Perguntado por que a sua teologia, até então, não fora
denunciada e nem condenada pelo ex-Santo Ofício, Libanio deu uma resposta ao
mesmo tempo magistral, simples, jocosa e irônica: “É porque sou um teólogo
mineiro e faço teologia sempre comendo pelas beiradas!”... Ao fazer sua
análise, ia denunciando situações e estilos de Igreja marcados pelo
autoritarismo, pelo culto à personalidade, pela busca da superficialidade
revelada no colorido das vestes clericais e nas cerimônias pomposas.
Por José Lisboa Moreira de Oliveira*
Fui surpreendido pela notícia da morte do teólogo jesuíta
brasileiro João Batista Libanio. Mesmo aos 81 anos, estava na ativa e tinha
ainda muito a nos oferecer. Mas a dinâmica da vida é assim e cada um de nós
terá a sua hora de passar deste mundo para o seio do Pai. Morrer para
transcender é o nosso destino, é a nossa vocação.
No início de setembro de 1999. Libanio fez uma palestra
durante o 1º Congresso Vocacional, realizado na Vila Kostka no Bairro de
Itaici, no município de Indaiatuba (SP). Local muito conhecido, uma vez que
nesta casa dos jesuítas foram realizadas inúmeras assembleias dos bispos do
Brasil e produzidos os melhores documentos do nosso episcopado. Nesta palestra
Libanio falou dos cenários da Igreja e o conteúdo de sua fala foi depois
transformado em livro publicado por Edições Loyola (1999). Após a palestra,
perguntado por que a sua teologia, até então, não fora denunciada e nem
condenada pelo ex-Santo Ofício, Libanio deu uma resposta ao mesmo tempo
magistral, simples, jocosa e irônica: “É porque sou um teólogo mineiro e faço
teologia sempre comendo pelas beiradas!”.
Com certeza Libanio tinha o seu jeito próprio de dizer as
coisas e que, nesta ocasião, ele atribuiu ao fato de ser mineiro. Porém, o que
mais me chamava a atenção neste teólogo eram a sua lucidez e sua capacidade de
ler atentamente os sinais dos tempos. Seria impossível num breve artigo
apresentar estas suas características, mas me arrisco a mencionar alguns
exemplos, tirados de seus livros ou de palestras que assisti.
Começo com o diagnóstico eclesial que ele fez no livro A
volta à grande disciplina, publicado em 1983, cinco anos depois do início do
pontificado de João Paulo II. Neste texto Libanio alertava para um retrocesso
que estava se instaurando dentro da Igreja e, no seu jeito mineiro de escrever,
mostrava os riscos de tal retrocesso. Para fundamentar a sua análise ele fazia
uma resenha do que significou uma Igreja organizada no estilo tridentino,
detalhando os fracassos e as crises pelas quais ela passou. Fracassos e crises
que só foram superados com a chegada do Concílio Vaticano II. Libanio
salientava sobretudo a incapacidade desse modelo de Igreja de dialogar com a
humanidade e de propor a Boa Notícia, ou seja, o Evangelho. A Igreja dos anátemas,
das excomunhões, do Santo Ofício, do índice de livros proibidos, da condenação
da liberdade e da fidelidade à própria consciência, das fogueiras para queimar
hereges não conseguiu dar conta da sua missão e chegou à época do Concílio
Vaticano II num verdadeiro impasse.
Libanio foi preciso no seu diagnóstico. Vimos no que deu
esse retrocesso e esse recuo da Igreja Católica Romana nos últimos trinta e
cinco anos. Lembrou-nos recentemente o papa Francisco na exortação apostólica
Evangelii Gaudium: cristãos “que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem
Páscoa” (nº 6) e se apresentam constantemente com “cara de funeral” (nº 10).
Portanto, cristãos fixados em rigorismos, em normas rígidas e em leis,
incapazes de comunicar a alegria do seguimento de Jesus. Além de viverem em
permanente Quaresma e com cara de quem está em velório, estes cristãos agiram
como “controladores da graça divina” (nº 47) e espantaram as pessoas das
comunidades católicas e as forçaram a migrar para outros espaços. De modo
particular as pessoas portadoras de senso crítico e que não mais aceitavam um
modelo de Igreja esclerosado.
