, cardeal emérito de São Paulo que lutou contra a tortura e os maus-tratos
a presos políticos durante a ditadura, e uma dessas figuras que inspiraram
muitos católicos, se aposentou em 1998. “Dom Paulo é uma personalidade que
enfrentou um regime militar, criava afinidade entre o povo e a instituição”,
afirma o padre Libanio. Aos 90 anos, Arns vive recluso em Taboão da Serra, na
Grande São Paulo, enquanto sacerdotes empunham microfones para cantar e fazer
coreografias de suas músicas no altar.
6 Comunicação centralizada
7 Perda de identidade social
Houve um tempo, em
muitas cidades do interior do País principalmente, que frequentar uma igreja
era condição obrigatória para quem quisesse engatar um relacionamento amoroso
sério. Quantos garotos não foram riscados por potenciais sogras da lista de
pretendentes pelo fato de não irem à missa? Assumir-se membro de uma entidade
religiosa – católica, de preferência – conferia pertencer a um grupo social.
Diante da pressão para uma definição religiosa, muita gente tendia a assumir a
crença na qual havia sido batizado, mesmo que exercitasse também a sua fé em
terreiros de umbanda ou centros espíritas. “Católico era o imenso guarda-chuva
cultural e religioso que permitia o trânsito espiritual”, diz Brenda Carranza,
da PUC. Com a disseminação do processo de secularização no campo religioso
nacional, essa prática foi ficando obsoleta. A possibilidade de expressar a fé
livre de preconceitos tem feito com que cada vez mais os brasileiros, quando
submetidos a censos, assumam que não seguem os dogmas defendidos pela Santa Sé
ou mesmo nenhum credo – daí o grupo dos sem-religião também estar em
crescimento. O catolicismo, então, perdeu a status de produtor de identidade
social.
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