Hoje, falar de direitos humanos e do respeito a eles devido
é a coisa mais natural do mundo. A humanidade, depois de muita dor e
sofrimento, de tantas atrocidades cometidas no passado, aprendeu a duras penas
que cada homem, cada mulher e cada grupo humano é sujeito de direitos.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos, redigida e promulgada logo após a
desastrosa experiência da Segunda Guerra Mundial, diz em seu preâmbulo que
"o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo”. Diz igualmente "que o desprezo e o desrespeito
pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência
da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade
de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da
necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum”.
A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos os
países democráticos foram modificando as suas Constituições e incluindo
princípios que não só garantissem, mas ampliassem tais direitos. No caso do
Brasil, a Constituição "cidadã” de 1988, elaborada e promulgada após o
período trágico da ditadura militar, que se instaurou no país a partir do golpe
militar de 1964, é a garantia desses direitos. Embora não faltem aqueles que,
de vez em quando, querem aplicar novos golpes, tentando, através de emendas à Constituição
Federal, solapar e eliminar o que foi conquistado com muita luta e suor.
A Igreja Católica custou aceitar e respeitar a proclamação
destes direitos humanos. Enquanto no mundo avançava a luta por estes direitos,
os católicos entraram no século XX sendo obrigados a engolir coisas absurdas
como aquelas do famoso Syllabus de Pio IX. Felizmente veio o Vaticano II, o
qual, em diversos dos seus documentos, reconheceu o valor supremo da dignidade
humana e proclamou que a Igreja deve ser a promotora e a defensora dos seus
inalienáveis direitos. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, por exemplo,
pede que os direitos das pessoas "sejam mais bem assegurados”, de modo
"que todos os cidadãos, e não apenas alguns privilegiados, possam gozar realmente
dos direitos da pessoa (nº 73). Nesse sentido, continua a Gaudium et Spes, são
deploráveis todas as "formas totalitárias ou ditatoriais, que lesam os
direitos das pessoas ou dos grupos sociais” (nº 75). As ações e atos
decorrentes das imposições, dos totalitarismos e das ditaduras são verdadeiros
crimes e as pessoas devem ser encorajadas a lutar e "resistir abertamente
aos que as querem impor” (nº 79)
Diante deste fato era de se esperar que, em pleno século
XXI, a Igreja Católica não só proclamasse em seus documentos e pronunciamentos
o respeito pelos direitos humanos, mas desse um testemunho ímpar de uma prática
incontestável deste respeito. Mas, infelizmente, não é o que vem acontecendo. A
cada dia tomamos conhecimento de práticas absurdas, envolvendo os seus
dirigentes, e que são exemplos evidentes da violação dos direitos humanos mais
elementares.
A mais recente dela diz respeito a uma mulher de vida
consagrada, reeleita pela quase totalidade dos votos para uma função num dos
Regionais da CNBB, e destituída pela autoridade hierárquica superior, por meio
de carta, em plena Semana Santa, com a simples desculpa de que naquela função
deveria estar um padre. A eleição da mulher seguiu fielmente os estatutos
aprovados pela instituição eclesiástica e nos quais não há nenhuma cláusula
determinando que só pudesse concorrer àquele cargo alguém que fosse presbítero.
Vale dizer que a instituição eclesiástica em causa tem também reconhecimento
civil e, por isso, a decisão arbitrária do hierarca produziu também um problema
jurídico perante as leis brasileiras.
A decisão arbitrária da autoridade hierárquica causou grande
mal-estar não só para a mulher destituída de sua função, mas também para todos
aqueles e aquelas que nela votaram e que, de repete, se viram desrespeitados e
ridicularizados pela autoridade máxima da hierarquia da Igreja no Regional. A
reeleição da mulher, além de seguir fielmente o estatuto canônico e civil, foi
aprovada pelo bispo referencial presente ao ato e que, naquele instante,
representava os demais bispos do Regional. A eleição e a posse constam em ata,
a qual deu formalidade legal ao ato.
