Se o feminismo procura
reconstruir as histórias das mulheres na sociedade, a luta das prostitutas é
também uma luta feminista.
Por Letícia Cardoso Barreto
Quando recebi o convite para
escrever um texto sobre prostituição para a revista Geni, fiquei repleta de
dúvidas. O que dizer, em poucas palavras, e que mostrasse um pouco da
experiência que é fazer uma pesquisa sobre prostitutição? Como falar
rapidamente sobre o assunto sem cair em clichês.
Após muito pensar, resolvi trazer este
pedacinho da tese de doutorado que acabei de finalizar, “Somos sujeitas políticas
de nossa própria história: prostituição e feminismos em Belo Horizonte” (2015),
e que será defendida em agosto. Na tese, busquei analisar as relações entre
prostituição e feminismos em Belo Horizonte, a partir de olhar sobre a
emergência das prostitutas como sujeitas políticas e a produção do conhecimento
sobre prostituição. Foi necessário mapear o contexto e atrizes que fazem parte
deste processo de emergência, construindo sujeitas e subjetividades
multifacetadas, e identificar deslocamentos e continuidades presentes nos
discursos e conhecimentos. Foi construída uma narrativa histórica do processo
de construção do movimento de prostitutas em Belo Horizonte e sua relação com o
contexto nacional e internacional. Um dos principais resultados que levantei
foi sobre a crescente capacidade do
movimento de prostitutas de pautar os debates relativos à prostituição e das
prostitutas se colocarem progressivamente como sujeitas políticas de sua
história. Além disso, ficou evidente a urgência da academia e das acadêmicas
mudarem seus olhares sobre a prostituição e passarem a construir juntas um
saber sobre ela, se tornando aliadas na luta, como mostro na reflexão que trago
abaixo.
Reencontros
Dia 2 de junho de 2015,
aniversário de 40 anos da ocupação da igreja em Lyon, escolhido como um dos
marcos fundantes da história de luta das putas. Eu estava abarrotada de
trabalho para finalizar a tese, mas não podia perder aquele momento tão
importante: precisava estar ao lado das prostitutas de Belo Horizonte para
celebrar a data. Decido ir cedo, para acompanhar todas as atividades
(ilustradas no panfleto abaixo), que incluíam shows, cadastro de prostitutas,
dia de beleza, vacinação, algumas das quais realizadas por parcerias com outros
grupos.
Em virtude da escrita da tese,
havia optado por me distanciar um pouco das atividades na Aprosmig nos últimos
meses, embora continuasse fazendo ações à distância, e seria uma boa
oportunidade de reencontrar muitas das mulheres e de dar um retorno sobre como
estava indo o trabalho. Separo dez exemplares da última remessa do meu livro
“Prostituição, gênero e trabalho”, e também a versão mais recente da tese, para
levar para elas, e saio cedo de casa, em direção à Guaicurus.
Chegando à região, sabia que o
evento seria realizado no shopping popular Uai, mas decido antes passar na
Associação, pois imaginei que as prostitutas e parceiras ainda estariam por lá,
finalizando os preparativos. Logo na porta do estacionamento onde fica a
Associação, encontro Zazá, conversando com duas mulheres e um homem, que
parecia ser porteiro do hotel ao lado. Nos abraçamos, felizes com o reencontro,
mas ela logo me diz que estou “sumida”, que elas precisam de mim, que não posso
ficar tão distante. Peço desculpas, dizendo que a escrita já está quase
acabando e que em breve as coisas voltarão ao normal. Ela me apresenta feliz
para o homem “Essa é a Letícia Barreto, ela é escritora, escreveu um livro
sobre nós!”
Vamos andando juntas para dentro
da sala da Aprosmig, que está cheia de pessoas, dentre alunas do curso de
psicologia da PUC, prostitutas e integrantes da Associação. Abraço Laura e
Patrícia, que também logo reclamam do meu “sumiço”, e me apresentam para as
alunas da psicologia “Essa é a Letícia, ela é escritora!” O clima é gostoso, de
conversa, bate papo, todas ali sem se preocupar muito com o evento em curso,
mas muito mais com aproveitar o momento.
