Um documento redigido pela
instituição religiosa União Internacional das Superiores Gerais (UISG) cita o
testemunho de um aliciador canadense dado à uma revista local. Ele diz preferir
“mil vezes vender uma mulher a vender armas ou drogas, pois armas e drogas a
gente só vende uma vez, ao passo que a mulher a gente vende e revende até ela
morrer de AIDS, ficar louca ou se matar”.
A partir do depoimento, é
possível perceber que as mulheres são as principais vítimas da exploração
sexual. Um estudo de 2009 do Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime
(UNODC) revelou que representam 66% das vítimas são mulheres adultas, 13% são
meninas, enquanto 12% são homens e 9%, meninos. A Secretaria Federal de Polícia
da Suíça afirma que cada mulher chega a dar um lucro de 120 mil euros anuais
para seu explorador.
Outro estudo da UISG dividiu o
preço que a traficada tem de pagar pelas despesas pelo preço do programa a ser
pago à ela. O resultado mostra que a mulher terá de ter 4.500 relações sexuais
para pagar a conta. A coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas (NETP) da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), delegada
Isabel Pires Trevisan, explica que meninas jovens do Interior são convidadas
para vir a Capital para trabalhar em casa de família ou como modelo. Quando
chegam na cidade grande, têm de trabalhar em casas de prostituição. Além disso,
ficam em dívida com os aliciadores. “A dívida nunca termina e por isso acabam
trabalhando no mercado do sexo para saldá-la.”
A Pesquisa sobre Tráfico de
Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no
Brasil (Pestraf), de 2004, do Ministério da Justiça, identificou que 53% das
traficadas no Brasil são adultas, entre 23 e 24 anos; e 47% são adolescentes,
com 16 e 17 anos. Ademais, a Associação Brasileira Multiprofissional de
Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) constatou que, das crianças
exploradas, 78,56% são do sexo feminino, em 71,66% das vezes têm de 12 a 18
anos e, em 7% das denúncias, menos que 11 anos de idade.
Espanha, Itália, Holanda, França,
Alemanha, Estados Unidos e Japão são os destinos das brasileiras vítimas de
tráfico internacional para fins de exploração sexual. Também foram
identificados casos em países vizinhos, como Suriname, Guiana Francesa, Guiana
e Venezuela. A delegada Isabel ressalta que as denúncias de tráfico de pessoas
para fins de exploração sexual são escassas, pois, para provar, é necessário o
depoimento da vítima.”Elas têm medo. Normalmente, além do perigo dela morrer, a
quadrilha ameaça matar a família”, ressalta.
A Lei nº 12.015/09 tipifica o
Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual no artigo 231. A
legislação estabelece que “promover ou facilitar a entrada, no território
nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de
exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro”. A
pena é de 3 a 8 anos, a punição é a mesma para aquele que agenciar, aliciar ou
comprar a pessoa traficada. Caso a vítima seja menor de 18 anos, ter
deficiência mental, for membro da família ou empregada do agenciador, a pena é
aumentada pela metade. Se o crime for cometido com o fim de obter vantagem
econômica, aplica-se multa.
Escravidão contempôranea atinge 20,9 mihões de pessoas
A institucionalização da
escravidão ficou no passado. A prática, porém, ainda vitimiza 20,9 milhões de
pessoas no mundo. Desse total, 1,8 milhão estaria na América Latina, estima a
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Um dos problemas em erradicar o
trabalho forçado reside no fato de muitos dos trabalhadores não perceberem que
estão em uma situação de exploração. A comida, a roupa e a moradia são o
salário do serviço exercido em até 18 horas diárias.
Essas pessoas acabam aceitando
essa condição por terem dificuldades de encontrar emprego. “Em nível mundial há
um certo pacto com essa questão da escravidão em nome do crescimento
econômico”, ressalta o professor de Direito Internacional na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) e advogado do Grupo de
Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire) da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (Ufrgs) Gustavo Oliveira de Lima Pereira.
Em 1995 quando o Brasil admitiu a
existência do trabalho escravo até 2011, 36.759 mil pessoas foram libertadas de
situações análogas à escravidão. Em agosto de 2011, a marca internacional Zara,
da empresa espanhola Inditex, foi flagrada explorando a mão de obra no País. Em
uma das operações do Ministério do Trabalho e Emprego, que fiscalizou
tecelagens subcontratadas de uma das principais fornecedoras da rede, 15
imigrantes aliciados na Bolívia e no Peru, incluindo uma adolescente de 14
anos, foram libertados de condições análogas a de escravidão em duas oficinas
na cidade de São Paulo.
