Tem-se medo "do significado dado pelo Concílio Vaticano
II ao que significa ser católico", da "liberdade de expressão que
isso implica". Consequentemente, também existe o medo de permitir que
"as vozes críticas sejam ouvidas, porque algumas delas poderiam legitimamente
levar à mudança". Uma mudança que gera o temor de perder "poder e
controle".
Nessa chave de leitura, as irmãs norte-americanas, postas na
mira pelo Vaticano com o comissariamento do seu órgão de coordenação mais
importante, a Leadership Conference of Women Religious (LCWR), tornam-se
perigosas "porque, talvez, sejam o último grupo organizado a refletir o
espírito conciliar do que realmente significa ser Igreja".
A Ir. Jeannine Gramick é muito decidida: desde 2001, membro
da congregação das Irmãs de Loretto, desde sempre dedicada ao ministério
voltado às minorias sexuais e, nesse âmbito, cofundadora, juntamente com o Pe.
Robert Nugent, da associação New Ways Ministry, empenhada com a busca da
justiça social para gays e lésbicas.
A Ir. Gramick aceitou compartilhar com Adista as suas
opiniões e o seu ponto de vista sobre a medida tomada recentemente pelo
Vaticano e sobre o futuro da LCWR.
Eis a entrevista.
Com o Vaticano II, a Igreja, povo de Deus, foi chamada a
estar mais perto do mundo. As religiosas norte-americanas encarnaram esse apelo
em uma ampla variedade de ministérios, vivendo profundamente no mundo e ouvindo
as pessoas que, de diversos modos, se encontram em dificuldades. Pode nos dizer
que tipos de ministérios vocês têm desenvolvido?
Houve inúmeros casos menos conhecidos em que bispos
diocesanos puseram em prática as posições vaticanas. Por exemplo, as religiosas
receberam a ordem de renunciar à direção de órgãos que tivessem relação com o
HIV-Aids, porque promoviam o uso dos preservativos. Algumas religiosas foram
demitidas dos seus cargos paroquiais ou diocesanos porque apoiavam a ordenação
sacerdotal feminina.
Desde 1956, a LCWR representa a maioria das congregações
religiosas femininas dos EUA. Quais foram as suas maiores conquistas,
atividades e interesses?
A LCWR oferece uma vasta gama de atividades e de programas
que são de apoio às superioras e visam a reforçar as relações entre os
componentes da LCWR com os outros grupos importantes. Entre essas atividades,
há uma oficina anual, que inclui um retiro, para as novas líderes e um manual
que ajuda a desenvolver as competências importantes para a Leadership. Ela
também produz regularmente materiais escritos, como uma publicação trimestral
sobre justiça social, um livrinho de oração e reflexão, um jornal chamado
Occasional Papers e e informações sobre justiça e paz.
Acredito que a conquista mais importante da LCWR foi a de
ter conscientizado todas as religiosas que a ela aderem, mas também a um
público mais amplo, de todos os tipo de temas que envolvem a justiça. Ela
oferece reflexões teológicas, análises sociais e sugestões para a ação sobre
muitas questões, como a justiça econômica, a defensa dos pobres, o diálogo com
o Islã e inter-religioso, a pena de morte, a reforma das políticas de
imigração, as mudanças climáticas e as questões ambientais, a reforma da saúde,
as armas nucleares, o testemunho contra a tortura, o cancelamento da dívida
para os países empobrecidos, o tráfico de órgãos e a militarização do espaço, e
muitos outros assuntos ligados à justiça. A lista é praticamente inesgotável.
Nos últimos anos, as religiosas estiveram no alvo do
Vaticano. Além de casos individuais, as congregações religiosas femininas
sofreram uma visitação apostólica. O mesmo aconteceu com a LCWR. Há uma relação
entre as duas visitas apostólicas? Do que Roma tem medo?
Eu não fui demitida porque a Congregação para a Doutrina da
Fé não é a minha chefe e nunca me apoiou financeiramente nesse ministério. A
Congregação, em 1999, afirmou que eu não deveria me envolver nesse ministério,
mas, depois de um discernimento aprofundado, eu concluí que Deus continuava me
chamando a ele, e então decidi não cooperar com a opressão do silêncio. Eu
continuo me ocupando das pessoas gays e lésbicas.
