Após mais de meio século ajudando
a ditar um padrão de beleza irreal para a maioria das meninas e mulheres, a
Mattel, fabricante da icônica Barbie, resolveu diversificar. Agora, a boneca
apresenta quatro tipos de corpo e 24 de cabelo, sete tons de pele e 22 cores de
olhos.
Por Leonardo Sakamoto
Isso vem com atraso, em um
momento em que a própria Barbie perde a relevância, simbólica e comercial,
frente a videogames, smartphones e computadores. A mudança, portanto, é mais
consequência de um mundo que se transforma do que vetor de transformação desse
mundo.
É claro que isso contribui para o
debate que vem sendo travado incansavelmente na sociedade sobre padrões ditados
pela indústria da moda e do entretenimento e de como isso torna a vida de
milhões de pessoas um inferno. Então, toda a ação é válida.
Mas uma amiga, sábia e antenada
pesquisadora, me lembrou que a previsível satisfação de pais e ativistas pela
mudança encobre uma discussão de fundo. Pois não é a “consciência'' da
corporação que leva a essa mudança, mas a oportunidade de novos nichos de
mercado.
Para tanto, ele demanda uma
grande quantidade de recursos naturais e de mão de obra para fabrica-lo. E para
que seja rentável à empresa que o planejou, faz-se necessário que esses custos
(matéria prima e trabalho) sejam os mais baixos possíveis. É claro que dá para
produzir pagando preços justos de matéria-prima e trabalho, mas aí o produto
para consumo não seria tão de massa assim. Ou os lucros não seriam tão grandes.
E talvez nem pudesse ser embutida a obsolescência programada de uma sociedade
em que nada é feito para durar.
Dito isso, não se pode negar a
engenhosidade do capitalismo, que captura o desejo de mudança em um símbolo,
transforma esse símbolo em mercadoria, o fabrica em série, realiza campanhas
para explicar o motivo pelo qual o povo deve ama-lo, empacota-o e o vende a
prestações em uma loja perto de você. Parece que ele está sendo revolucionário,
mas apenas quer ganhar dinheiro com quem deseja aquele símbolo.
A fetichização é tão velha quanto
o comunista barbudo – Marx, não Jesus. Mas conseguimos sempre superar o seu
alcance.
O problema é que a produção em
massa desses símbolos pode encobrir, como já citado, a exploração irracional
dos recursos naturais e do trabalho humano. Sim, não raro por trás de
mercadorias que representam mudanças sociais, há – ironicamente – desmatamento,
poluição, trabalho infantil, escravos.
Pode parecer paradoxal, mas é
apenas mais uma das contradições do sistema. E ele, quer dizer, nós, vivemos
muito bem com isso.
Por exemplo, há denúncias contra
fornecedores da Mattel por seus trabalhadores na China não contarem com
proteção adequada, atuarem por longas jornadas com poucas ou nenhuma pausas,
estarem sujeitos a péssimas condições, desrespeitando, inclusive, as leis
trabalhistas locais. A empresa nega.
Vejamos outros casos. Creio que
todos lembram de “Wall.e'' – uma animação produzida pela Disney e a Pixar que
conta a história de um robozinho cuja missão é organizar o lixo em que se
transformou o planeta devido ao consumismo desenfreado dos habitantes e à
ganância de grandes corporações.
De acordo com o filme, no futuro,
a Terra terá se transformado em um lixão impossível de sustentar vida e os
seres humanos terão se mudado para uma nave espacial à espera de que os robôs
limpem as coisas. Paro por aqui para não dar spoiler – se bem que, a esta
altura, você já deveria ter assistido ao filme.
Na época, na cadeira do cinema,
fiquei matutando que Wall.e seria um bom instrumento para discutir com os mais
novos a diferença entre consumir para viver e viver para consumir.
Pouco depois, passando por um
loja, me deparei com uma prateleira inteira de produtos do filme. A vendedora
me mostrou um Wall.e que funcionava à corda e cantava e dançava, um outro
Wall.e para bebês (na verdade, para os pais dos bebês…) Explicou que a versão
de controle remoto havia acabado, tamanha a procura.
Vale ressaltar que os brinquedos
inspirados em filmes têm vida curta – duram o suficiente até o próximo sucesso
de bilheteria trazer novos bonecos. Ou seja, dentro de pouco tempo viram lixo
de plástico e ferro.
O que temos aqui? O licenciamento
de um filme sobre o consumismo promovendo mais consumismo. A Disney e a Pixar
poderiam ter revolucionado e não autorizado a produção de quinquilharias
baseadas neste filme? Sim, claro, mas isso aconteceria em uma realidade
paralela, na qual o céu é verde e leite dá em árvore.
Outro exemplo interessante, que
reúne a questão do padrão de beleza e da responsabilidade sobre o consumo, é
uma dobradinha de comerciais. A Dove lançou uma propaganda sobre a importância
de conversar com as meninas a respeito de padrões de beleza antes que a
indústria da beleza fizesse isso. O resultado é muito bom e pode ser visto
abaixo:
Pouco depois, o Greenpeace fez
uma paródia do comercial, criando outro produto muito bom também, cutucando a
Dove:
Fale com a Dove – que utilizava,
segundo o Greenpeace, óleo de plantações de palma que ocupavam áreas onde antes
estavam florestas tropicais – antes que fosse tarde, diz o mote do filme.
É claro que a mensagem do segundo
comercial não anula a do primeiro, da mesma forma que é importante que bonecas
sejam mais próximas das meninas de verdade. Mas é fundamental lembrar que, para
atingir o objetivo final, fabricantes de brinquedos, de produtos de beleza ou
de qualquer mercadoria, se apropriam de qualquer discurso que possa dar lucro.
Pois, no fundo, empresas não
vendem mercadorias, mas estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de
ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma
construção do que é bom e do que é ruim.
Muitos de nós ficamos tanto tempo
trabalhando que nos tornamos compradores compulsivos de símbolos daquilo que
não conseguiremos obter por vivência direta. Através desses objetos, enlatamos
a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco, o tempo da já citada
obsolescência programada. Mas também enlatamos o nosso ativismo por determinado
tema ou uma fórmula mágica para se livrar da culpa por não conseguirmos nos
dedicar àquilo que achamos importante para a vida em comunidade.
Afinal, se a empresa mostra no
comercial que planta meia dúzia de dentes-de-leão para compensar toneladas de
emissão de carbono, protege uma família de perequitos-que-dizem-ni e doa dez
estojos de lápis aquarelados para uma comunidade onde são jogados os efluentes
tóxicos a cada produto comprado, ok, vamos adquiri-lo. Assim fazemos nossa
parte e nossa consciência fica leve após a operadora do cartão autorizar.
Celebrar um produto como algo
redentor pelo que ele aparenta ser esconde, na verdade, o que ele pode
representar de fato: uma cadeia produtiva extensa com uma série de problemas
trabalhistas, sociais e ambientais, que trazem alegria a alguns e tristeza a
muito mais.
Este texto é para reclamar de uma
boneca? Não, apenas para lembrar que, na economia de mercado globalizada, o que
os olhos não veem o coração tá pouco se lixando.
Fonte: Blog de Sakamoto
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