A Páscoa, como todos sabemos, é o
dia em que celebramos o surgimento do primeiro espécime ovíparo de coelho que
metaboliza cenoura em chocolate. E como o coelho escolheu as crianças para
serem, com ele, protagonistas desta data, recontarei aqui uma historieta.Uma
ação de fiscalização de trabalhadores do governo federal libertou, há alguns
anos, 150 pessoas em Placas (PA), dentre elas mais de 30 crianças. Atuavam na
colheita do cacau.
O grupo estava sujeito a
condições humilhantes de habitação, alimentação e higiene. De acordo com o
Ministério do Trabalho no estado, a maior parte das crianças estava doente, com
leishmaniose ou úlcera de Bauru. Elas eram levadas ao trabalho para aumentar a
remuneração, se sujeitando a todo tipo de situação.
Uma das crianças havia perdido a
visão ao cair de cara em um toco de árvore.
Eles já começavam o serviço
devendo aos empregadores por terem que pagar equipamentos de trabalho e bens de
necessidade básica. De acordo com as informações colhidas pelos fiscais, quem
não cumpria as determinações dos patrões era ameaçado de morte.
Parte da indústria de alimentação
– que ajuda o Coelho na sua tarefa pascal – e compra não só cacau, mas também
outras matérias-primas de setores que vêm sendo envolvidos em trabalho escravo
e trabalho infantil contemporâneo, não demonstra lá muita energia para garantir
o controle e a transparência de suas cadeias produtivas. Dentro e fora do
Brasil.
Há muitas formas de se controlar
a qualidade da própria cadeia produtiva, tanto que em alguns setores isso já
acontece. Tivemos avanços consideráveis na produção de soja, de algodão, de
frutas até da pecuária bovina – recordista histórica em número de casos de
trabalho escravo. Mas adotar esse comportamento
significa investir uma boa grana para mudar processos. E quem quer
investir grana em algo que quase ninguém se importa?
Afinal de contas, o que é
realmente fundamental para você: que uma criança não tenha perdido um olho na
colheita de cacau para fazer um ovo de chocolate ou o que ovo não venha com um
brinquedinho repetido?
O consumidor não pode ser culpado
porque ele não tem informação, claro. Mas, convenhamos: para quê sair da
ignorância? É um lugar tão quentinho, não é mesmo?
Mudança é possível até porque
ninguém quer ficar sem chocolate, que é bom. E ninguém quer gerar desemprego na
indústria ou na agricultura. Tanto que temos experiências de cultivo inclusivo
de cacau orgânico, feito por pequenos produtores, como aqueles do Projeto de
Desenvolvimento Sustentável “Esperança'', em Anapu – pelo qual viveu e morreu a
irmã Dorothy Stang.
Mas mudança mata. Dorothy, como
sabemos, suicidou-se com seis tiros, no corpo e na cabeça, em um local ermo,
apenas para incriminar honestos fazendeiros da região avessos à mudança.
Não me lembro quando deixei de
ter fé no divino. Mas ainda guardo um pouco de fé no mundano, talvez por
teimosia de gostar de gente, talvez só de birra com o meteoro que um dia virá
dar reset no planeta.
Então, me pergunto: se houvesse
valores morais envolvidos na Páscoa, como liberdade e renascimento, a reflexão
sobre o mundo estaria no centro do dia de hoje? Reflexão, não culpa – pois
culpa é algo pegajoso e fedorento que não leva a lugar algum.
Mas como não há, então viva o
coelho.
Fonte: Blog de Sakamoto
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