terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A Mulata Globeleza: Um Manifesto

A Mulata Globeleza não é um evento cultural natural, mas uma performance que invade o imaginário e as televisões brasileiras na época do Carnaval. Um espetáculo criado pelo diretor de arte Hans Donner para ser o símbolo da festa popular, que exibiu durante 13 anos sua companheira Valéria Valenssa na função superexpositiva de “mulata”. Estamos falando de uma personagem que surgiu na década de noventa e até hoje segue à risca o mesmo roteiro: é sempre uma mulher negra que samba como uma passista, nua com o corpo pintado de purpurina, ao som da vinheta exibida ao longo da programação diária da Rede Globo.


Por  Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro, no #AGORAÉQUESÃOELAS

Para começar o debate em torno dessa personagem, precisamos identificar o problema contido no termo “mulata”. Além de ser palavra naturalizada pela sociedade brasileira, ela é presença cativa no vocabulário dos apresentadores, jornalistas e repórteres da emissora global. A palavra de origem espanhola vem de “mula” ou “mulo”: aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra acepção, são resultado da cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com o animal tido de segunda classe (equus africanus asinus). Sendo assim, trata-se de uma palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura imprópria que não deveria existir.
Empregado desde o período colonial, o termo era usado para designar negros de pele mais clara, frutos do estupro de escravas pelos senhores de engenho. Tal nomenclatura tem cunho machista e racista e foi transferido à personagem globeleza, naturalizado. A adjetivação “mulata” é uma memória triste dos 354 anos (1534 a 1888) de escravidão negra no Brasil.
A mulher negra exposta como Globeleza segue, inclusive, um padrão de seleção estética próxima ao feito pelos senhores de engenho ao escolher as mulheres escravizadas que queriam perto de si. As escravas consideradas “bonitas” eram escolhidas para trabalhar na casa-grande. Da mesma forma, eram selecionadas as futuras vítimas de assédio, intimidação e estupro. Mulheres negras submetidas ao jugo “dos donos”. Era comum que as escravas de pele mais clara, com traços mais próximos do que a branquitude propaga como belo, assumissem esses postos de serviço. Os corpos dessas mulheres não eram vistos como propriedade delas, serviam apenas para ser explorados em trabalhos servis exaustivos além de servir como depósito constante de abuso sexual, humilhação, vexação e violência emocional.
Luiza Bairros tem uma frase muito interessante que explicita muito bem o lugar que a sociedade confere à mulher negra: “nós carregamos a marca”. Não importa onde estejamos, a marca é a exotização dos nossos corpos e a subalternidade. Desde o período colonial, mulheres negras são estereotipadas como sendo “quentes”, naturalmente sensuais, sedutoras de homens. Essas classificações, vistas a partir do olhar do colonizador, romantizam o fato de que essas mulheres estavam na condição de escravas e, portanto, eram estupradas e violentadas, ou seja, sua vontade não existia perante seus “senhores”.
Veja só como isso é verdade: em 2015, a Globo trocou a Globeleza Nayara Justino, eleita por voto popular no programa Fantástico, por uma de pele mais clara, a atual Globeleza Érika Moura, escolhida internamente, já que a primeira “não teria se alinhado à proposta”, segundo eles. Reafirmando “o paladar” eurocêntrico de escolher a mulher negra apta para ser exposta como objeto sexual. Em outras palavras, pautados por racismo e machismo (de forma velada para alguns, para nós, muito evidente) selecionam quais padrões de negras vão explorar em suas vinhetas seguindo critérios de pele mais clara, traços considerados mais finos e corpo mais esbelto, porém voluptuoso e luxurioso “tipo exportação”. A mulher negra, nessa posição, perde novamente a autonomia sobre si mesma e o lugar que ela deve ocupar passa a ser definido por terceiros.
Um exemplo dos estigmas que estão colocados sobre os corpos das mulheres negras, e demonstra como funciona a imposição do lugar que devemos ocupar, é o caso da Vênus Hotentote. Seu nome original é Sarah Baartman. Nascida em 1789 na região da África do Sul, ela foi levada, no início do século 19, para a Europa. Sarah Baartman deu um corpo à teoria racista. Ela foi exibida em jaulas, salões e picadeiros por conta de sua anatomia considerada “grotesca, bárbara, exótica”: nádegas volumosas e genitália com grandes lábios (uma caracteristica presente nas mulheres do seu povo, os khoi-san). Seu corpo foi colocado entre a fronteira do que seria uma mulher negra anormal e uma mulher branca normal, a primeira considerada selvagem.
Por fim, o corpo de Baartman não recebeu nem um enterro digno. Após o falecimento, seu esqueleto, órgãos genitais e cérebro foram preservados e colocados em exposição em Paris, no Musée de l’Homme (Museu do Homem). Até depois de morta ela foi manejada e experimentada como espécime, peça de coleção a serviço da pesquisa e do cientificismo branco europeu. Somente em 2002 a pedido de Nelson Mandela seus restos mortais foram devolvidos à África do Sul. E para muitos, mais de 200 anos depois, ela não foi considerada gente.