Outro texto emblemático da lucidez e da sensibilidade aos
sinais dos tempos, típicas de Libanio, foi o já mencionado estudo sobre os
cenários da Igreja. Lembro-me bem da palestra pronunciada por ele no âmbito do
1º Congresso Vocacional do Brasil em setembro de 1999. Libanio traçou o perfil
do contexto eclesial daquele final de milênio, apresentando os diversos
cenários de Igreja que se visibilizavam naquele momento. Analisou com
objetividade o comportamento das diferentes forças dominantes no interior de
cada cenário, oferecendo elementos bastantes críticos para uma avaliação
teológico-pastoral de cada cenário. Na edição mais recente do livro (julho de
2009) acrescentou um quinto cenário que ele chamou de “igreja plural
fragmentada pós-moderna”.
Esta análise da realidade eclesial foi muito significativa
num momento em que se mantinha a ilusão de uma Igreja compacta, uniformizada,
caminhando sob o pulso firme de João Paulo II. Libanio, com sua análise, foi
“comendo pelas beiradas” e jogando farinha no ventilador dos ilustres guardiões
da “alfândega eclesiástica” (papa Francisco), revelando uma Igreja esfacelada,
que fugia do controle destes ilustres senhores. Ao fazer sua análise, ia
denunciando situações e estilos de Igreja marcados pelo autoritarismo, pelo
culto à personalidade, pela busca da superficialidade revelada no colorido das
vestes clericais e nas cerimônias pomposas. Não deixou de expressar sua preferência
pelos cenários da pregação e da libertação, que ele considerava mais
evangélicos e mais desejáveis. Com realismo dizia que as análises que ele fazia
deveriam ajudar “a elaborar as estratégias de resistência, caso triunfe um
cenário adverso. Ou a organizar as próprias forças vitoriosas” (2009, p. 14).
Fui testemunha de outro exemplo de lucidez e de capacidade
de ler os sinais dos tempos por parte de Libanio. Por ocasião dos 50 anos da
Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) organizou-se, no início da década
passada, um Seminário em Belo Horizonte (MG), na Casa de Encontros Santíssima
Trindade. Libanio refletiu sobre a conjuntura eclesial daquele momento. Alguns
frades e freiras presentes manifestaram certo entusiasmo com o crescimento de
grupos e comunidades de vida, ligados a movimentos, e expressavam certo
desencanto pela diminuição do número de religiosos e de religiosas em suas
congregações. Libanio, novamente “comendo pelas beiradas”, lembrou que a
refundação tão discutida pela vida religiosa no final do segundo milênio teria
que ser efetivada. Mas insistiu em que se evitasse certa empolgação barata com
as novas comunidades, pois, segundo ele, citando, se não me engano, a socióloga
da religião francesa Danièle Hervieu-Léger, muitas dessas comunidades
funcionavam como verdadeiros “ônibus circulares”, com gente entrando e saindo
de forma permanente. Por não terem início consistente e rumo bem definido
poderiam terminar em nada. Os escândalos recentes envolvendo alguns desses
grupos, especialmente seus fundadores, comprovam que Libanio enxergava longe.
Poderíamos multiplicar os exemplos, mas estes são
suficientes para provar que Libanio, no seu jeito mineiro de fazer teologia,
sabia ler com lucidez e precisão os sinais dos tempos. E essa sua competência e
perspicácia eram derivadas de uma sólida espiritualidade e da sua inserção no
meio do povo. Prova disso é o fato de que, mesmo sendo um grande teólogo, com
uma vastíssima produção, Libanio sempre encontrou tempo para estar no meio do
povo. Ao morrer ainda era pároco de uma comunidade em Belo Horizonte. Libanio
não foi teólogo de corte e nem de escrivaninha. Ele, na sua missão de refletir
sobre a fé, soube assumir “a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo
no povo” (Papa Francisco. Evangelii Gaudium, nº 24). Libanio escreveu de forma
magistral sobre as realidades últimas da vida humana, a escatologia. Estou
convencido de que, a partir do momento de sua morte, ele se encontra plenamente
transfigurado, ressuscitado, no seio da Trindade.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
*José Lisboa Moreira de Oliveira é filósofo, teólogo,
escritor, conferencista e professor universitário.
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