Quanto ao resto, sim, acredito que haja uma ligação entre as
visitas às congregações religiosas individuais e a avaliação doutrinal (ou
inquisição doutrinal) da LCWR, ambas iniciadas no início de 2009. Muitas
pessoas consideram que ambos os projetos de investigação foram iniciados para
eliminar a discordância e varrer os últimos vestígios da renovação trazida pelo
Vaticano II. No documento que apresenta o processo da visitação, uma das
perguntas feitas às líderes das comunidades era: "Qual é o processo posto
em prática para responder às coirmãs que expressam pública ou privadamente a
sua discordância com relação ao ensino de autoridade da Igreja?".
A meu ver, a Cúria vaticana e o Papa Bento XVI têm medo do
significado dado pelo Concílio Vaticano II ao que significa ser católico. Eles
têm medo da liberdade de expressão que isso implica. Eles tem medo de permitir
que vozes críticas sejam ouvidas, porque algumas dessas vozes poderiam
legitimamente levar à mudança. As personalidades autoritárias têm medo da
mudança e de perder poder e controle.
Ken Briggs, autor de Double Crossed: Uncovering the Catholic
Church’s Betrayal of American Nuns [Traídas: Revelando a traição das irmãs
norte-americanas pela Igreja Católica], considera que as irmãs conservaram,
mais do que qualquer outro grupo da Igreja, a ética e o espírito conciliar,
apesar da vigorosa oposição dos últimos dois papas. As irmãs norte-americanas
são perigosas porque são, talvez, o último grupo organizado a refletir o
espírito conciliar do que realmente significa ser Igreja.
Como a senhora vê o futuro da LCWR à luz da nomeação de um
comissário que irá rever seus estatutos e programas?
A história tem demonstrado que a política de apaziguamento
de Neville Chamberlain [primeiro-ministro do Reino Unido de 1937 a 1940] não
satisfez os desejos de um ditador como Hitler. A Igreja Católica institucional,
da forma como é atualmente, é um Estado totalitário religioso que, desde a
época do papado de Pio IX, viveu uma centralização sempre crescente. O Concílio
Vaticano II tentou trazer a Igreja de volta aos trilhos de uma comunidade de
fiéis no caminho de Cristo, mas as forças curiais tentaram desviar a renovação
nos últimos 30 anos ou mais.
A segunda opção, acredito eu, respeitaria a honra e a
integridade das congregações religiosas que tentaram, com a sua fidelidade,
manter vivos os valores de uma Igreja como comunidade de discípulos fiéis de
Cristo. A reconstituição da LCWR como órgão que respeita o Vaticano, mas não
abandona nada da sua autonomia, representaria uma aplicação do valor conciliar
da subsidiariedade. Essa reconstituição seria uma vantagem para as religiosas,
mas também para a Igreja como um todo. Isso afirmaria a necessidade de
abandonar uma atitude de obediência cega em favor de uma capacidade de decisão
moral moral.
Não sei por qual escolha a LCWR vai optar. Ela já cooperou
com a Congregação para a Doutrina da Fé na sua investigação doutrinal, portanto
não sei se a organização vai continuar colaborando na sua opressão, ao invés de
resistir à tomada de posse por parte do Vaticano. Eu continuo alimentando a
esperança de que as novas lideranças da LCWR sejam mais realista ao constatar
que tudo isso tem a ver com o totalitarismo religioso e que rejeitarão a medida
como invasão indevida e como afronta à natureza profética da vida religiosa.
Em que medida esse passo do Vaticano vai tocar na vida, no
ministério e no papel das religiosas na Igreja dos EUA no futuro?
A intervenção vaticana terá efeitos enormes sobre a vida, o
ministério e o papel das religiosas dos EUA e da Igreja mundial. Os efeitos
irão depender do curso que a LCWR irá optar por tomar. Eu gostaria de ser
otimista e acreditar que a decisão da LCWR irá fortalecer não só as religiosas,
mas também a Igreja inteira. Rejeitar gentilmente o fato de serem dominadas por
um sistema patriarcal que não compreende a natureza comunitária da Igreja será
demonstrar que um cristão maduro não obedecem cegamente aos homens, mas segue o
chamado de Deus na oração.
Essa escolha significará que não há necessidade de pessoas
controladoras da ortodoxia ou de inquisições. Essa escolha significará que
Cristo, e não o Vaticano, é a videira, e nós somos os ramos. Essa escolha
significará que o Espírito de Deus guia a Igreja e que, com esse guia, não
temos medo. Com esse guia, temos fé e confiança.
Fonte: ihu
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