Há algum tempo tenho me perguntado o porquê de estimularmos em nossas
crianças as brincadeiras do tipo "meninos contra meninas". Por que
não variar, misturar grupos; promover diferentes tipos de disputas não só
baseadas no gênero das crianças?
Por Ana Elisa Santana
Vivemos dias de glória e de fúria
para a mulher no Brasil, dentro e fora das redes sociais. Enquanto na Câmara
dos Deputados tramita o projeto 5069/2013, que põe em risco direitos há tempos
adquiridos pelas mulheres, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) propôs, há
dez dias, o tema de redação "A persistência da violência contra a mulher
na sociedade brasileira", que trouxe à luz um assunto que precisa ser
debatido urgentemente e em larga escala.
Sobre o Enem, o que se viu nas
redes sociais foi, se não inacreditável, assustador. Enquanto de um lado muitas
mulheres se sentiram felizes e representadas, de outro houve uma série de
equívocos que geraram reclamação, teorias da conspiração e a demonstração do
machismo em algumas das suas piores formas (se é que elas podem ser
elencáveis): em uma delas, uma redação "modelo" falava que mulher
"tem que apanhar mesmo", entre outras atrocidades. E tudo era
compartilhado como piada; sem a menor cerimônia, sem o menor senso crítico.
Muitas pessoas denunciaram a
página "Orgulho de ser Hétero", responsável por esse conteúdo, até o
momento em que ela foi retirada do ar pelo Facebook no último fim de semana. O
que não se imaginava é que haveria a "revanche": grupos orquestraram
falsas denúncias a páginas feministas e, com isso, Feminismo Sem Demagogia e
Jout Jout Prazer também caíram. Esta última por ter feito, na semana anterior,
um vídeo intitulado VAMOS FAZER UM ESCÂNDALO (em caixa alta mesmo, porque tem
que ser assim, gritando mesmo), que alerta para a existência da cultura do
estupro no país e fala sobre o número de assédios sofridos por meninas e
mulheres durante toda a vida.
A mensagem (que é INCRÍVEL) já
teve mais de um milhão de visualizações apenas no YouTube:
Talvez você já tenha acompanhado
essa história, mas recapitulei porque quero usar este espaço para falar sobre o
poder da palavra.
Em uma de minhas citações
preferidas, Rubem Alves dizia que "as palavras só têm sentido se nos
ajudam a ver o mundo melhor". Há quem possa imaginar que essa é uma frase
direcionada a escritores, jornalistas, professores de redação... mas não.
Desde pequenos somos estimulados
a usar a palavra. Quando aprendemos a falar com nossos pais, irmãos,
familiares, amigos... a palavra está em tudo. E é uma das nossas maiores armas.
Em tempos de redes sociais, todos
têm essa arma como uma potência ainda maior: páginas e canais são criados em
diferentes plataformas e, a depender do tema ou da abordagem, podem ter
milhares de seguidores em pouco tempo. Não são só os jornais, rádios e tevês que
podem falar; todos têm voz. Ponto pra gente. Mas... é aí, também, que mora o
perigo. Todo mundo fala o que quer. Aliás, muita gente acha que pode falar o
que quer.
Ao perceber que a página havia
sido suspensa, Jout Jout perguntou em sua conta no Twitter: "O que está
acontecendo, Brasil? Alguma prank (brincadeira) de quarta série?".
Sim, Jout Jout. Voltamos para a
escola.
Ah, a escola.
Há algum tempo tenho me
perguntado o porquê de estimularmos em nossas crianças as brincadeiras do tipo
"meninos contra meninas". Por que não variar, misturar grupos;
promover diferentes tipos de disputas não só baseadas no gênero das crianças?
Que tal, por exemplo, dividi-las
pelas letras iniciais dos nomes, sendo mais simplistas; ou então pelo tipo de
música preferida, para que elas possam expor suas opiniões e trocar
experiências?
A gente começa, desde cedo, a
colocar essa guerra dos sexos na cabeça das crianças. A gente começa, desde
cedo, a fazer errado.
É necessário pensar na igualdade
de gênero nas escolas. Mais do que colocar isso em debate com os pequenos, é
preciso mostrar a igualdade a eles, na prática, no cotidiano escolar - e levar isso
para a comunidade também; estimular que a família faça o mesmo, se isso já não
ocorre.
Promover ações que não coloquem o
gênero como principal fator de separação e competitividade, realizar atividades
com divisão de tarefas, fazer que as crianças se entendam como seres humanos, e
não simplesmente como meninos e meninas, homens ou mulheres.
O mundo é muito mais do que rosa
versus azul. Na verdade, ele não deveria ter nada de rosa versus azul. São
apenas cores!
Toda essa brincadeira - da forma
que for realizada, com incentivo à igualdade de gênero ou não - se reflete em
casa, quando a criança sai da aula. E se refletirá na sociedade, no decorrer de
dez, 15, 20 anos, enquanto o jovem cresce e quando o jovem se formar.
A brincadeira a que Jout Jout se
referiu em seu tweet é um exemplo para aquela passagem da infância que muitos
devem ter vivenciado, quando jogávamos dama ou xadrez com uma criança mimada e
ela, ao ver que estava perdendo, derrubava todas as peças, dando a partida como
encerrada.
"Já que derrubaram nossa
página, vamos derrubar as delas." A diferença, neste caso, é que há anos a
"Orgulho de Ser Hétero" disseminava conteúdo machista e homofóbico,
alimentando ódio e preconceito.
Conteúdo criminoso que ganhou
ares de "zoeira" com a distorção que a internet tem, erroneamente,
permitido.
As páginas feministas não fazem
mais do que ajudarem mulheres a se descobrirem em situações de assédio, de
relacionamento abusivo, a saberem quais são seus direitos, onde podem buscar
ajuda. É aquela velha história: o feminismo é sobre direitos iguais. O
machismo, bom, nem vale a pena falar.
E em todo este processo, a
educação é fundamental. As escolas e a sociedade precisam formar cidadãos que entendam
o outro como um semelhante, que o respeitem e saibam usar a palavra para se
expressar, para dialogar, em vez de apenas atacar.
Quem sabe assim, daqui a dez ou
20 anos, não seja mais necessário argumentar sobre a necessidade de falar sobre
assédio sexual a crianças e adolescentes ou sobre a violência contra a mulher.
Relembrando Rubem Alves, ele diz: "aprendemos palavras para melhorar os
olhos". Quantos olhos você tem melhorado com as suas?
Em meio a tudo isso, uma coisa é
certa: nós, mulheres, não vamos nos calar. Vamos continuar fazendo um
escândalo.
Ana Elisa Santana é jornalista e
pós-graduanda em educação para direitos humanos e diversidade cultural
Fonte: Brasil Post
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