Creio que não seria nem mesmo necessário dizer que esta
atitude desrespeitosa da máxima autoridade eclesiástica do Regional não tem
motivos evangélicos e humanos. Só pode ser motivada por caprichos, por despeito
e por medo de que a presença dessa mulher numa instância significativa do
Regional coloque em crise a sua frágil autoridade. De fato, por trás de todo
autoritarismo se escondem sempre a fragilidade e a incompetência. A vida
íntegra e profética de determinadas pessoas sempre incomoda os personagens
eclesiásticos autoritários, os quais têm sempre o que esconder por debaixo da
capa da arrogância e da prepotência.
Creio ainda que não seria nem mesmo necessário lembrar que
estas atitudes das autoridades eclesiásticas ferem e contradizem profundamente
o Evangelho, o qual é muito radical em afirmar que as lideranças eclesiais não
devem se comportar como os tiranos deste mundo que oprimem e dominam (Mc 10,42-45).
Não seria preciso lembrar que o comportamento das pessoas na comunidade cristã
deve ser sempre de respeito, carinho e ternura, uma vez que nela não devem
existir excelências, eminências, senhores, mestre e pais, mas apenas irmãos e
irmãs (Mt 23,8-12). Não seria preciso recordar que o distintivo do cristão é a
prática do amor (Jo 13,35) e que as autoridades eclesiásticas, se quiserem ser
sinal sacramental de Cristo Pastor, devem "lavar os pés” das pessoas (Jo
13,12-17) e tratá-las como amigas e não como escravas (Jo 15,12-17).
É claro que nem todas as autoridades eclesiásticas se
comportam desse modo. Felizmente a maioria absoluta dos padres e bispos é
cuidadosa e respeitosa, tratando os fiéis com carinho e zelo e não se
comportando de forma autoritária. Porém, quando acontecem casos como este o
estrago é muito grande, uma vez que na Igreja Católica a figura da autoridade
eclesiástica ainda se encontra revestida de grande significado religioso,
educativo e moral. Ao cometer um ato desrespeitoso como este a autoridade
eclesiástica sinaliza claramente que para ela a mensagem do Evangelho não
possui nenhum valor e pode ser anulada a qualquer hora e por qualquer motivo.
Não podemos esquecer que na linguagem da comunicação – elemento fundamental
para a evangelização – os símbolos e gestos costumam falar mais fortes do que
as palavras. Os meios mais poderosos são aqueles revestidos de afeto e de
humanidade e quando os gestos e símbolos são de autoritarismo e dominação,
terminam por deformar e decepcionar os crentes, que esperam de seus pastores
atitudes mais em conformidade com as do Mestre e Senhor, que quis lavar os pés
de seus discípulos e não pisá-los e humilhá-los.
As autoridades eclesiásticas não podem esquecer que os
tempos são outros e que as pessoas não aceitam mais arbitrariedades e atitudes
caprichosas como esta. As pessoas que legitimamente participaram da legítima
reeleição da irmã estão não só indignadas, mas também revoltadas, pois sabem
perfeitamente que a atitude da autoridade eclesiástica foi arbitrária,
desrespeitosa e antievangélica. Um ato como este tem um terrível poder
destruidor e, sem dúvida alguma, vai contribuir para que muita gente se afaste
indignada de uma Igreja incapaz de dar provas reais de amor cristão.
Portanto, não nos deve surpreender se nos últimos vinte anos
a percentagem de católicos caiu de 83,34% para 67,84 %. Dizem que os bispos
católicos do Brasil, reunidos recentemente em Aparecida, ficaram assustados com
esses dados. Creio, porém, que deveriam se assustar com o que alguns deles e
seus padres andam fazendo, de forma a levar os fiéis a se distanciarem de suas
comunidades.
José Lisboa Moreira de Oliveira.
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações
e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e
professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR)
da Universidade Católica de Brasília
Fonte: Adital
Nenhum comentário:
Postar um comentário