A história de Baartman se passou há séculos, mas esse estigma ainda hoje recai sobre nós, negras.Atualmente vemos um canal influente como a Rede Globo que, por quase 30 anos, expõe mulheres negras nuas a qualquer hora do dia ou da noite no período de Carnaval, negando-se a nos representar para além desse lugar de exploração dos nossos corpos no resto de todo o ano. Quantas mulheres negras vemos como atrizes, apresentadoras, repórteres nas grades das grandes emissoras? E quando vemos atrizes, quais são os papéis que estão desempenhando? Raramente vemos mulheres negras na grade da Globo apresentando programas ou sendo protagonistas, mas no período do carnaval, a emissora promove um “caça mulatas” para eleger a nova Globeleza, que somente aparece nua e nessa época do ano.
É necessário entender o porquê de se criticar lugares como o da Globeleza. Não é pela nudez em si, tampouco por quem desempenha esse papel. É por conta do confinamento das mulheres negras a lugares específicos. Não temos problema algum com a sensualidade, o problema é somente nos confinar a esses lugares negando nossa humanidade, multiplicidade e complexidade. Quando reduzimos seres humanos somente a determinados papéis e lugares, se está retirando nossa humanidade e nos transformando em objetos.
Não somos protagonistas das novelas — não somos as mocinhas nem as vilãs, no máximo as empregadas que servem de mera ambientação, adereço (inclusive apto ao abuso) para a estória do núcleo familiar branco. Basta lembrar do último papel da grande atriz Zezé Motta na emissora, onde foi a empregada Sebastiana em Boogie Oggie. Em contrapartida, algumas atrizes como Taís Araujo e Camila Pitanga se destacam, mas não podemos fingir que isso não é por serem jovens e negras com pele mais clara. Mulheres como Ruth de Souza são esquecidas num meio que valoriza grandes nomes como Fernanda Montenegro. Isso não tem nada a ver com talento, já que tanto a primeira como a segunda têm versatilidade e técnica de sobra, mas, sim, com a cor da pele de cada uma e as oportunidades que lhes são dadas.
Qual será o destino das atuais atrizes negras brasileiras?
Ou das meninas negras que sonham estudar teatro e cinema?
Há lugar para elas? Se há, que lugar é esse?
Talvez o mesmo das atrizes negras mais velhas e globelezas: o descarte e o esquecimento quando seus corpos não servem mais. A verdade nua e crua é que a Globeleza, atualmente, só reforça um lugar fatalista, engessado, pré-estabelecido para a mulher negra numa sociedade brasileira racista e machista e esse lugar fixo precisa ser rompido, quebrado, começando com o fim desse símbolo/personagem.
Não aceitamos ter nossa identidade e humanidade negadas por quem ainda acredita que nosso único lugar é aquele ligado ao entretenimento via exploração do nosso corpo. Não mais aceitaremos nosso corpo refém da preferência e da vontade de terceiros, para deleite de um público masculino e de uma audiência que se despoja do puritanismo hipócrita apenas no Carnaval. Não mais aceitaremos nosso corpo narrado segundo o ponto de vista do eurocentrismo estético, ético, cultural, pedagógico, histórico e religioso. Não mais aceitaremos os grilhões da mídia sobre nosso corpo!
É necessário sair do senso comum, romper com o mito da democracia racial que camufla o racismo latente dessa sociedade. Não podemos mais aceitar que mulheres negras sejam relegadas ao papel da exotização.
Esse Manifesto não só clama pelo fim da Globeleza como nasce da urgência e do grito (há muito abafado) pela abertura e incorporação de novos papéis e espaços para mulheres negras no meio artístico brasileiro. Um novo paradigma precisa despontar no horizonte dos artistas negros sempre tão talentosos, porém, ainda sem o abraço do reconhecimento.
O que falta para mulheres negras, como frisou a americana Viola Davis em seu discurso após ganhar o Globo de Ouro, são oportunidades. No Brasil, elas precisam ir além da ideologia propagada por atrações como “Sexo e as Negas” e “Globeleza” (ambas da mesma emissora). O questionamento é sobre o fim desse lugar único para mulheres que são múltiplas.
A construção de novos espaços já vem sendo feita de forma árdua na sociedade real, nas classes pobres, nos coletivos organizados, na juventude periférica, estudantil e trabalhadora onde negras são maioria entre as adeptas de programas como Prouni, ou já são cotistas nas universidades. Entretanto, esse novo lugar ainda não é refletido na mídia, ao menos não da forma mais fidedigna e verossimilhante possível. Fica evidente que não há interesse em nos representar tal qual somos. Parecemos um incômodo e as poucas vozes negras de destaque são maquiadas, interrompidas ou roteirizadas a fim de amenizar nossa realidade e quando não, glamourizar a favela.
Não podemos mais naturalizar essas violências escamoteadas de cultura. A cultura é construída, portanto, os valores dela também o são. É preciso perceber o quanto a reificação desses papéis sulbalternos e exotificados para negras nega oportunidades para nós desempenharmos outros papéis e ocuparmos outros lugares. Não queremos protagonizar o imaginário do gringo que vem em busca de turismo sexual.
Basta! Já passou da hora!

Stephanie Ribeiro é feminista negra e graduanda em arquitetura. Djamila Ribeiro é feminista negra e mestre em filosofia.


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