sexta-feira, 6 de julho de 2012

"Espirito de carne" - Por Fagner Dalbem -


Somos “sujeito corpo”. Manifestamo-nos no corpo e nos gestos do corpo... Carne não é expressão somente da realidade biológica, mas da profundeza do desejo, e o desejo pode ser considerado como espiritual.



Somos “sujeito corpo”. Manifestamo-nos no corpo e nos gestos do corpo. Segundo Merleau-Ponty nosso corpo é um eu natural que pode agir sem o “nosso” comando e “nossa” vontade, uma força própria que nos move[1]. Tem-se a tendência de associar a vontade exclusivamente à razão, separando-a da afetividade, da sensibilidade, ou seja, do que chamamos o campo do desejo. Porém a vontade é o desejo de um sujeito que assumiu o seu corpo e não se deixa levar por ele. A vontade é a articulação entre o sensível e o intelecto. Desse modo a própria concupiscência não é inimiga, pois pode vir a reforçar a vontade. O amor se dá no encontro entre desejo e liberdade, ele é à vontade em toda a sua força[2]. “Assim compreendida, a vontade não é somente determinação para agir. É disposição para acolher. Não é só domínio de si mesmo, mas liberação de si”[3]
            A revelação Cristã entende que o corpo é essencialmente relacional, ou seja, é incorporação, pois, somos parte do corpo de Cristo. A vida é um dom do criador revelado na criação e na filiação. Deus se faz presente em nossa carne por meio da liberdade. É próprio da vida espiritual o dom, mas somente se há encarnação. É assim que é possível o “um para o outro”. O corpo é lugar de imanência e transcendência. Não é uma sacralização do corpo, pois  nada no mundo pode ser considerado divino. No entanto, a criação é expressão da aliança na qual Deus se comunica.
            Segundo São Paulo, vivemos no corpo da primeira criação, sujeitos a doença e a morte, mas iremos receber a renovação do nosso corpo no fim dos tempos, quando tivermos o corpo espiritual. Porém, o Espírito Santo já habita no corpo e atua transformando-o. Mas, só seremos o que somos chamados a ser, na ressurreição. “Nosso corpo carnal é já espiritual enquanto Templo do Espírito Santo: torna-se espiritual enquanto está em relação com o corpo espiritual de Cristo: será plenamente espiritual quando formos semelhantes a ele”[4]. O corpo está em gênese, em vir a ser, está sempre nascendo, este, portanto, é inacabado. “Para os Padres gregos, a carne é, ao mesmo, tempo, objeto e meio da salvação: objeto porque meio, e vice-versa”[5].
            O ágape cristão não pode ser interpretado como uma negação do corpo. “Eros sem ágape, ágape sem eros são duas maneiras simétricas de negar a encarnação. Ora, sucede que a recusa da encarnação é também a recusa do dinamismo espiritual”[6].  Carne não é expressão somente da realidade biológica, mas da profundeza do desejo, e o desejo pode ser considerado como espiritual[7], pois nenhum gesto humano é puramente corporal, ou puramente espiritual. As condutas sexuais, por exemplo, não são um encadeamento de reflexos, e o desejo consiste num movimento para o outro. Ou seja, estamos falando de algo que é mais do que necessidade. A necessidade baseia-se sobre uma falta, uma carência. Já o desejo baseia-se não na satisfação, mas no encontro. Aspirar ao corpo é estar aberto ao encontro, pois ser corpo é fazer corpo, com Cristo e com os irmãos[8].
            A cultura bíblica espiritualizou Deus. No entanto o Espírito que pairou sobre as águas, ressuscitou o corpo de Jesus, e dará a vida aos nossos corpos (Rm 8,11). Ou seja, sua ação se situa no campo do corpo. “Espiritual não poderia ser considerado como simplesmente sinônimo de imaterial, incorporal ou suprassensível”[9]. O sensível também nos fala de Deus.
            Concluímos então que espiritualização é a personalização, é a unificação da pluralidade das pulsões. Ser espiritual é viver o dinamismo de doação que se dá no e por meio do corpo. É ser sensível, oferecido, entregue, vulnerável, fraco para o outro. É deixar o coração de pedra tornar-se coração de carne. “Descobrindo a fraqueza do outro, deixar de esconder sua própria fraqueza. Na ternura, duas fraquezas se reconhecem e confessam uma à outra. Dois seres se conhecem como encarnados, isto é, vulneráveis, próximos, oferecidos. Longe de ser desencarnação, a espiritualização é encarnação”[10].
 
Fagner Dalbem Mapa, CSsR
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[1] Cf. LACROIX, Xavier. O corpo de Carne: As dimensões ética, estética e espiritual do amor. São Paulo: Loyola, 2009. p. 137.
[2] Cf. Ibdem. p. 185.
[3] Ibdem. p. 186.
[4] Ibdem. p. 161.
[5] Ibdem. p. 169.
[6] Ibdem. p. 174
[7] Cf. Idem
[8] Cf. Ibdem. p.171-175
[9] Ibdem. p.194.
[10] Ibdem. p.196.

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