“Por que identificar a imagem de Deus com aquela que nos foi transmitida por uma cultura machista”? Que anúncio kerigmático para ela, não encerrado numa visão moralista?
Hoje, mais do que nunca, as reflexões de Martini estão
à nossa disposição, com a força de uma imutada tensão criativa, se quisermos
levar a sério as palavras do Papa Francisco quando de retorno do Brasil, e
recentemente reformuladas na entrevista a Civiltà Cattolica sobre as mulheres.
A repetição do argumento assinala uma atenção que deixa de fato esperar",
escreve Nicoletta Dentico em artigo publicado na revista “Rocca” n. 20,
15-10-2013. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Das mulheres emergem solicitações sofridas e sinceras.
Falava, assim, em 1981, o Cardeal Martini à convenção “A mulher na Igreja
hoje”, procurando interpretar o mal-estar de um mundo feminino plural diante da
iconografia da “mulher cristã”, na qual as mulheres tem dificuldade de serem
respeitadas e reconhecidas. E exibia uma série de questões decisivas para o
futuro da Igreja:
“Por que identificar a imagem de Deus com aquela que nos foi
transmitida por uma cultura machista”? Que anúncio kerigmático para ela, não
encerrado numa visão moralista? Que indicações para um caminho espiritual e de
santidade que estimulem a mulher adequadamente? Que indicações para uma
renovada práxis pastoral, para um caminho vocacional para o matrimônio, para a
consagração religiosa, a família, em consideração da nova consciência de si que
a mulher adquiriu?
Que indicações para uma linguagem global, também litúrgica,
que não faça sentir-se excluída, em sua elaboração, a mulher? Por que tão
poucas e inadequadas respostas à valorização do próprio corpo, do amor físico,
dos problemas da maternidade responsável? Por que a maior presença da mulher na
Igreja não incidiu em suas estruturas: E na práxis pastoral por que atribuir à
mulher somente aquelas tarefas que o esquema ideológico e cultural da sociedade
lhe atribuía, e por que não explicitar os seus carismas como “obra do Espírito
Santo”?
Ler, à distância de trinta anos, o insistente catálogo das
interrogações de Martini, com sua solicitação à Igreja de por-se à escuta e
deixar as mulheres exprimir-se como protagonistas, de desenvolver uma urgente e
atenta releitura dos ministérios, dos carismas e dos serviços, ilumina e
desencoraja ao mesmo tempo. Nós mulheres temos sido consideradas por longo
tempo as fiadoras da doutrina, aquelas que durante o processo de secularização
asseguraram o enraizamento da tradição cristã na infância, nas famílias, na
sociedade. Frequentemente o temos feito com o limite de dever encarnar algo
transmitido, um limite que é em ampla medida a debitar a uma ordem eclesial que
voluntariamente manteve as mulheres fora. Percorremos linguagens na maioria dos
casos já codificadas, e ainda não nos sentimos de todo legitimadas a fazer
agir, em nosso presente e no de nossas igrejas, aquela força que transforma e
arrasta, escandaliza e provoca, tornando possíveis novos horizontes.
Hoje, mais do que nunca, as reflexões de Martini estão à
nossa disposição, com a força de uma imutada tensão criativa, se quisermos
levar a sério as palavras do Papa Francisco quando de retorno do Brasil, e
recentemente reformuladas na entrevista a Civiltà Cattolica sobre as mulheres.
A repetição do argumento assinala uma atenção que deixa de fato esperar.
A explosiva parábola do pontificado do Papa Francisco – os
audazes apelos à paz contra todo vulgar interesse guerreiro, a exigente
pastoral missionária que evita a “imensidão de doutrinas a impor com
insistência”, o desejo de uma justiça reconhecível na redistribuição das
riquezas (sugestiva a imagem da “teologia do descarte” cunhada por Raniero La
Valle), a postura de proximidade física aos últimos, estejam eles nos cárceres,
em Lampedusa ou entre os desempregados da Sardenha, a partir das mesmas formas
de uma nova pobreza da Igreja – arrasta consigo uma onda de entusiasmo
incrédulo e contagioso. A inusitada simbologia dos gestos e as mensagens do
centro ultra-milenar de Roma provêm realmente “da outra parte do mundo”, como
uma brisa que refresca o ar e abre indispensáveis horizontes.
Num mundo desfigurado pela desigualdade e pela idolatria do lucro,
numa Igreja sobrecarregada de contradições e décadas de clericalismo, só Deus
sabe quão benéfica seja esta rajada de vento novo: uma teologia sobre as
mulheres e para as mulheres.
Na esteira da espera de novidades futuras, a questão
feminina espera em sua andança o bispo de Roma como um desfiladeiro iniludível,
sabe-o muito bem Francisco. “A Igreja não pode ser ela mesma sem a mulher e sua
função”, disse ele a Civiltà Cattolica, quase a querer indicar uma das razões
da crise atual. Também sabe que se trata de um terreno acidentado: a
valorização do significado evangélico da diferença de gênero na vida eclesial
não é fácil de ser cumprida. O machismo do ambiente obscurece a visibilidade e
a importância da presença das mulheres numa linha de proporcional continuidade
com o passado do Novo Testamento (“como testemunhas da Ressurreição são
recordados somente homens, os Apóstolos, mas não as mulheres”). Entrementes, as
mulheres tem transformado radicalmente a sociedade com sua subjetividade,
resgatando-se de uma atávica escravidão ligada à maternidade e à família.
