Somos “sujeito corpo”. Manifestamo-nos no corpo e nos gestos do corpo... Carne não é expressão somente da realidade biológica, mas da profundeza do desejo, e o desejo pode ser considerado como espiritual.
Somos “sujeito corpo”. Manifestamo-nos no corpo e nos gestos
do corpo. Segundo Merleau-Ponty nosso corpo é um eu natural que pode agir sem o
“nosso” comando e “nossa” vontade, uma força própria que nos move[1]. Tem-se a tendência de
associar a vontade exclusivamente à razão, separando-a da afetividade, da
sensibilidade, ou seja, do que chamamos o campo do desejo. Porém a vontade é o
desejo de um sujeito que assumiu o seu corpo e não se deixa levar por ele. A
vontade é a articulação entre o sensível e o intelecto. Desse modo a própria
concupiscência não é inimiga, pois pode vir a reforçar a vontade. O amor se dá
no encontro entre desejo e liberdade, ele é à vontade em toda a sua força[2]. “Assim compreendida, a
vontade não é somente determinação para agir. É disposição para acolher. Não é
só domínio de si mesmo, mas liberação de si”[3]
A revelação
Cristã entende que o corpo é essencialmente relacional, ou seja, é incorporação,
pois, somos parte do corpo de Cristo. A vida é um dom do criador revelado na
criação e na filiação. Deus se faz presente em nossa carne por meio da
liberdade. É próprio da vida espiritual o dom, mas somente se há encarnação. É
assim que é possível o “um para o outro”. O corpo é lugar de imanência e
transcendência. Não é uma sacralização do corpo, pois nada no mundo pode ser considerado divino. No
entanto, a criação é expressão da aliança na qual Deus se comunica.
Segundo São
Paulo, vivemos no corpo da primeira criação, sujeitos a doença e a morte, mas
iremos receber a renovação do nosso corpo no fim dos tempos, quando tivermos o
corpo espiritual. Porém, o Espírito Santo já habita no corpo e atua
transformando-o. Mas, só seremos o que somos chamados a ser, na ressurreição. “Nosso
corpo carnal é já espiritual enquanto Templo do Espírito Santo: torna-se
espiritual enquanto está em relação com o corpo espiritual de Cristo: será
plenamente espiritual quando formos semelhantes a ele”[4]. O corpo está em gênese,
em vir a ser, está sempre nascendo, este, portanto, é inacabado. “Para os
Padres gregos, a carne é, ao mesmo, tempo, objeto e meio da salvação: objeto porque
meio, e vice-versa”[5].
O ágape
cristão não pode ser interpretado como uma negação do corpo. “Eros sem ágape,
ágape sem eros são duas maneiras simétricas de negar a encarnação. Ora, sucede
que a recusa da encarnação é também a recusa do dinamismo espiritual”[6]. Carne não é expressão somente da realidade
biológica, mas da profundeza do desejo, e o desejo pode ser considerado como
espiritual[7], pois nenhum gesto humano
é puramente corporal, ou puramente espiritual. As condutas sexuais, por
exemplo, não são um encadeamento de reflexos, e o desejo consiste num movimento
para o outro. Ou seja, estamos falando de algo que é mais do que necessidade. A
necessidade baseia-se sobre uma falta, uma carência. Já o desejo baseia-se não
na satisfação, mas no encontro. Aspirar ao corpo é estar aberto ao encontro,
pois ser corpo é fazer corpo, com Cristo e com os irmãos[8].
A cultura
bíblica espiritualizou Deus. No entanto o Espírito que pairou sobre as águas,
ressuscitou o corpo de Jesus, e dará a vida aos nossos corpos (Rm 8,11). Ou
seja, sua ação se situa no campo do corpo. “Espiritual não poderia ser
considerado como simplesmente sinônimo de imaterial, incorporal ou suprassensível”[9]. O sensível também nos
fala de Deus.
Concluímos
então que espiritualização é a personalização, é a unificação da pluralidade
das pulsões. Ser espiritual é viver o dinamismo de doação que se dá no e por
meio do corpo. É ser sensível, oferecido, entregue, vulnerável, fraco para o
outro. É deixar o coração de pedra tornar-se coração de carne. “Descobrindo a
fraqueza do outro, deixar de esconder sua própria fraqueza. Na ternura, duas
fraquezas se reconhecem e confessam uma à outra. Dois seres se conhecem como
encarnados, isto é, vulneráveis, próximos, oferecidos. Longe de ser
desencarnação, a espiritualização é encarnação”[10].
Fagner Dalbem Mapa, CSsR
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