Professora obstetra da USP questiona a política de cesárea obrigatória adotada no Brasil. Trabalho de parto e contato com bactérias vaginais são fundamentais para amadurecimento final do bebê.
Se há duas gerações o relato comum das brasileiras sobre o nascimento dos seus filhos é o parto normal, em casa, hoje o Brasil registra a maior taxa de cesarianas no mundo. O procedimento cirúrgico atinge 52% dos partos realizados no país, com números ainda mais alarmantes no setor privado, mais de 80%. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que a taxa de cesarianas realizadas em um serviço de saúde seja de 15%.
O caso recente da Adelir Carmen de Goés, submetida a uma cesariana contra a própria vontade por determinação da Justiça do Rio Grande do Sul, reacendeu o debate sobre o parto no Brasil e os direitos das mulheres. Em entrevista à Radioagência BdF, a obstetra e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP Simone Diniz questiona a política de cesárea obrigatória adotada no país, e repudia a situação vivida por Adelir.
“Esse caso evidencia muitas questões importantes para a gente pensar a gravidez, parto e pós-parto aqui no Brasil. Uma delas é que tudo no Brasil é considerado indicação de cesárea e indicação absoluta muitas vezes. Por exemplo, existe toda essa crença uma vez cesárea, sempre cesárea. Isso do ponto de vista da melhor evidência científica é muito relativo. Hoje em dia com um conjunto de cuidados, com pacientes selecionados e com pessoas que tem experiência com isso, as pessoas que tiveram cesáreas anteriores, inclusive mais de uma cesárea, podem, sim, ter um parto vaginal.”
Em um vídeo publicado na internet, Adelir – ainda no hospital e com a filha Yuja nos braços – relatou como se sente com a assistência que recebeu no seu parto.
"Me sinto frustrada, muito chateada. Na hora que eu já estava de 5 em 5 minutos com contrações, chegou a polícia, chegou o oficial de Justiça, com viatura e ambulância, me aterrorizando, dizendo que, se não eu não cumprisse o mandado, meu marido ia ser preso"
Sobre os profissionais de saúde que rejeitam os partos vaginais ao apontarem riscos à mulher e ao bebê, a médica Simone Diniz descreve uma série de evidências científicas que demonstram o contrário.
"Se você tem uma mulher e um bebê saudáveis, o parto vaginal é muito mais benéfico do que a cesárea por vários motivos. Um deles é que os bebês que nascem de cesárea têm um prognóstico diferente do ponto de vista das doenças crônicas. O bebê que nasce de cesárea tem mais chance de sofrer de obesidade, diabetes, de asma, várias doenças inflamatórias, doenças autoimunes.”
O trabalho de parto é fundamental para o amadurecimento final do bebê, tanto do ponto de vista respiratório como imunológico. Nesta fase de transição, proporcionada pelo parto natural, o bebê tem contato com as bactérias vaginais antes de ter contato com as bactérias hospitalares, podendo estar mais apto a criar mecanismos de defesa. Ainda assim, a obstetra faz ressalvas.
“Claro que a constituição do bioma do bebê não depende somente do parto vaginal, mas da alimentação, de uma série de outras coisas, mas a passagem pelo canal vaginal é hoje em dia considerada uma das coisas mais importantes para saúde daquele indivíduo não só na infância, mas também nas décadas que virão.”
A médica ainda denúncia a prática de intervenções desnecessárias, que oferecerem risco à saúde da mãe e do bebê.
“O parto típico do Brasil é um parto onde a mulher fica a maior parte do tempo sem acompanhantes, fica a maior parte do tempo imobilizada fisicamente. É quase que rotina se dar para as mulheres hormônios para acelerar o parto, para aumentar as contrações uterinas, aumentar as dores do parto. Cortam a vagina da mulher, cortam a vulva da mulher, e assim por diante.”
O conjunto de intervenções descrito por Simone deveria ter uso muito restrito, ser usado apenas em casos excepcionais, mas acabaram se tornando quase que um procedimento padrão. Isso tem efeitos danosos, como dores mais fortes, incômodo, desconforto no pós-parto, dificuldade de amamentação.
Outras intervenções, como o uso de soro com ocitocina para acelerar o parto, podem levar ao sofrimento fetal e até asfixia do bebê. Outros procedimentos provocam dificuldade ao retorno da vida sexual das mulheres, além de poderem levar a hemorragias e infecções.
Como o parto vaginal no Brasil é muito agressivo, os movimentos sociais denunciam que essa prática foi uma forma encontrada pelo mercado da Saúde para “vender cesárea”. Segundo a obstetra Simone, as mulheres terminam fazendo essa opção para poder ter um acompanhante e não passar por esse tipo de sofrimento.
O caso de Adelir ganhou grande repercussão no início do mês. Ela estava em sua terceira gravidez, e ao contrário dos outros dois partos, que foram cesarianas, dessa vez, pretendia ter o parto vaginal. No dia 31 de março procurou o hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres (RS), para confirmar se estava tudo bem com o bebê.
A médica que a atendeu quis interná-la, mas Adelir decidiu voltar para casa. Ela desejava esperar o momento certo para voltar ao hospital e ter seu filho naturalmente. Para isso, ela conta que teve que assinar um termo de responsabilidade exigido pela médica.
"Ela [a médica] ficou muito mais brava, disse que eu tinha que assinar [um documento] como se eu estivesse fugindo daqui, que não era ela me liberando. Aceitei assinar, mesmo como fugitiva, porque o acordo que eu tinha feito com as enfermeiras era que eu vinha aqui só para ser avaliada. Já queriam me segurar para o parto cesárea. Assinei o papel para poder sair daqui e tentar entrar em trabalho de parto em casa".
Sob alegação de suposto risco à vida da mãe e do bebê, a equipe médica do hospital procurou o Ministério Público, que acionou a Justiça. A juíza Liniane Maria Mog da Silva, então, determinou que a gestante fosse levada novamente ao hospital para um parto cesárea, obedecendo à recomendação médica. Foi autorizado o apoio da Polícia em caso de resistência.
Para quem deseja ter um parto vaginal, a médica Simone Diniz orienta as mulheres a se informarem ao máximo sobre as evidências científicas e seus direitos, além de procurar profissionais que acreditem nessas questões.
“Um domicílio pode ser seguro, uma casa de parto pode ser segura, um hospital pode ser seguro, mas as pessoas precisam ter acesso rápido à tecnologia caso necessário.”
Fonte: Brasil de Fato
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