Mostro a elas os livros que
levei, dizendo que são os últimos e que podem fazer o que quiserem com eles,
são presente. Retiro da mochila a versão da tese, conto a elas que está
inacabada e que ainda tem muita coisa para mudar, mas que queria que vissem
como está ficando, para poderem “dar palpites” e também entenderem o motivo de
meu afastamento temporário. Laura logo pega a tese e começa a folhear: “olha
só, meu nome está aqui! Que chique! A Laurinha está ficando famosa!”, e eu
mostro a todas que a tese tem fotos delas. Começam a procurar por suas fotos e
nomes. Patrícia e Zazá se incomodam de não terem achado fotos suas, e eu
explico que ainda falta muita coisa na tese, e que queria, inclusive, confirmar
os nomes que gostariam que aparecessem, e se era ou não para colocar imagens
suas. Mostro para Zazá uma foto que pretendo colocar com ela e Patrícia, e me
pede que a imprima para ela. Elas se animam, dizendo que querem nome completo e
foto, e comentam felizes com as alunas o quanto são importantes, que vão ficar
famosas.
Cada hora uma folheia a tese, procura pelas
fotos e pelos nomes que aparecem e comenta tudo com as pessoas que estão na
sala. Zazá diz a elas “É, gente, acho que tem muita coisa interessante aqui
para a gente ler e aprender!”. Reclamam de não ter levado uma versão para cada
uma “como que vai todo mundo ler? Da próxima vez traz várias!” “Ei, eu ainda
não consegui olhar!” “Você vai conseguir ler tudo agora, é?”. O orgulho delas
era evidente em cada olhar e cada comentário. Novas pessoas iam se aproximando
e elas apresentavam a escritora da Associação e seu novo trabalho. Cidinha
chega e se junta a nós na conversa e na procura por fotos e textos. Falam-me
que querem ver suas imagens no livro e tiramos mais fotos para incluir.
O evento segue acontecendo ao longo do dia,
nos diversos espaços; é um momento muito gostoso, de confraternização,
descontração, reencontro. Ao falarem sobre mim, as prostitutas e as parceiras
seguem me identificando com a escrita do livro, a escritora da Associação, a
parceira de longa data. Prostitutas e outras pessoas se aproximam após ouvir
meu nome e descrição anunciados no palco durante os agradecimentos “você que é
a escritora? Quero que escreva a minha história!” “Você não vai acreditar na
minha história, melhor do que a da Bruna Surfistinha, vai fazer sucesso!”
Reescrever nossa história
Ao sair da Associação, e voltar
para casa, minha cabeça está cheia de ideias e reflexões. O texto “Falando em
Línguas”, de Gloria Anzaldua, que sempre me afetou tanto, vem imediatamente à
cabeça. Afinal, para que fazer uma tese? Reescrever as histórias mal contadas
sobre mim, sobre você, registrar o que é apagado quando falamos, é sobre isso
também a luta das prostitutas e, em parte, sua busca por estabelecer relações
com acadêmicas e parceiras. E, em cada encontro e em cada escrita, vamos
escrevendo e produzindo esta história e a história de cada uma de nós.
Se o feminismo procura
reconstruir as histórias das mulheres e pensar outras formas de constituição
destas sujeitas na sociedade, a luta das prostitutas é também uma luta feminista.
As prostitutas possuem demandas claras, se organizaram em movimentos, se
colocam em diferentes debates públicos, mas muitas de nós (feministas) seguimos
cegas ao seu movimento e surdas às suas reivindicações. O movimento de
prostitutas é um movimento feminista, que traz mulheres como protagonistas de
suas histórias e que reivindicam que suas pautas não sejam vistas como menos
importantes, ou que sejam protagonizadas por pessoas que não as tenham
vivenciado. Os movimentos feministas foram marcados no Brasil por percepções de
que eram secundários em relação à luta contra a ditadura ou questionamentos de
que precisava se abrir para o reconhecimento das interseccionalidades. Hoje,
são questionados pelo movimento de prostitutas, que demanda seu reconhecimento
enquanto luta feminista legítima e que conclama para que suas protagonistas não
sejam mais silenciadas ou vitimizadas, mas sujeitas de suas próprias histórias.
Letícia Cardoso Barreto é
psicóloga, doutoranda em Ciências Humanas e pesquisa o tema da prostituição
desde 2005.
Fonte: Revista Geni
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