O reflexo histórico da sucessão
de fatos que associaram a prostituição à disseminação de doenças transmitidas
pelo sexo ainda mantém, na construção do senso comum, a representação da
trabalhadora sexual como uma mulher desprovida de alguns dos traços mais
distintivos do gênero feminino.
por Gabriela Silva Leite
No capítulo introdutório de seu
livro Estigma, Erving Goffman faz a seguinte referência histórica ao tema:
"Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram
o termo estigma para se referir a sinais corporais com os quais se procurava
evidenciar algo de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os
apresentava. Os sinais, feitos com cortes ou fogo no corpo, indicavam que o
portador era um escravo, um criminoso ou um traidor – uma pessoa marcada,
ritualmente poluída e que deveria ser evitada; especialmente em lugares
públicos. Mais tarde, na era cristã, dois níveis de metáfora foram
acrescentados ao termo: o primeiro, referente a sinais corporais da graça
divina que tomavam a forma de flores em erupção na pele; o segundo, uma alusão
médica a essa alusão religiosa, referente a sinais corporais de distúrbios
físicos. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante
ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à
sua evidência corporal".
Tomando-se como referência a
citação de Goffman, pode-se pensar que esse breve relato da origem histórica do
conceito de estigma leva à compreensão de que a identidade social da mulher
profissional do sexo foi construída a partir da sua condição de desviante das
regras e normas estipuladas socialmente para o exercício da feminilidade. A
construção dessa identidade e dos mecanismos de discriminação e preconceito em
relação ao exercício da prostituição decorre de sucessivos fatos históricos,
nos quais a prostituta foi responsabilizada, fundamentalmente, pela
disseminação de doenças. Um rápido levantamento da produção de conhecimento
nesse campo permite constatar que os primeiros estudos sobre prostituição, de
autoria de médicos higienistas e criminólogos, foram feitos com a preocupação
de salvaguardar a moral da família. Contudo, essa preocupação com as
"sexualidades vagabundas" centrava-se na intenção desses doutores de
assumir o papel de mentores dos códigos de moralidade pública (Rago, 1996). Na
perspectiva higienista, a prostituta era considerada uma ameaça à construção da
família higienizada. Ela era vista como responsável pela degradação física e
moral dos homens e, por extensão, pela destruição das crianças e da família.
Além disso, pervertiam, com o exemplo desregrado de suas vidas, a moral da
mulher-mãe (Costa, 1989).
No plano do cuidado físico com os
homens, o advento das doenças venéreas (no caso, a sífilis, para a qual não
havia medicação curativa considerada eficaz) trouxe a necessidade de implementação
de uma intervenção preventiva em relação à prostituição. Esse fato fomentou a
discussão entre neo-regulamentaristas e abolicionistas que norteou a política
sanitária de combate à prostituição implementada na época no Brasil. Uma das
conseqüências dessa política foi a regulamentação confinatória ou
isolacionista, que tolerava o meretrício apenas no âmbito fechado do bordel,
aliada à repressão à prostituição de rua. Embora se soubesse da existência de
outras modalidades de prostituição, principalmente as mais refinadas,
considerava-se que essas envolviam um número pequeno de mulheres e, portanto,
não necessitavam de intervenção (Carrara, 1996). Essa solução foi adotada muito
em função do reconhecimento da prostituição como um "mal necessário"
para evitar que os excessos sexuais masculinos perturbassem a ordem moral da
sociedade. Com a emergência da revolução sexual das décadas de 1950 e,
principalmente, de 1960, teve início um processo crescente de emancipação
social da mulher, em função do aumento da sua autonomia em relação às decisões
sexuais e reprodutivas. De início, esse processo induziu à crença de que a
prostituição teria os dias contados ou sofreria uma substancial redução, o que
na realidade não ocorreu.
O reflexo histórico da sucessão
de fatos que associaram a prostituição à disseminação de doenças transmitidas
pelo sexo ainda mantém, na construção do senso comum, a representação da
trabalhadora sexual como uma mulher desprovida de alguns dos traços mais
distintivos do gênero feminino. É como se nela estivesse incorporada uma
anomalia no sistema de gênero: a mulher desprovida de laços de vivência afetiva
que, por experimentar o sabor da transgressão sexual, não é merecedora da
vivência conjugal, do convívio familiar e, sobretudo, da maternidade. Nesse
contexto, são comuns afirmações tais como: "é uma mulher de vida fácil,
que não conhece as dificuldades de educar um filho, nem as regras básicas do
funcionamento equilibrado e saudável de uma família; seus filhos, se os tem,
são sempre considerados como predispostos à delinqüência". Enfim, é uma
mulher da qual, popularmente, não se espera que conheça ou desempenhe os papéis
sociais que a cultura reservou ao gênero feminino, seja como filha, mãe, irmã,
esposa ou dona de casa. Esse modo de representar a mulher profissional do sexo,
atribuindo-lhe características desviantes, presentes no senso comum, penetra
tanto na percepção que ela faz de si mesma quanto na mentalidade daqueles com
os quais ela deve interagir, seja no momento de exercer a profissão, seja no
momento de buscar os serviços médicos.
Fonte: Boletim ASHOKA
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