Recentemente, no Sul de Minas, a
Polícia Federal fez uma operação em propriedades de uma seita religiosa,
conhecida como Comunidade Evangélica Jesus, acusada de manter fiéis em situação
análoga à escravidão. Os envolvidos podem responder por tráfico de pessoas,
organização criminosa, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Por mais que a prática seja
proibida, o que se observa hoje é a existência da escravidão a custo mais baixo
do que na época Imperial. No Brasil, cerca de 96% dos escravos são homens,
afrodescendentes, vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica, não são
alfabetizados ou têm o Ensino Fundamental incompleto. Cerca de 80% tem entre 18
e 44 anos. Conforme a OIT, os trabalhadores escravos são originários dos
estados do Maranhão (28,31%), Pará (7,87%), Bahia (7,68%), Mato Grosso do Sul
(7,47%) e Piauí (6,67%).
O Decreto de Lei n° 2.848/40
tipifica no artigo 149 a condição análoga à escravidão. Segundo ele, ao
submeter alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva em condições
degradantes, restringindo liberdades em razão de dívida contraída com o
empregador, está sendo cometido o crime de escravidão. A pena é de reclusão de
dois a oito anos e multa. A punição é aumentada em sua metade se o crime é
cometido contra criança ou adolescente, por motivo de preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou origem.
De acordo com a coordenadora do
NETP, delegada Isabel Pires Trevisan, há denúncias relacionadas ao trabalho
escravo na zona rural do Rio Grande do Sul. Segundo ela, muitos aliciadores não
sabem que estão explorando o trabalhador. O trabalho é configurado como escravo
mesmo se a pessoa estiver em uma situação econômica miserável e concordar com
ele. “Tu não podes te valer do sofrimento e do desespero de uma pessoa para
tratá-la com menos direito do que outra. Se é pago para um trabalhador, deve
ser pago também ao outro.” Fatores culturais também favorecem a exploração.
“Pensa-se que, se a pessoa não tem dinheiro para comer, não é configurada a
exploração”, completa Isabel.
Remoção de órgãos: um crime silencioso
Em relação à exploração sexual e
de mão de obra há dados e manuais de enfrentamento. Entretanto, quando o
tráfico visa a extração ilegal de órgãos, existem poucas informações oficiais a
respeito. Seria então mito esse crime?
No Brasil, quadrilhas já foram
descobertas realizando ações do tipo. Em 2014, a Polícia Federal prendeu
integrantes de uma organização especializada em tráfico de seres humanos para
retirada de órgãos na África do Sul. De acordo com as investigações, a
quadrilha aliciava pessoas em Pernambuco no intuito de retirar seus rins. Os
integrantes foram sentenciados por comprar e vender órgãos ou partes do corpo
humano continuadamente e por formação de quadrilha.
Em 2015, a Polícia Militar
mineira prendeu três médicos acusados de participar de uma quadrilha de tráfico
de órgãos. Pelo menos nove casos são investigados, referente à morte, remoção e
tráfico dos órgãos no estado com autoria da quadrilha. O esquema, que
consistiria em tratar com descaso proposital vítimas de traumatismo craniano e
acidentes vasculares cerebrais, teria rendido até R$ 200 mil por mês aos
envolvidos. A coordenadora do NETP, delegada Isabel Pires Trevisan, explica
haver poucas denúncias, pois, na maioria dos casos, as vítimas morrem. “A
vítima desaparece. Se não houver uma pessoa para denunciar, ela é esquecida.”
A Lei nº 9.434/97, regulamenta a
remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. O artigo 2º estabelece que
a realização de transplante só poderá ser realizada por estabelecimento de
saúde, público ou privado, autorizados pelo Sistema Único de Saúde. Segundo o
artigo 9º, a pessoa pode dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do
próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou
parentes ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial uma vez que
a retirada não interfira na integridade física e mental do doador.
Para o analista de programas do
Escritório da Nações Unidas sobre Drogas e Crime Gilberto Antônio Duarte
Santos, as pessoas não acreditam que a prática exista. “O tráfico de órgãos é
um crime muito mais obscuro e ainda mais difícil, porque não temos muitas
notícias a respeito. Ele exige, por natureza, uma articulação muito grande
entre quem demanda, quem faz a extração e quem leva os órgãos de um lugar para
o outro. Exige sigilo dos criminosos, então, ele tem uma natureza particular, é
muito difícil de descobrir”, esclarece Santos.
Fonte: Jornal do Comercio
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