Uma das mulheres que reside num
centro de acolhimento para proteção de vítimas de tráfico de seres humanos,
gerido pela APAV
Muitas das histórias que ouvimos
falar sobre o tráfico de seres humanos estão relacionadas com os familiares e
amigos. A Associação Portuguesa de Apoio às Vítimas gere um acolhimento para a
proteção das vítimas destas histórias
M. foi explorada e agredida por
uma tia, F. chegou a Portugal para viver com o marido e acabou escravizada,
duas mulheres que mostram que no tráfico de seres humanos o perigo pode estar
próximo, através de familiares ou cônjuges.
Tanto M. como F. partilham uma
história, mas também uma casa, já que as duas fazem parte do grupo de quatro mulheres
que atualmente reside num centro de acolhimento para proteção de vítimas de
tráfico de seres humanos, gerido pela Associação Portuguesa de Apoio às Vítimas
(APAV).
A moradia tem o mesmo aspeto de
qualquer outra e poderia estar numa qualquer rua de uma qualquer cidade do
país. Poderia ser a habitação de uma típica família portuguesa, mas serve de
abrigo a quatro mulheres e três crianças que procuram uma oportunidade para
começar uma nova vida.
M. é originária de um país
africano de língua oficial portuguesa e veio para Portugal, nos anos 1990, com
familiares. Ainda adolescente é retirada à tia por causa de maus tratos e
abusos físicos e é institucionalizada.
Anos mais tarde, a tia, que
entretanto tinha ido viver para outro país, convence-a a ir ter com ela, com a
promessa de um trabalho e de uma vida melhor. "Arranjou-me um trabalho
onde ela trabalhava. Eu ganhava 312 libras e ela dava-me 20 libras para eu
gastar", contou à Lusa.
Contou que era constantemente
maltratada: a tia batia-lhe, chamava-lhe nomes, escondia-lhe a comida e
dizia-lhe que ela não servia para nada. Também lhe ficou com o cartão
multibanco e todo o dinheiro que tinha poupado.
Depois de cerca de meio ano
nestas condições, M. ganhou coragem e pediu ajuda à polícia, tendo estado a
viver quase um ano num hospital antes de regressar a Portugal e ser acolhida
neste centro da APAV.
A diretora técnica explicou que
M. foi vítima de exploração laboral e também de servidão doméstica às mãos de
uma tia. Em Portugal não tem qualquer tipo de suporte familiar porque a família
que lhe resta não pode ou não quer ajudar.
Cada caso é um caso, sublinhou
Rita Bessa e o caso de M. é o de uma pessoa com mais dificuldades de
autonomização, poucas competências sociais, baixa escolaridade e problemas do
foro psicológico, o que justifica que esteja no centro há cerca de seis meses.
"Não existe um prazo limite de tempo [de permanência]. Depende da
situação, da problemática, das necessidades de cada uma porque objetivo é o
recomeço de um novo projeto de vida", explicou.
As situações podem ser de
acolhimento prolongado ou de emergência, podem vir através de um órgão de
polícia criminal, pela Linha de Emergência Social (144), pelas Instituições
Particulares de Solidariedade Social (IPSS) ou por organizações não-governamentais
(ONG).
F., por exemplo, veio de outro
centro de acolhimento, onde esteve dois anos. É estrangeira e a sua história
começa quando vem ter com o marido a Portugal: "Um mês depois tirou-me os
documentos, o telemóvel, não me deixava sair à rua nem falar com ninguém".
"Ele ficava muito mau para mim, batia, chamava nomes, fazia coisas que eu
não consigo perceber", relatou, lembrando que o marido não a deixava sair
de casa e que só a deixava estar no quarto.
Começou a trabalhar contra a sua
vontade, a fazer limpezas em casa de uns amigos do marido. Saía de casa às 7h,
sem comer, e tinha que fazer o caminho todo a pé, com o filho de sete meses ao
colo, para chegar às 8h. Nunca recebeu qualquer pagamento.
Segundo a diretora técnica, a
história de F., além da servidão doméstica e da exploração laboral, também tem
abusos sexuais, mas disso a vítima não falou. Contou, no entanto, que foi só
após quatro anos a viver com o marido que conseguiu pedir ajuda a um casal que
conheceu na rua e só um ano depois é que ganhou coragem para pedir ajuda à
polícia.
O medo prendia-se com o facto de
não ter documentos, ter dois filhos, não falar português e não conhecer
ninguém. Mas não só. "Tinha medo que pudesse ser pior. Que depois de
apresentar queixa, ele me matasse. Ameaçava que se eu apresentasse queixa,
tirava-me as crianças", contou.
Um trabalho de investigação do
Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI), sobre o tráfico de
seres humanos, revelou que em 60% dos casos as vítimas conheciam o traficante.
Em declarações à agência Lusa, o coordenador científico do estudo explicou que
o perfil do traficante é heterogéneo, não se insere apenas dentro do crime
organizado e que há um tipo no qual se inserem pessoas que mobilizam e recrutam
membros da família ou amigos.
De acordo com o investigador
Miguel Santos Neves, são ações muito mais imprevisíveis, em que é explorada a
relação de confiança que mantêm com as vítimas. "As relações de confiança
são a base de recrutamento e as pessoas não têm noção de que o perigo está ali
ao lado, estão muito menos atentas e muito mais vulneráveis", apontou,
acrescentando que as pessoas estão menos preparadas ou alertas para desconfiar
de uma proposta de um familiar ou amigo.
M. garante que não sente ódio da
tia e revela que aquilo de que mais sente falta é de ter uma família. Em tempos
quis ser estilista, hoje gostava de ir viver com uma outra tia e trabalhar com
ela, que é cozinheira, mas "só deus sabe" o que o futuro lhe reserva.
F. está quase a sair do centro e
a concretizar o seu maior sonho: ter uma casa. Trabalha e os dois filhos estão
na escola e sente-se mais segura, mas não esqueceu nem sarou a ferida: "É
muito difícil".
Fonte: http://expresso.sapo.pt/
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