“Com o feminismo, escreve Luísa Muraro, “veio à luz um
desnível entre o sentido de si e a identidade humana representada pelo homem,
desnível que não pode mais ser aceito porque a política das mulheres, em
qualquer parte do mundo, obteve o lugar da liberdade feminina”. Este desnível
germinou longamente também nas igrejas – a “Frauenfrage” [questão das
mulheres], as novas questões da fé que vinham das mulheres, começou a tomar
forma entre os fins do século XIX e inícios do século XX – e por fim ficou a
descoberto.
Graças ao Concílio Vaticano II, a práxis teológica ainda
ferreamente aficionada aos estereótipos, deve hoje fazer as contas com a
presença, no palco, de uma vivaz comunidade de estudiosas, protagonistas de
intensas e ricas reflexões endereçadas à elaboração de uma teologia sobre as
mulheres e para as mulheres. Essas inspiraram um notável repensamento dos
âmbitos disciplinares, contextualizando traduções, símbolos, imagens,
linguagens.
A Igreja esposa e mãe
“Uma Igreja sem as mulheres é como o Colégio Apostólico sem
Maria. O papel da mulher na Igreja não é somente a maternidade, a mamãe de
família, mas é mais forte: é precisamente o ícone da Virgem, de Nossa Senhora
[Madonna]; aquela que ajuda a Igreja a crescer! Mas, pensai que a ‘Madonna’ é
mais importante que os Apóstolos! E muito mais importante! A Igreja é feminina:
é Igreja, é esposa, é mãe”. Na contínua tensão entre autoridade e criatividade,
entre identidade e mudança, as frases de Francisco, ao retornar da Jornada
Mundial da Juventude, deixam entender uma sincera tensão para novas vias de
reconhecimento da ação das mulheres, e esta é uma boa notícia, uma boa nova.
Mas, gostaria de entender de que mulheres estamos falando, a
cinquenta anos do Concílio. As palavras do Papa configuram, ainda uma vez, a
mulher como uma categoria antropológica em si mesma, inserida na função
“natural” que lhe fixa deterministicamente papéis e identidades: os de ser
custódia de uma humanidade a acudir e a salvar. A modelização da mulher sobre a
figura de Maria Vigem, tão cara a Francisco (e retomada na entrevista a Civiltá
Cattolica), talvez seja inevitável após décadas de “uma mariologia que não
procede da Revelação, mas tem o apoio dos textos pontifícios” – para dizê-lo
com o cardeal Congar. É lastimável que esta interpretação não produza sentido
de identificação entre as mulheres e, menos ainda, as assegure quanto ao
respeito da parte de padres e bispos do fermento teológico e pastoral da qual
estes, hoje, são capazes dentre da Igreja.
Com bem outro horizonte João XXIII, na Pacem in Terris
(1963) se referia à mulher como “sinal dos tempos”, presença histórica no novo
cenário mundial que fazia seu ingresso na vida pública, “com uma influência,
uma irradiação, um poder até agora jamais atingido”, e uma consciência sempre
mais clara e operante de sua dignidade. Aquela consciência de si, embora sob
constante assédio, é um dado sociológico já consolidado pela experiência de
gerações, e não se pode não ter dele conta na crise do modelo antropocêntrico.
A ênfase sobre a maior importância de Maria em relação aos
apóstolos – mulher que gerou Jesus, Miriam/Maria desenvolveu uma tarefa
obviamente não declinável ao macho – e a declarada preeminência do gênero
feminino (“A mulher, na Igreja, é mais importante do que os bispos e os
padres”) sempre mais se afadigam a coexistir com a iteração do “não” categórico
ao sacerdócio feminino: “uma porta fechada”. Tem razão Marinella Perroni quando
faz notar que não se pode cair na armadilha de considerar e fazer considerar o
sacerdócio feminino como a única questão relevante para a pesquisa teológica
das mulheres. No entanto, a recusa autoritária de toda perspectiva de diálogo
sobre a conferição da ordem sagrada às mulheres – a décadas de distância da
comissão de estudo querida por Paulo VI – permanece um incompreensível enigma.
A ideia de nomear uma mulher cardeal – voltou-se a falar
disso nos últimos dias como de uma via possível para incidir sobre a
fidedignidade das mulheres na Igreja sem arranhar o espinhoso ‘diktat’ sobre o
sacerdócio feminino – pode ter um valor simbólico, mas parece ser uma hipótese
insuficiente se o intento último é aquele de sacudir o desinteresse e a
suspeita que grande número do clero nutre perante as mulheres. A superação da
exclusão das mulheres no exercício da autoridade na Igreja requer outra estrada
mestra, feita de bem outras abordagens estruturais e de novas capacidades
dialógicas.
Fonte: Ihu
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